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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15576: Notas de leitura (793): "Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974", publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Temos os muitos livros, artigos em jornais e outras publicações, as conferências, as sessões solenes, os debates evocativos.
Com esta extensão e detalhe, não conhecia uma exposição tão abrangente das três frentes na nossa guerra. O Eduardo Magalhães Ribeiro forneceu material alusivo sobre a Guiné, entre outros. Já lá vão quase 15 anos, os estudos evoluíram muito e é questão para perguntar se essas exposições não deviam continuar, pensadas sobretudo na população geral que vive arredada de um conflito de que não se fala em casa e de que não se tem eco na comunicação social, com honrosas exceções.

Um abraço do
Mário


Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974

Beja Santos

“Testemunhos de Guerra” foi o título da publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001. A publicação continua à venda no Museu e custa 20 euros. Inclui: tábua cronológica com os momentos mais marcantes dos treze anos da guerra, questionamento do Colonial e do Ultramar e das atividades do respetivo ministério; apresenta diferentes protagonistas, como Kaúlza de Arriga, Marcello Caetano, Costa Gomes, Adriano Moreira, Bethencourt Rodrigues, Oliveira Salazar e António de Spínola; o Coronel David Martelo escreve sobre os antecedentes da guerra colonial, seguem-se imagens das três colónias onde houve conflito; destaca-se o massacre de 15 de Março, em Angola; o Coronel José Santa Clara Gomes apresenta as nossas tropas e os nossos meios, reproduzem-se os guiões das unidades; seguem-se testemunhos sobre a vida em aquartelamento, reproduzem-se imagens de Fulacunda; apresentam-se os movimentos de libertação e os líderes, temos um conjunto avultado de imagens com os seus equipamentos e dispositivos.

O Coronel Arnaldo Costeira escreve a anteceder o capítulo dedicado aos combates um texto sobre o exército português e o seu comportamento na guerra, reproduzem-se alguns parágrafos:
“Talvez se escamoteie sistematicamente a verdade sobre a responsabilidade dessa intervenção e se atribuam culpas a quem as não tem, de facto. E o que é ainda mais grave é que se esqueçam as centenas de milhares de homens que, no cumprimento constitucional do dever, marcharam para a frente onde viveram sacrifícios inauditos, privilegiando-se a heroicidade de escassas centenas de cidadãos que fugiram aos seus deveres, entre as quais se contavam sem dúvida alguns resistentes políticos, e que mais tarde se misturariam com os verdadeiros resistentes.
Nenhum país até então conseguira quaisquer resultados numa guerra subversiva. Nem franceses nem norte-americanos deixaram de ser derrotados na Indochina, com potencial de combate poderosíssimo, embora com forças apoiadas por países importantes como eram a União Soviética e a China. Portugal, num território vastíssimo, com meios limitados pelo bloqueio dos países amigos, superou as dificuldades pela grandeza dos seus homens, pela dedicação e espírito de sacrifício que o português sempre patenteou em toda a sua história.
Foram anos de sofrimento e luta sem quartel. Os militares do Exército estabeleceram uma quadrícula invejável, erguendo desde os alicerces as parcas estruturas onde viveriam durante meses que pareciam não ter mais fim. Viveram como toupeiras durante meses a fio, uns após outros, passando meses sem conta, nos primeiros aos de guerra, apenas com o petromax aguardando que o escuro das noites os não surpreendessem. Passaram sede e contactaram com esse tipo de alimentação desidratada que deveria fazer inveja aos milhões que nem sequer sabem que isso existe porque morrem de fome diariamente”.

Temos depois uma sucessão de imagens com viaturas em progressão em bolanhas, em picadas, colunas de jipes, reações em emboscadas, levantamento de minas, imagem de armas. As tropas especiais mereceram destaque nesta exposição: rangers, fuzileiros e paraquedistas.

Igualmente se destacam as condecorações, as cerimónias de homenagem aos mortos, telegramas a informar a família da morte de militares, a criação da ADFA e a lista daqueles que tombaram pela pátria.


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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1897: O Queta Baldé, com a sua memória de elefante, é muito superior ao grande Fernão Lopes (Beja Santos)

1. Mensagem do Beja Santos, de 26 de Junho último:

Camaradas, eram 8:30 quando o Queta chegou de caderno em punho [, ao meu gabinete de trabalho, ao Saldanha]. Na matreirice, pedi-lhe para vir ao computador para me dar um esclarecimento de umas coisinhas no mapa. Quando viu o Matos Francisco (1), olhou-o 15 segundos em silêncio absoluto e depois deu uma gargalhada que se ouviu no Campo Pequeno.

Ele que é a disciplina e o rigor no cumprimento das tarefas, descreveu-me a chegada do Matos Francisco ao pelotão, contou como se tinha rifado o destino de cada um, como trocara com outro camarada do 51 a vinda para o 52 (o 51 foi para Guileje...), disse-me que o Matos Francisco deu uma queda, que o Furriel Vaz foi apanhado à mão na região do Geba depois de ter sido punido pelo Capitão do Enxalé, que o Furriel Altino passara a Comandante interino até à chegada do Alferes Azevedo, o nº2 da lista (temos que descobrir onde anda o Azevedo, que me foi apresentado de raspão em Bissau).

O 52 estava nessa altura em Porto Gole e colaborava com uma das três companhias de polícia móvel, sobre as quais ainda não vi nenhum referência no nosso blogue. Tanto quanto me parece, são os antecessores das milícias, eram comandadas por régulos ou outros homens grandes, e a companhia de milícias que estava em Porto Gole patrulhava nas regiões de Mansoa e Bissá.

E mais não digo, o Matos Francisco que começa agora a contar a história, o filho mais novo do régulo Malã Soncó que acompanha o nosso blogue logo dará notícias para cerca de 50 mails da Guiné, que nos acompanham religiosamente. Tudo o mais que o Queta me disse vem num dos próximos episódio do nosso folhetim. Saúde para todos e que o Matos Francisco trabalhe, Mário.

2. Comentário de L.G.: Mário, espantosamente não temos uma foto, antiga e/ou actual, do teu/nosso Queta Baldé, que é um prodígio de memória... Ao fim de um ano de macaréus, o teu e o Queta formam uma parelha inseparável... Devo dizer-te que a nossa Tabanca Grande está reconhecida aos dois. L.G.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

28 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1896: Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56 (Henrique Matos)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1389: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (5): Comandos A. Mendes e João S. Parreira

Guiné > Brá > 1965 > O João S. Parreira, o primeiro do lado esquerdo, num grupo de comandos: "Passados uns meses após o segundo curso, o fotógrafo apanhou-me com o Capitão Maurício Saraiva, com o Alferes Virgínio Briote, comandante do Grupo Diabólicos (ao qual o Marcelino passou a fazer parte), e com o Furriel Marques de Matos, chefe de uma das equipas do mesmo grupo".

Foto: © João S. Parreira (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem de 5 de Outubro de 2006, do Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74), em resposta ao apelo da Irene Rodrigues Marcelino (1):

Querida amiga Irene, tive a honra de trabalhar com o seu pai enquanto militar na Guiné e já depois disso aqui em Portugal.

Ao que eu sei e até há muito pouco tempo, ele está (estava) bem. Um pouco velhote mas bem.

Se quiser saber mais notícias dele vá ao site da Associação dos Comandos e ponha a questão que eles de certeza vão ajudá-la.

Cumprimentos.

Amílcar Mendes

2. Mensagem de 11 de Dezembro de 2006, do João S. Parreira, ex-furriel miliciano comando (Brá, 1964/65):

Caro Luís,

Para compor um pouco mais a carreira do Marcelino da Mata, gostaria de dizer que fez parte de um dos primeiros três grupos de Comandos da Guiné, os Panteras, formados em 17 de Outubro de 1964, e liderados pelo Tenente António Manuel Bairrão Pombo dos Santos (2), no qual se encontrava também o Vassalo Miranda, que conheceste no passado 10 de Junho.

Embora tirada ao longe, o Marcelino, com os braços arqueados, reconheceu recentemente a foto tirada comigo e com o Lifna Cumba, em Có, naquela quarta-feira, de 30 de Junho de 1965, durante uma paragem, para de seguida se começar a progredir para a operação de quadros do segundo curso, realizada em Iussi.

Em Brá, passado uns meses após o segundo curso, o fotógrafo apanhou-me com o Capitão Maurício Saraiva, com o Alferes Virgínio Briote, comandante do Grupo Diabólicos ao qual o Marcelino passou a fazer parte, e com o Furriel Marques de Matos, chefe de uma das equipas do mesmo grupo.

O Marcelino da Mata passou a fazer parte do Grupo do Briote após os Panteras terem sido extintos.

Um abraço e até breve.

J.Parreira

Guiné > Região do Cacheu > Có > 2º curso de comandos > 30 de Junho 1965 > Embora com muito má qualidade, esta foto tem alguma interessante documental: no lado esquerdo, vê-se o Marcelino, com os braços arqueados, o Fur Mil Parreira e o Lifna Cumba.

Foto: © João S. Parreira (2006). Direitos reservados.


Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes > O João Parreira, à esquerda, e o Vassalo Miranda, à direita: dois veteranos dos velhos comandos de Brá. O Miranda, do Grupo Os Panteras, foi instrutor do Parreira, do Grupo Os Fantasmas.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006). Direitos reservados.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

(2) Vd. post de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

O Coronel do Exército Português, na reforma, Marcelino da Mata (o segundo a contar da esquerda), f0tografado em 24 de Setembro de 2005, durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. O grupo fotografado é constituído por elementos que participaram na mítica Operação Trindente (Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964).

Da esquerda para a direita (situação militar reportada a 1964):

(i) sold João Firmino Martins Correia;
(ii) 1º cabo Marcelino da Mata;
(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda;
(v) fur Mário F. Roseira Dias;
(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco

Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):


Caro Luís:

Tens toda a razão, pois, realmente, ainda nada disse sobre o Marcelino (1).

Vou pôr de parte as controvérsias que figuras como ele sempre geram. É normal que assim seja e só demonstra que se alguém concita em si a atenção pública, com defensores e detractores, é porque essa pessoa - no caso vertente o Marcelino - fizeram algo que ultrapassa o comum dos mortais.

Vamos então aos factos:

Corria o início do ano de 1963 quando, tendo eu regressado ao serviço militar e sido colocado na 2ª Repartição (Informações) do QG de Bissau, conheci o Marcelino.

Ela era 1.º cabo condutor nessa repartição e desde logo me apercebi ser pessoa de muita confiança do Chefe da Repartição bem como do restante pessoal do QG de qualquer função ou graduação. Falava correctamente o português, conhecia várias línguas dos povos da Guiné e era um fiel e incansável colaborador na procura de informações que nesse tempo do início do conflito não eram muitas.

Eu falava muito frequentemente com ele, como é natural, e fiquei a saber que no início das actividades do PAIGC também havia sido aliciado, o que recusou. Talvez por isso, alguns familiares seus, entre os quais a mãe, foram alvos de sevícias e alguns, até raptados. Isso só aumentou a sua determinação de combater ao lado dos portugueses pois, conforme dizia - e continua dizendo - nasceu e quer morrer português.

Mais tarde, já em Janeiro de 1964, quando decorria a Operação Tridente na Ilha do Como, apareceu lá para se juntar ao grupo de comandos. Foi aí que comecei a admirar as suas extraordinárias capacidades de combatente.

O Marcelino era, realmemente, aquilo que nós costumamos designar por uma máquina. Era um dos mais entusiastas do grupo e senhor de uma coragem e determinação extraordinárias. Nunca o vi vacilar perante o perigo nem reclamar pelas duras condições a que estávamos sujeitos. E a minha admiração por ele cresceu por ele ser guineense e estar ao lado dos portugueses, quando havia já muitos portugueses aliados ao PAIGC ou, pelo menos, fazendo resistência passiva, o que só fortalecia o adversário.

Depois da Op Tridente (2), e após o regresso a Bissau, o Marcelino continuou nos comandos e colaborou com os seus conhecimentos do terreno e a sua natural aptidão de combatente na formação dos grupos de comandos que se instruiram no 1º curso de comandos realizado em Brá. Ficou a pertencer aos Panteras (3) e foi uma peça importante na operacionalidade desse grupo.
Mais tarde, criou o seu próprio e lendário grupo que se chamava Os Roncos, salvo erro.

Eu regressei a Lisboa em Fevereiro de 1966. Portanto, não poderei testemunhar tudo quanto o Marcelino realizou desde essa altura mas é do domínio público que foi muito. Não é por não ter feito nada nem por não ter extraordinário valor que se recebe por várias vezes a Cruz de Guerra a ainda a Torre Espada; nem que se passa de 1º cabo a tenente-coronel por sucessivas promoções por distinção.

Cometeu excessos, dizem alguns. Não sei. Não assisti. Porém, ponho as minhas reticências porque, enquanto com ele lidei, nunca o vi realizar acções menos dignas nem ter atitudes desumanas. Era duro e inflexível porque assim é a guerra; mas cruel e sanguinário, não.

Hoje, o Marcelino mantém-se igual ao que sempre foi: determinado, amigo do seu amigo, e senhor de um amor a Portugal que deveria fazer corar de vergonha muitos patriotas da nossa praça. Quando o encontro e por vezes o confronto com esse facto que não é, nos dias de hoje, politicamente (e vantajosamente, digo eu) correcto, ele me responde invariavelmente:
- Eu sou português e sempre serei. Esses gajos (PAIGC) que fizeram a independência só trouxeram desgraça. E em Angola e Moçambique é a mesma coisa. Os governantes enchem a barriga e o povo passa fome. E remata com o vernáculo p... que os pariu.

É este o Marcelino que eu conheci e conheço. Homem vertical que nada nem ninguém consegue dobrar. Nem mesmo os sanhudos torcionários do RALIS onde esteve preso durante o nefasto PREC (4).

Marcelino, daqui te envio aquele abraço.

Mário Dias
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

(2) Vd. textos (inéditos) do Mário Dias sobre a batalha do Como:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)


(3) Vd. post de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

(4) Vd. blogue do Virgínio Briote > Tantas Vidas > 29 de Junho de 2006 > O que é feito deles (II)

(...) "O Marcolino das Matas [nome ficcional de Marcelino da Mata] voltou a pegar na G3 no tempo do Governador Spínola. Fez um grupo especial de africanos, o processo de promoção por distinção suspenso foi retomado, num ápice passou de cabo a capitão, cruzes de guerra incluídas, quase sem saber ler e escrever que os guerrilheiros exigiam outras habilidades.

"Pirou-se para Lisboa e fez muito bem, antes que fosse tarde demais. Continuou a sua vida de aventuras, quando o filme de Abril estava a ser rodado foi torturado por educadores da classe operária. Considerado como um dos militares mais condecorados por feitos em combate, é visto muitas vezes nos 10 de Junho e 1ºs de Dezembro. Apareceu também nos jornais e telejornais quando foi depor ao tribunal, a propósito de um escândalo qualquer numa universidade" (...).

Recorde-se que - segundo os jornais da época - em 15 de Maio de 1975 soldados do RALIS, militantes do MRPP, detém irregularmente um fuzileiro e depois o alferes comando Marcelino da Mata, o qual é torturado a 17 ... Enfim, um episódio triste da revolução dos cravos.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

Guiné > Brá > 1965/66 > Emblema do Grupo de Comandos Diabólicos, do Alf Briote, e a que pertenceu também o então 1º cabo Marcelino da Mata (hoje, cortonel do exército, na reforma, e cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada) (1).

Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados. (Reproduzido do blogue Tantas Vidas, com a devida vénia...).


1. Mensagem do Mário Dias, com data de 9 de Outubro de 2006:

Caro Luis:

Como sabes, conheci e lidei de perto com o Marcelino da Mata, actualmente residente em Queluz e com quem me encontro de vez em quando.

Estou disposto a ajudar a filha dele nesta homenagem tão simpática que ela quer prestar ao pai. Como fazê-lo? Directamente para ela ou através de ti?

Mantenhas.

Mário Dias

2. Resposta de L.G., na volta do correio:

Mário:

És um homem puro e generoso, sem parti-pris... Eu nunca conheci o Marcelino da Mata... Não me sinto juiz de ninguém, nem quero sê-lo, nomeadamente quando estão em causa antigos combatentes da Guiné, como eu... Deformação profissional, sociológica ? É possível... Deixo isso à história, ao futuro, aos nossos nossos netos, que nos hão-de julgar... Além disso, estamos a falar de antigos combatentes que ainda estão vivos... A questão é sempre delicada.

Julgo não ter feito a guerra como o Marcelino da Mata, ou nem sequer como tu que te ofereceste para os comandos... Tu defendias uma terra que amavas, desde os teus 15 anos... Quem te poderá apontar o dedo por lutares por convicção e patriotismo ? Ou a mim, por ter feito um papel de resistência passiva (fraca, mole...) que a minha consciência me impunha ?

No caso do Marcelino, eu gostava no mínimo de conhecer a sua história de vida, a sua acção, os seus feitos... Muita coisa já pertence ao domínio da lenda, do mito ... Eu quero o teu testemunho sereno e privilegado, o teu, o do Virgínio e de outros camaradas que com ele conviveram de perto... Vocês têm uma autoridade que ninguém mais tem na tertúlia, com excepção do coronel Nuno Rubim de quem ele foi subordinado nos anos de 1966 (segundo creio): por isso, o vosso depoimento, o vosso testemunho, é essencial...

Eu sei que o Marcelino da Mata - heroificado à direita, crucificado à esquerda - poderá vir a ser outra questão fracturante no nosso blogue, na nossa tertúlia... Vamos ter que agir com serenidade, lucidez, objectividade... Não vamos crucificá-lo nem pô-lo no altar... Interessa-nos o homem, o cidadão, o militar, o combatente (2)... É, além disso, um oficial superior do Exército Português que deve deve ser tratado como tal.

Mas eu penso que já atingimos a maturidade... Somos capazes de falar, uns com os outros, sem puxar pela G-3, ou no mínimo com a G-3 em segurança... Não há nada - pelo menos, comigo, como editor do blogue - que não se possa evocar, falar, descrever, narrar, criticar, contestar, do Salazar ao Amílcar Cabral, do Otelo ao Nino, do Alpoím Galvão ao Luís Cabral... Em suma, não há vacas sagradas na nossa caserna virtual...

Só quero (exijo) que as pessoas, os tertulianos, exponham os factos, contem o que viram, o que sentiram, o que pensaram... Sem preconceitos ideológicos (O que não quer dizer sem valores): o Marcelino da Mata foi um combatente, ao que parece excepcional... Posso interrogar-me sobre os seus métodos de actuação, depois de conhecer a sua estória... Não o conhecendo, não posso ter uma opinião sobre ele, muito menos baseada no diz-que-disse...

Há a questão (delicada) da informação a dar à sua filha... A vida de seu pai não foi nenhum conto de fadas, como ela de resto o deve saber há muito... Mas ela é uma pessoa adulta, saberá ler e contextualizar a informação que vier a ser inserida no blogue... Ela tem direito à verdade, tal como os filhos de outros combantentes, tal como nós e os nossos filhos... Foi ela, de resto, que nos pediu estes testemunhos...

O Marcelino, o Saiegh, o Bacar Jaló, o Luís Graça, o Mário Dias, o Beja Santos, o João Tunes, o Jorge Cabral ou o Virgínio Briote e os restantes membros da nossa tertúlia, todos nós estivemos, objectivamente, do mesmo lado da barricada... Seguramente, que não pensávamos todos da mesma maneira, nem actuámos da mesma maneira, mas isso que importa agora!?...

Mário: tens uma grande responsabilidade... Vais dar o pontapé de saída... O Virgínio também vais vasculhar o baú, lá em Esposende (2)...

3. Comentário do Mário Dias (cujo prometido testemunho sobre o Marcelino da Mata continuo a aguardar, desde 10 de Outubro de 2006):

Caro Luís:

Passando por cima dos elogios que me fazes, imerecidos, mas que agradeço, aceito o teu desafio e o mais brevemente que me for possível, vou narrar a história do Marcelino apenas na parte respeitante à vivência que com ele tive entre 1963 e 1966 (3). Do restante da sua vida, apenas conheço o que tenho ouvido e lido e que é do domínio público.

Claro que o julgamento que cada um faz está condicionado pela forma como ideologicamente vê e interpreta os factos. O que para uns é um acto justo e necessário, para outros será um excesso criminoso. Não é raro que alguém clame contra a injusta barbaridade dos seus opositores e enalteça como justas e patrióticas barbaridades semelhantes, e por vezes bem maiores, cometidas pela parte com que simpatiza e apoia.

Um abraço e até breve.

Mário Dias

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. o sítio oficial da Associação de Comandos > Galeria dos Heróis > Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito > Marcelino da Mata


(2) Vd. posts anteriores:

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

(3) De acordo com o blogue do Virgínio Briote, Tantas Vidas, o Marcelino da Mata fez parte do Grupo de Comandos, os Diabólicos, estando estado integrado na 1ª equipa:


GRUPO DE COMANDOS DIABÓLICOS (ao tempo da estadia em Barro)

1ª Equipa

1º Cabo Marcelino da Mata
Soldado Carlos Alberto dos Santos Roberto
Alferes Briote
Soldado José Feitinhas de Matos/ANPRC10
Soldado Álvaro dos Santos/Enfº

2ª Equipa

Soldado José Marques
Soldado José Caleiro
Furriel Caetano Azevedo
Soldado António Alves Maria da Silva
Soldado Joaquim Esperto

3ª Equipa

Soldado Domingos Lopes
Soldado José C. Martins
Sargento Mário Valente
Soldado Albino Ferreira da Silva / MG-42
Soldado Mamadú Jaló

4ª Equipa

Soldado Fernando Moura
Soldado Bacar Mané
1º cabo Carlos Faria Black
1º Cabo Casimiro Anselmo
1º Cabo António Domingues


Em 4 de Setembro de 1965, quando terminaram o 2º Curso de Comandos,- juntamente com os Apaches (Alf António Vilaça e Vítor Caldeira), os Vampiros (Alf António A. Neves da Silva) e os Centuriões (Luís M. N. Almeida Rainha), os Diabólicos eram assim constituídos (entre parênteses, indica-se a sua unidade de origem e assinalam-se, em observação em itálico, os que já morreram e em circunstâncias):

Alf. V. Briote (CCAV 489/BCAV 490)
2º Sarg. Mário J. Machado Valente (CCS/QG)
Fur. Caetano Azevedo (CCAÇ 764)
Fur. Fernando Marques de Matos (Pel Caç 953)
1º Cabo Carlos Filipe Faria (CCaç 462)
Sold. Bacar Djassi (CCS/QG) (fuzilado)
1º Cabo Mamadu Jaló (Agrup 16) (fuzilado)
Sold. Albino F. Silva (CCS/BCAÇ 697) (falecido)
Sold. José Vicente Caleiro Júnior (CCS/BCAÇ 697)
1º Cabo José Henriques Cristóvão(CCS/BCAÇ 790)
Sold. António Jesus da Silva (CCS/BCAÇ 790)
Sold. António A. M. Silva (CCAÇ 674) (morto, Jabadá, 06/03/66)
Sold. Fernando Simões Moura (CCAÇ 726)
Sold. António Amador Caeiro (CCAÇ 726) (falecido)
Sold. Bacar Mané (BAC) (falecido)
1º Cabo António Rita Domingues (CART 732) (falecido)
Sold. Álvaro dos Santos (CCAV 677)
Sold. Carlos Alberto S.Roberto (CCAV 677)
Sold. Domingos Lopes (CCAV 703)
1º Cabo Casimiro Oliveira Anselmo (CCAV 789)
Sold. José Correia Martins (CCAV 789)
Sold. Joaquim Ventura Esperto (CCAV 789)
Sold. José Feitinha de Matos (CCAV 789)
Sold. Diamantino F. M. Carvalho (CCAV 789)
Sold. José Joaquim Pereira Marques (CCAV 678)

Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José C. Carvalho)

Lisboa > Belém> 10 de Junho de 2003 > Marcelino da Mata, antigo comando, ao lado do ex-furriel mil op especiais José Casimiro Carvalho (CCAV 8350 , Guileje, 1972/73). Marcelino da Mata é hoje oficial superior, na reforma, do Exército Português, tendo sido graduado em tenente coronel (LG).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Carvalho, com data de 11 de Outubro de 2006:

Tenho um orgulho tão grande em falar desse homem que se me arrepia o corpo só de falar no célebre Marcelino da Mata (1).

Tive o grande privilégio de o ter conhecido e cumprimentado em Guileje, aquando da queda do FIAT G-91 da FAP, conduzido pelo Tenente Pessoa (se a memória não me atraiçoa).

Ele era a imagem do combatente de [contra-] guerrilha, que eu aspirava ser. E não era por acaso, pois o Marcelino, com o seu grupo tão famoso como famigerado - na opinião de alguns -, ostentava garbosamente no seu ombro esquerdo a chapa com Os Vingadores de Operações Especiais...

Estávamos em Maio de 1973, se não me engano, e o tal grupo ia tentar resgatar o corpo do tenente pilooto do FIAT G-91, conjuntamente com a CCAV 8350 e as tropas parquedistas do BCP 121, entretanto chegadas a Guileje.

Eu, na verdura dos meus 21 anos e com o sangue na guelra, sedento por acção - na acepção da palavra -, ofereci-me para fazer parte do grupo do Marcelino. E já pensar na minha gabarolice dos anos vindouros...

O problema é que o Marcelino (grande homem!) aceitou!!!.... Eu nem queria acreditar, mas o meu comandante, o Cap Abel Quintas, irredutivelmente, recusou. Ao que o Marcelino, retorquiu, dizendo:
- Eu trago o seu homem, este ranger, nem que seja às costas... Palavra!!!

Mas nem assim... Vieram-me as lágrimas aos olhos (e esta verdade ninguém a pode contestar), palavra de ranger)... de tanta raiva incontida.

E não é que o Marcelino, há cerca de três anos, lembrava-se textualmente deste episódio da guerra colonial, no dia 10 de Junho em que nos encontrámos ?

Fantástico, que memória, apesar do que sofreu depois do 25 de Abril segundo se consta.

Tenho fotos, no meu álbum (que emprestei ao editor do blogue), tiradas em Guileje, ao grupo do Marcelino, com armamento russo.

Para terminar e reportando-me à data dos factos, e ao clima de guerra em que se vivia - guerra nada honesta e nada concencional- , queria dizer à menina que pediu esta opinião (1) que deve ter muito orgulho nesse combatente destemido e tememário que foi (é) o seu pai.


Tenho dito.

José Carvalho
(ex-fur mil, op espec,
CCAV 8350, Guileje, 1972/73)
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posta anterior, de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

domingo, 10 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros.

Fotos: © Paulo Raposo (2006)


XIX (e última parte) do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Comentário de L.G. >
O Paulo Enes Lage Raposo, que hoje vive em Montemor-o-Novo, foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70).
Durante a sua comissão, esteve em Mansoa e sobretudo na zona leste (Galomaro e Dulombi), a sul de Bafatá. A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé.
Desde Abril de 2006 que o nosso blogue tem estado a publicar o testemunho (escrito) que o Paulo elaborou em 1997 e que só era connhecido de alguns amigos e camaradas da sua companhia e do seu batalhão. É um documento policopiado, de 65 páginas, com o seu "testemunho e visão da Guerra de África", mais concretamente sobre a história da sua vida militar, desde a sua incorporação, como soldado cadete, em Abril de 1967, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, até à sua mobilização para a Guiné, como Alferes Miliciano da CCAÇ 2405, onde teve como camaradas os membros da nossa tertúlia Rui Felício e Victor David.
Esta unidade partiu para a Guiné em Julho de 1968. O Paulo regressou passou à vida civil "ao fim de 37 meses de tropa". Nesse espaço de tempo teve a imensa alegria da visita do seu pai a Bissau e a grande tristeza da sua partida, para sempre, desta vida.
O Paulo teve a gentileza de me escrever as seguintes palavras no exemplar que me ofereceu: "Como testemunho de gratidão pela tertúlia que proporcionaste na Net. Com amizade. Paulo Enes Lage Raposo. Março 2006".
O Paulo não esconde que tem uma visão própia da "guerra de África" (pp. 55-65), as causas e consequências, o seu contexto histórico e geo-estratégico, 0 25 de Abril, a descolonização, etc., que não coincide (nem tem que coincidir) com a minha, ou com a visão de alguns de nós, mas que eu respeito, que todos respeitamos. Essa é (e continuará a ser), de resto, a regra nº 1 da nossa tertúlia: aceitarmos mutuamente as diferentes leituras e interpretações da guerra de que fomos actores e testemunhos. Essa última parte do seu depoimento poderá ser publicada em altura oportuna.
A parte factual do testemunho do Paulo termina hoje. E é com pena que o digo. Faço votos para que as suas memórias da guerra da Giné não fiquem por aqui. De qualquer modo, o meu agradecimento por este valioso contributo para a reconstituição do puzzle da nossa memória (individual e colectiva). A curta frase com que o Paulo termina a sua história de vida na Guiné, é emblemática e pode seguramente ser subscrita por todos nós: "Odeio as guerras"... Todos nós, que fizemos a guerra da Guiné, ficámos a odiar todas as guerras...
Espero poder conhecer pessoalmente o Paulo, dentro em breve, e dar-lhe um abraço, daqueles de quebra-costelas, como ele faz questão de nos brindar. E quando digo em breve, digo no próximo dia 14 de Outubro, na Herdade da Ameira, em Montemor-o-Novo, se essa for a vontade de mais amigos e camaradas, respondendo a um convite simpático e irrecusável do próprio Paulo. (LG).
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Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 51-53 (1)
A VIAGEM PARA LISBOA

Embarcámos no Carvalho Araújo. Navio pequeno e velho. Qualquer coisa servia para sair de lá. A emoção da alegria da largada não tem descrição. À medida que o navio começa a afastar-se daquela terra, a humidade começa a diminuir. O mar estava chão.

Como estávamos nós de saúde? Mal. A nossa cor era verde e o nosso cheiro tinha-se alterado. Na Guiné tinha tido dois ataques de paludismo, embora tivesse tomado o quinino todas as 5ªs feiras. Os ataques de paludismo deitavam-nos muito abaixo. Primeiro eram uns frios grandes e depois uns calores insuportáveis.

A minha úlcera duodenal estava numa lástima. A bordo seguia um médico que nos fez várias análises. Ao sangue, urina e feses. A bicharada que estava nos intestinos era obra. Tomámos uns purgantes.

Como o navio não estava com muito combustível, o Comandante resolveu acostar na Madeira para reabastecimento. Aquela ilha é realmente bonita. O Capitão André (mais tarde, Presidente da Câmara de Proença-a-Nova, durante 20 anos, até 2005) e eu demos uma volta pelo Funchal num carro militar, gentilmente cedido pelo Regimento local. Flores há-as por todos os lados, é um paraíso. Numa dessas floristas comprámos flores para serem entregues em Lisboa.

O Capitão André manda à sua mulher, com um cartão. Ela estava no fim do tempo para ter uma criança. Eu mando à minha mãe, também com um cartão. Quando cheguei a Lisboa, a minha mãe perguntou-me que cartão era aquele. Tinham-nos trocado.

Do Funchal a Lisboa foi num instante. Começámos a ver terra muito cedo, já estávamos todos acordados, e para fazer tempo para o navio acostar à hora certa ainda fomos fazer um círculo perto do Guincho. Novamente a alegria e a emoção do fim daquele tormento.

A CHEGADA

Estavam lá todos, a família e os amigos, mas o meu pai não estava. Desembarcámos. Mais um desfile e vá de ir para casa. Tudo era diferente. Não só eu me tinha transformado, como cá também tudo tinha evoluído.

Se me custara passar de civil a militar, o inverso depois de 37 meses de tropa foi também muito complicado.

A ansiedade que adquiri no fim da comissão nunca mais me largou. Diminui ou aumenta conforme o cansaço. Está sempre dentro de mim.

Quanto a terrores nocturnos, tive-os durante muitos anos. Por causa de ter adormecido profundamente no mato e não ter ouvido os tiros do inimigo, tive pesadelos pela eventualidade de a companhia avançar e me deixar para trás, só e isolado no mato. Outra situação que me apavorava era a possibilidade de ser novamente chamado para nova comissão como capitão.

Odeio as guerras.

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Nota de L.G.

(1) Vd. posts amteriores:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(...) "Entrei para o Convento de Mafra - E.P.I., como soldado Cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência. Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava" (...)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

(...) Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano. Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

"Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores" (...).

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc." (...)

5 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

(...) [Spíonla] põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa diz-me: - Você tem sorte.Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente: - Porquê, meu Comandante? - Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.

"Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso: - Você que se cuide" (...)

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


(...) "Seguimos finalmente para Mansoa, em coluna. Como ainda não estávamos armados, nos sessenta quilómetros que se seguiram, íamo-nos perguntando:- E se houver ataque à coluna, como é?

"Mansoa era uma terra importante com ruas alcatroadas. Durante essa primeira noite, o Batalhão que lá estava, o 1911, simpáticos, fizeram uma salva de artilharia à noite para verem a reacção dos periquitos (alcunha dos recém chegados)." (...)


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

(...) "Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada." (...)


11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(...) "A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra. Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:- Atenção heli, aqui tropa à rasca" (...).

19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste


(...) "Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula. O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

"Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio. Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca". (...)

22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (9): Fome em Campatá e Natal em Bafatá

(...) "Ao meu grupo de combate calhou a Tabanca de Campata. Ali nos deixou a Companhia, por muito tempo e sem qualquer razão, sem comida. Durante cerca de uma semana, praticamente não tínhamos de comer. Dizia-me um soldado:- Ó meu Alferes, a fome é negra!Em face disto, fomos subtraindo galinhas e cabritos à população, que não os queriam vender por serem o único meio de subsistência que tinham" (...).

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

(...) "Estacionámos na margem sul do rio Corubal, nós e a companhia de Madina [CCAÇ 1790], durante toda a noite para protecção. Durante a noite a jangada foi transportando para a outra margem todas as viaturas. Já de madrugada [ do dia 6 de Fevereiro de 1969] e passados todos os carros, foi a nossa vez de atravessar o rio. Como tínhamos por hábito rodar as nossas posições assim que parávamos, a nossa companhia passou para a frente da de Madina e o meu grupo de combate., por sua vez, passou para a frente da minha companhia. Com o meu grupo de combate na frente, a companhia dirigiu-se para a jangada para fazer a travessia. A jangada já estava praticamente cheia e só coube o meu grupo. Para trás ficaram dois grupos da minha companhia [CCAÇ 2405]e toda a companhia de Madina [CCAÇ 1790]". (...)


21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal


(...) "Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné, lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.

"Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio" (...).


26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

(...) "Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem" (...).

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) "Para as operações é costume contratar carregadores locais, para nos levarem água adicional e munições. Habitualmente não fugiam e era uma forma de dar trabalho na região. Por vezes a verba disponível para estes serviços era gasta em falsos contratos, e eram os soldados que tinham de carregar com os pesos.Estas operações mais compridas eram muito penosas e assim eu, por minha conta, contratava um carregador para me levar a arma, bebidas e comida adicional. O que mais apreciávamos comer no mato era a fruta em calda. Era refrescante e o sumo tinha o açúcar necessário para nos dar as forças suficientes para a caminhada. Por desidratação, em cada operação, perdíamos sempre vários quilos" (...).

10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(...) "Vivíamos pois no meio da população e nunca tivemos qualquer tipo de problemas. Em que condições íamos para lá? Aos soldados era-Ihes dado um colchão pneumático Repimpa de cor verde-tropa, igual aos que se utilizam na praia. As formigas baga-baga tinham umas tenazes que chegavam a ferir. Resultado: no dia seguinte o colchão estava furado, o ar ia-se e os rapazes passavam a dormir no chão.

"No que me diz respeito, levava a minha cama, colchão, mosquiteiro, frigorífico e cimento, que roubava ao Furriel Tavares, para pavimentar a Tabanca aonde ia dormir.No exterior desta colocava um tambor aberto para receber água, e, com duas esteiras, uma no chão e outra lateral, fazia uma casa de banho onde diariamnete, ao fim do dia, tomava o meu banho e fazia a barba.Junto à cozinha, fazíamos um forno para cozer pão. Tínhamos sempre pão fresco" (...).

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

(...) "Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimo" (...).

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi

(...) "Estávamos em Fevereiro de 1970 e contávamos, por tudo o que já tínhamos passado, ir para os arredores de Bissau, para o descanso, pois a nossa comissão terminava em Maio.Dulombi ficava a sul de Galamaro. Será que ainda tínhamos de ir para lá? Passado pouco tempo de chegado à Companhia surge a ordem para a [CCAÇ] 2405 seguir para Dulombi para instalar um aquartelamento.A desmoralização foi muita. Íamos para pior e bem pior." (...)

7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(...) "Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.

"Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.

"Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele" (...).

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1034: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (18): O fim da comissão

(...) "No dia do embarque formámos novamente nos adidos em Brá, onde o General Spínola faz o agradecimento e se despede. Nesta cerimónia faz-se a chamada dos mortos. É um momento muito emocionante. A medida que se vai pronunciando o nome de cada um que caiu, nós respondemos:- Presente!

"Era uma parte de nós próprios que lá ficou. Porquê aqueles e não nós? Como reagiram os pais daqueles rapazes que não voltaram para casa? A pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um filho. Não há nenhum que substitua outro" (...).

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

XVII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 45-49 (1).

DULOMBI

Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.

Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.

Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele.

Vou contar alguns episódios que por lá se passaram:

1. Tínhamos acabado de chegar, eu ainda estava a dormir numa tenda de campanha, pois os abrigos ainda não estavam prontos. Estava eu deitado, a meio da tarde, e lá fora havia alguns soldados a jogarem à bola no meio do recinto. Nisto, surge um ataque feroz.

Entro de imediato para o abrigo e começamos a responder ao fogo. Mesmo ao meu lado estava um tambor de ferro cheio de água. Durante a excitação do ataque apercebi-me que houve uma granada que rebentou muito perto de mim. Quando a calma regressou, reparei que o tambor estava todo furado pela granada do RPG-7 que o IN tinha atirado.

Nossa Senhora mais uma vez me valeu. Se aquele tambor não estivesse ali, era eu que tinha apanhado com todos os estilhaços.

Neste ataque um dos meus soldados ficou ferido com alguns estilhaços. Foi evacuado e ao fim de uma semana já estava de volta. No Hospital os estilhaços não eram extraídos da carne. Era o próprio organismo que os expelia.

2. Passámos a ter ataques mais frequentes e dias houve que tivemos dois no mesmo dia. Num desses ataques estava eu só com o meu grupo de combate, pois a companhia tinha saído. Era de dia. O perímetro do aquartelamento era grande e a responsabilidade também. Quis saber se havia homens em todos os lados do aquartelamento.

Durante todo o tempo que durou o fogo, percorri o perímetro para ver se tudo estava bem e ainda parei na messe para ir ao frigorífico beber um pouco de água fresca, pois estava sequioso. Regressei novamente à vala. Depois dos primeiros momentos habituamo-nos a estar debaixo de fogo e já não nos ralámos.

Nunca fiz fogo contra o inimigo. Como os soldados não se continham a fazer fogo, achava que mais um não fazia diferença e, no caso do tiroteio se prolongar, ter munições disponíveis podia ser a nossa salvação. Guardei sempre as minhas munições para o fim caso houvesse necessidade. Habituei-me a controlar-me bem nestas alturas.

Para explicar melhor o que representa uma reserva de munições vou contar uma história passada com o Alferes David. Estava ele a nível de grupo de combate numa Tabanca, que estava a ordenar, quando, à noite, teve um ataque feroz. Chovia que Deus a dava e as valas estavam cheias de água.

Começaram a responder ao fogo inimigo sempre debaixo da chuva torrencial. Com a chuva e a lama, as armas iam encravando. Por fim, só havia uma arma a disparar mas foi o suficiente para o inimigo não avançar.

Se aquela arma tivesse encravado, tinham sido todos apanhados à mão. Nossa Senhora lhes valeu. Nestas ocasiões dividia-se o trabalho. Uns abriam os cunhetes de munições, outros municiavam os carregadores e outros disparavam.

3. Passados tempos, encontrei-me na mesma posição, ou seja, s6 com o meu grupo de combate no perímetro de Dulombi, a companhia fora e um novo ataque durante o dia.

Desta vez estava na messe e corri para o abrigo de transmissões que era ali perto. Atrás e agarrado a mim, veio o Furriel Cabral, de etnia papel. Como não tínhamos armas e estávamos no meio do perímetro, no abrigo de transmissões, resolvi pedir apoio aéreo.

Ao fim de 15 minutos apareceu um Fiat. O fogo inimigo acabou de repente e nunca mais houve ataques ao novo aquartelamento durante o dia.

4. Como esta zona estava a aquecer, foi enviada uma companhia para nos reforçar e fazer patrulhamento em profundidade, de forma a permitir- nos tomar a iniciativa da ofensiva.

Com esta companhia apareceu um amigo meu, o Kiko Salema, de Oeiras. Lá lhe arranjei uma cama para ficar. Como não havia camas e os abrigos estavam cheios, tive de arranjar uma solução para o Kiko. Como durante a noite estava sempre um soldado da sentinela, que se ia revezando, aproveitei essa cama para ele dormir. Mas como o soldado quando regressava tinha a cama ocupada pelo Kiko, ia acordar o soldado que o ia render, e deitava-se na cama dele, e assim sucessivamente.

Assim durante o período que o Kiko lá esteve, os meus soldados deitavam-se numa cama e acordavam noutra por efeito da rotação. Tudo se fazia de boa vontade, para ajudar o próximo.

5. De Dulombi tínhamos de ir às vezes a Galomaro para fazer colunas de reabastecimento. Numa dessas colunas saímos de Dulombi cedo e passámos a bolanha que estava logo a seguir ao aquartelamento. Como íamos com os carros vazios, passávamos bem por todo aquele lamaçal. No regresso, vínhamos carregados, era um inferno.

O terreno estava encharcado e os carros enterravam-se. A solução era lançar o guincho que os Unimog tinham à frente, a uma árvore, para com esta ajudar a safar o carro. Havia também muitos carros que nem com o guincho saíam do lamaçal. Nestes casos tínhamos de descarregar o carro, puxá-lo, e carregá-Io de novo. Este episódio podia repetir-se várias vezes. As colunas levavam horas a percorrerem poucos quilómetros. Era um desespero.

Como os carros resvalavam no lamaçal, nem sempre os carros da frente pisavam o mesmo trilho. Nessa coluna à ida não picámos a estrada e à volta detectámos uma mina. Já lá devia estar antes. Nossa Senhora fez com que o carro resvalasse e não pisasse a dita mina.

6. Um dia à noite estávamos a conversar à porta do bunker do Capitão. De repente o Alferes Rijo diz:
- Olha uma estrela cadente.

Qual quê! Era a primeira bala tracejante do IN, que dava início a mais uma flagelação. Entrámos de rompante pela entrada estreita do bunker do Capitão. Todos quisémos entrar ao mesmo tempo. Lá dentro, foi uma risada. Naquela altura não havia cerimónias.

Uma vez que vivemos muito de perto com os Fulas, quero deixar aqui a impressão com que fiquei deles. Era gente séria e trabalhadora, com hierarquia bem definida e muito respeitada. Eram os homens grandes que, em conselho, davam as orientações que eram por todos respeitadas. A religião era muçulmana. Eram também leais e não conheciam a falsidade, a manha ou a velhacaria. No entanto eram supersticiosos.

Quanto ao inimigo, os que andavam no mato, o comportamento era igual. Estes iam passar férias a Bissau, assim como nós íamos à Metrópole. A luta era só no mato, não havia a cobardia do terrorismo urbano. Tinham um código de conduta mais digno que muitos ditos civilizados.

Contavam-se histórias de entente cordiale com o inimigo. Contaram-me que havia companhias que deixavam regularmente alimentos em determinados pontos. Por sua vez o inimigo não colocava minas nos itinerários assim como não fazia flagelações ou emboscadas.

Não houve outro povo no mundo que se tivesse ligado tão bem com os africanos como nós. O povo Cabo Verdiano é bem o exemplo disso. Salazar teve na gaveta da sua secretária o decreto que tornava Cabo Verde em llhas Adjacentes. Não o quis fazer ou não encontrou oportunidade.

A moeda circulante na Guiné era chamada o peso e valia menos 10% que o escudo. O nome corrente do dinheiro era patacão. Manga de patacão queria dizer muito dinheiro.

A minha comissão aproxima-se do fim. Chegámos à Guiné como rapazinhos e saímos como homens amadurecidos à força pela luta pela sobrevivência e desgastes físico e psíquico. O nosso facies torna-se mais carregado e ganhamos uma ansiedade natural pelo tempo que não passa.

Vou dar um exemplo para ilustrar a diferença. Numa operação que fizemos ainda em Mansoa, pouco tempo depois de termos chegado, dormimos no mato. O inimigo, que andava por perto, lançou uma rajada de arma automática sobre nós. Estava inseguro pois não sabia bem a nossa localização. Não respondemos ao fogo.

Eu estava a dormir e não dei por nada. No dia seguinte diz-me um soldado meu:
- Então, meu Alferes, ouviu as rajadas que eles nos atiraram? - É claro que não.

A dois meses do fim da comissão, como não conseguia dormir capazmente, tinha pedido à minha mãe que me enviasse uns comprimidos para dormir. Para descansar, tomava dois Mogadans antes de me deitar.
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior:

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi


Guiné > Bissau > 1970 > Vista aérea da cidade, com o ilhéu do Rei, ao fundo, frente ao porto. Ao centro, a Praça do Império e o palácio do Governador.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XVII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 43-44 (1).


O PODER DA ORAÇÃO

Enquanto estivemos a nível de grupo de combate, por sugestão de um dos meus soldados, começámos a rezar o terço diariamente.

O meu grupo de combate foi o único que não teve baixas.


NATAL de 1969

Aproximamo-nos do segundo Natal passado na Guiné. À medida que o tempo passava parecia que os dias custavam mais a escoar e começava a crescer em nós a ansiedade do tempo passar mais depressa. Foi um Natal sem história.


MAIS UMAS FÉRIAS

As saudades de casa vão-se avolumando. Surgem em Janeiro as últimas férias. Estas férias não têm história à excepção de um caso que se passou em Bissau. Encontro um grande amigo meu, o Zé Espírito Santo, que estava instalado na Casa Gouveia, pertença de sua família, em trânsito para o mato. Foi uma festa. Nunca mais o vi. Deve ter passado um mau bocado na voragem do 25 de Abril.


NOVAMENTE o REGRESSO

No regresso destas férias, a Sra. D. Beatriz Nascimento (2) convida-me para ir jantar a casa dela. Muito atrapalhado me senti naquele jantar, pois quem estava à mesa além do dono da casa? Do Q. G. estava quase todo o Estado Maior, e do Comando-hefe o Brig Lopes dos Santos. Estava também presente o Padre Pedro Gamboa, Capelão Militar. Reconheceu-me. Ele tinha sido o orientador espiritual no Agrupamento de Escuteiros onde eu tinha andado.

Este Agrupamento estava instalado numa garagem do Palácio do Conde de Rio Maior, que gentilmente no-la cedeu, na Rua das Portas de Santo Antão, logo depois do Ateneu, [em Lisboa].

Terminado o jantar e o serão, o Brig Lopes Santos levou-me até ao Grande Hotel. Era e é uma simpatia. De caminho vai-me dizendo que na semana anterior tinha ido de heli visitar uma terra chamada Dulombi. Mais nada me acrescentou.

Deixa-me à porta do Hotel e eu fico à espera na beira do passeio que o senhor se afaste.

Qual o significado do que me disse de ter ido a Dulombi? Qual era a situação?

Passados anos, o meu cunhado António Brás Teixeira é convidado para ir como Director para um Banco em Moçambique. E lá seguiu ele, a minha irmã e os cinco filhos. Foram como se diz à Senhora da Asneira. Tudo lhes correu mal. A minha irmã perdeu dois filhos em Lourenço Marques. Um à nascença e outro com poucos meses de idade.

Quizeram fazer de África terra pagã após a descolonização, mas África está cheia de cristãos.
Ainda guardo as cartas que os meus sobrinhos me escreveram. Eram uma delícia. Ou seja, eles ditavam e a minha irmã escrevia.

Ao fim de algum tempo, o meu cunhado foi convidado pelo Governador, ao tempo o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, para Secretário Provincial. A tomada de posse foi no Salão Nobre do Ministério do Ultramar, sendo o ministro o Dr Silva Cunha.

Na cerimónia de posse estava presente o Brig Lopes dos Santos, então Governador de Cabo Verde. Acabados os discursos, as assinaturas e as cortesias, vou cumprimentar o nosso Brigadeiro, que exclama:
- Olha o Alferes de Dulombi!

Que memória!

Voltemos à situação de expectativa em que o Brig Lopes Santos me deixou por causa de Dulombi.

Como Madina do Boé tinha sido evacuada [em Fevereiro de 1969], a metralha que o inimigo lá descarregava tinha de ser usada noutro sítio. Assim, a zona de Galomaro, que era perfeitamente pacífica, deixou de o ser. Para lá tinha ido uma companhia de Pára-quedistas para reforçar a zona e manter o inimigo à distância.

Estávamos em Fevereiro de 1970 e contávamos, por tudo o que já tínhamos passado, ir para os arredores de Bissau, para o descanso, pois a nossa comissão terminava em Maio.

Dulombi ficava a sul de Galamaro. Será que ainda tínhamos de ir para lá? Passado pouco tempo de chegado à Companhia surge a ordem para a [CCAÇ] 2405 seguir para Dulombi para instalar um aquartelamento.

A desmoralização foi muita. Íamos para pior e bem pior.

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior, de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

(2) Esposa do Brigadeiro Nascimento, 2º Comandante Militar, aquando da chegada do Paulo Raposo à Bissau, em Agosto de 1968: vd. post de 5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > Momentos de descontracção e de convívio. O Alf Mil Paulo Raposo é o único do grupo que está vestido à civil.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 42-43 (1).


AS COLUNAS

Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.

Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.

1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimog.

Um dos outros encantos de África é o convívio. Passamos a ser bons contadores de histórias. Como não há distracções é o convívio que prevalece. Histórias e episódios havia-os para todos os gostos. A televisão e as novelas não só mataram o convívio familiar como mataram também o convívio e as tertúlias de café.

O nosso Capitão Portugal contou-me ele, tinha estado no Comando Distrital da PSP, quando foi lançada a muita ao peão, em Lisboa. Sim, quem atravessasse uma rua sem ser nas passagens de peão, pagava uma multa de 2$50. Isto talvez se tivesse passado no ano da 1955. Era um pouco caricato. As histórias da reacção de cada um eram sensacionais.

Houve um Senhor, contou ele, que ao ver-se confrontado com a multa de 2$50 pediu ao polícia para lhe vender toda a caderneta das multas. Cada um reage de forma diferente às situações que se deparam e estas variam também consoante o momento.

2. O nosso Capitão [da CCAÇ 2405, Cap Mil José M. N. Jerónimo] não tinha carta de condução, mas não se confessava. A muito custo conseguiu arranjar um jeep para andar nas suas voltas em Galomaro.

Numa ida a Bafatá ele lembrou-se de ir a conduzir o Unimog e eu seguia ao lado. Surge uma curva, ele não abranda, o carro foge-lhe, entra terra dentro e vira-se sobre o meu lado. Por esse facto não consigo saltar. Agarro-me ao banco e abaixo-me. Como os taipais eram mais altos, Nossa Senhora me salva.

Atrás nos bancos que estavam montados costas com costas, seguiam vários militares. Todos saltam excepto o Furriel Vagomestre (2). Teve medo, não saltou, e o carro passa-lhe por cima e parte-lhe a coluna. Segue para Bissau em heli, mas vem a falecer no dia seguinte.

Como a Companhia ficou sem Vagomestre, eu cedo um Furriel do meu Grupo, o Ferreira (3), e o Cândido, que era do Alferes David, vem substituir aquele.

Fiz uma grande amizade com o Cândido (4), que era de Beja. Terminada a Comissão convidei-o para vir trabalhar comigo. Ainda estamos juntos.

Ele é o responsável pela minha fábrica. É uma jóia de rapaz, posso-lhe confiar tudo e ele pode contar comigo seja para o que for.

Já vai para 27 anos que trabalhamos juntos sem nunca ter havido qualquer atrito.

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Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, de 10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(2) Arnaldo R. Fonseca (Fonte: História do BCAÇ 2852)

(3) Adriano M. Ferreira (Fonte: Idem)

(4) Cândido R. Trombinhas (Fonte: Idem)

segunda-feira, 10 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Alf Mil Raposo, com o Fur Mil Ribas e mais alguns soldados, fotografados com uma giboia morta.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > Aspecto da tabanca local.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 > O Paulo Raposo com um homem grande

Texto e fotos: © Paulo Raposo (2006)


XIV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 40-41 (1).


Regressamos à rotina

Vivíamos pois no meio da população e nunca tivemos qualquer tipo de problemas. Em que condições íamos para lá? Aos soldados era-Ihes dado um colchão pneumático Repimpa de cor verde-tropa, igual aos que se utilizam na praia. As formigas baga-baga tinham umas tenazes que chegavam a ferir. Resultado: no dia seguinte o colchão estava furado, o ar ia-se e os rapazes passavam a dormir no chão.

No que me diz respeito, levava a minha cama, colchão, mosquiteiro, frigorífico e cimento, que roubava ao Furriel Tavares, para pavimentar a Tabanca (2) aonde ia dormir.

No exterior desta colocava um tambor aberto para receber água, e, com duas esteiras, uma no chão e outra lateral, fazia uma casa de banho onde diariamnete, ao fim do dia, tomava o meu banho e fazia a barba.Junto à cozinha, fazíamos um forno para cozer pão. Tínhamos sempre pão fresco.

Sempre achei que pelo facto de viver nesta adversidade deveria manter uma postura limpa e civilizada. Mudava de roupa constantemente, que era lavada por uma mulher local, que dava cabo dela em pouco tempo. Tinham o hábito de lavar a roupa com pedras, pois sabão era coisa que conheciam pouco. Todo este serviço era gerido pelo meu impedido, o Figueiredo.

Vou contar alguns episódios que se passaram quando estive nas Tabancas a nível do meu grupo de combate (3). Os africanos tinham umas cadeiras de verga compridas, construídas por eles, para se estenderem à porta das Tabancas para fumarem o seu cachimbo. Com o incómodo do calor, era também estendido numa daquelas cadeiras que eu arranjava posição para ler.

Um dia estava eu numa dessas cadeiras, debaixo de uma árvore, à sombra, a ler, quando de repente vejo o que me parecia uma folha muito verde, a mexer-se com o vento.

Fixo melhor a vista, e então o que era? Uma serpente muito verde que não tinha mais de um palmo. Vinha na minha direcção ou na direcção da árvore. Dou um salto. O cozinheiro, que passava ali por perto, assistiu à cena, vai buscar a G3 e, com um único tiro, corta a cobra que já estava em cima da árvore, em dois.

Com este alvoroço, aparecem uns africanos, que logo explicam:
- É a serpente mais venenosa que há! - Quando os africanos sobem aos coqueiros e vêem lá uma atiram-se ao chão pois preferem partir uma perna do que serem picados por ela.

Nunca vi ninguém com mais pontaria do que aquele rapaz que fazia de cozinheiro.
Na cozinha tínhamos, além do cozinheiro, o adjunto que ia rodando. Um dia calhou a vez a um rapaz a quem chamávamos de picapau. Já estava bem apanhado pelo clima. Quando havia galinha ou frango para comer, o nosso picapau primeiro depenava o bicho e só depois é que lhe cortava o pescoço.

Como as nossas ementas não variavam muito, resolvi uma vez, por minha iniciativa, comprar uma vaca. Além de ser uma distracção, era uma oportunidade de comermos uns bons e belos bifes.

Os soldados, que muito gostaram deste programa, lá mataram e cortaram o animal. Comemos umas belas refeições e ainda sobrou muita carne que foi guardada cuidadosamente no meu célebre frigorífico de campanha.

Neste entretanto passa pela nossa Tabanca uma companhia de pára-quedistas, que vinha com dois grupos de combate. A solidariedade em Africa é ou era uma coisa que só vista. Fizemos pão e demos de comer a toda aquela gente, quando no fundo nós éramos bem menos do que eles.

Verdade se diga que o Capitão daquela companhia me recebeu na base dos Páras, em Bissau, como um VIP. Tinha o sentido da gratidão.
___________

Notas de L.G.

(1) Vd último post > 6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(2) Tabanca é sinónimo de povoação, composta por um conjunto de moranças (habitações familiares, de forma redonda ou rectangular) que, por sua vez, podiam era constituídas por mais do que uma casa ou palhota. A generalidade dos militares portugueses também usava o termo para designar uma morança ou, melhor, uma palhota. As casas melhores, com mais do que uma divisão, de forma rectangular, eram de tijolo de adobe, rachas de cibe e cobertura de colmo (ou até zinco, fornecido pela tropa). O Paulo Raposo refere-se aqui a tabanca como sinónimo de aglomerado habitacional ou casa.

(3) Vd. outros posts, da minha autoria, relacionados com tabancas em autodefesa:
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

Excertos do diário de um tuga (3). Texto de L.G.:


15 de Agosto de 1969:

1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Oio.

É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel, uma base de guerrilheiros a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam. Até Farim é tudo terra para queimar. Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da 'mata do Óio' como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte
(...)

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela

quinta-feira, 6 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos (1).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O temível helicanhão. Um Alouette III, com canhão lateral de calibre 20 mm.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo (à direita) com o Furriel Mil Veiga Pereira

Fotos: © Paulo Raposo (2006)

XIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 38-40 (1).

Operação ao Fiofioli

A mata do Fiofioli era uma mata bem controlada pelo inimigo. Era um tufo rodeado de bolanha por todos os lados, fazia lembrar uma ilha.

Para se desalojar o inimigo, preparou-se uma grande operação, prevista para durar oito dias, com várias companhias envolvidas. Todo o abastecimento tinha de ser feito por heli. E lá fomos mais uma vez.

Houve um dia que os helis não conseguiam descer para nos abastecer de água devido à vegetação densa. Passámos muita sede. Nesse dia tivemos de beber água de um charco lamacento. Como? Tirámos o quico, nome que dávamos ao boné, que estava todo sebento, enchemo-lo de lodo, e, por baixo, íamos apanhando a humidade às gotas. Só acredita quem por lá passou.

Para as operações é costume contratar carregadores locais, para nos levarem água adicional e munições. Habitualmente não fugiam e era uma forma de dar trabalho na região. Por vezes a verba disponível para estes serviços era gasta em falsos contratos, e eram os soldados que tinham de carregar com os pesos.

Estas operações mais compridas eram muito penosas e assim eu, por minha conta, contratava um carregador para me levar a arma, bebidas e comida adicional. O que mais apreciávamos comer no mato era a fruta em calda. Era refrescante e o sumo tinha o açúcar necessário para nos dar as forças suficientes para a caminhada. Por desidratação, em cada operação, perdíamos sempre vários quilos.

Fomos para a operação, que se previa difícil e penosa. Logo à saída o Capitão teve um ataque de asma, e acabou por não ir. Aquilo ficava longe.

As baixas até ao fim da operação foram muitas, umas por exaustão, outras por oportunismo. Um dos meus rapazes, que transportava o cano da bazuca, a meio da operação, quando passou por perto de um heli, meteu-se nele para ir embora, deixando no chão o tubo abandonado.

Para esta operação fomos munidos com redes para nos protegermos das abelhas. Largámos para a operação e, depois de caminharmos durante muito tempo, estacionámos à noite em frente à mata do Fiofioli, antes da bolanha, para nos prepararmos para o ataque.

Ao pé do meu grupo de combate estavam os Ten Cor Hélio Felgas e Banazol, que acompanhavam a operação connosco.

No dia seguinte, de madrugada, partimos rumo ao desconhecido. Atravessámos a bolanha e nada. Entrámos na mata e nada. Por fim entrámos no aldeamento inimigo que estava vazio. Toda a população tinha fugido. As casas eram boas, todas escondidas debaixo das árvores, para não serem vistas pela Força Aérea.

De lá trouxe um livro do inimigo, que ensinava as crianças a ler. Depois foi o regresso. Mais uma penosa caminhada. Os helis andavam no seu vai vem abastecendo-nos de água e rações de combate. Tínhamos de ser nós, os oficiais, a tomar conta da água e a distribuí-la por todos igualmente. Os helis eram assaltados se não tivéssemos organizado este sistema.

Continuámos o caminho de regresso e tivemos uma pequena troca de fogo com o inimigo e, em simultâneo, um ataque de abelhas. Pusemos as redes na cabeça e continuámos a andar. O nosso medo das abelhas era maior que o medo do fogo do inimigo.

Eu também fui evacuado. A companhia terminou esta operação com muitas baixas, para desespero do Capitão. E novamente retomámos a nossa rotina nas Tabancas em Auto Defesa.
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Nota de L.G.

(1) Sobre a Op Lança Afiada (Março de 1969), vd. os seguintes posts:

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(...) "O IN sofreu 5 mortos confirmados (contando com o que tentou fugir na última noite) e cerca de 20 feridos" (...)

(...) "Foram capturados 17 nativos, na sua maioria mulheres" (...)

(...) "AS NT não tiveram mortos. Sofreram 22 feridos, quase todos ligeiros. Tiveram ainda cerca de 110 elementos evacuados por insolação, ataque de abelhas e doença" (...)

(...) "Só muito raramente foi encontrada água bebível. Alguns poços foram atulhados pelo IN ou estavam já secos. Outros continham água negra ou meia salgada que só os carregadores conseguiram beber. Quando, junto de Gã Júlio, por exemplo, os soldados metropolitanos quiseram seguir o exemplo dos carregadores tiveram que ser evacuados uns 16 com febre alta.

"Centenas de galináceos e cabritos ou leitões foram capturados e comidos em tabancas abandonadas, compensando assim um reabastecimento alimentar que se revelou algo deficiente quer em qualidade quer em quantidade" (...).

(...) "Não houve propriamente acção aérea se por acção aérea se pretende significar: apoio aéreo pelo fogo. Só no dia 12 de Março, o helicanhão actuou na margem oposta do Rio Corubal contra a tabanca de Inchandanga Balanta. E em 14 de Março, a FA [ Força Aérea ] bombardeou a mata de Fiofioli, não tendo as NT notado no dia seguinte quaisquer vestígios deste bombardeamento. Não se teve conhecimento de outras acções aéreas pelo fogo" (...).

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

Operação realizada de 8 a 19 de Março de 1969, entre a margem direita do Rio Corubal e a linha Xime-Xitole

(...) "Total dos efectivos (1291) empregues: (i) Militares:36 oficiais; 71 sargentos; 699 praças; (ii) Milícias: 106; (iii) Guias e carregadores 379" (…) .

(2) Vd. último post> 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

segunda-feira, 26 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

Guiné > Bissau > 1969 > O pai do Paulo Raposo, de férias, no Grande Hotel... Em Setembro desse ano, o nosso camarada estava em Galomaro quando recebeu a terrível notícia de que o seu pai acabava de falecer em Lisboa. Igualmente o nosso camarada Victor David (também na altura Alf Mil da CCAÇ 2405) passou, durante a sua comissão, por esta dura provação, a de perder o pai.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 35-38 (1).


O regresso a Bissau

Aterrámos em Bissau como uma pedra. Dizem que são as melhores aterragens, pois as más são aquelas que nós não sentimos. É como as granadas e os tiros: os que nos são destinados, não os sentimos. Aberta a porta do avião, saímos sem pressa.
O calor e a humidade eram tantos que parecia que estávamos a entrar numa casa de banho onde alguém tivesse acabado de tomar um banho muito quente. Desta vez, não fui para o Grande Hotel, mas antes para uma cama que o João Saldanha me arranjou em casa dele.

Apresento-me no Quartel General e, por razões de que já não me recordo, perco a ligação aérea militar para Bafatá. Era um Dakota que fazia esse serviço. Como não havia outro transporte tão cedo, peço ao Alferes Bobone, que estava a tirar o brevet, para me levar a Bambadinca, que eu lhe pagava o tempo de vôo do Aeroclub, que era barato.

O Bobone era Chefe de Gabinete do Brigadeiro Spínola, portanto só me podia levar à hora do almoço, que, em Bissau tal como em toda a África, tinha a sesta como complemento. Fui almoçar a casa dele, pois ele tinha lá a mulher, e seguimos para o aeroporto, aonde nos aguardava o instrutor, que também seguiu.

O avião era um Auster, avião de três lugares, forrado a lona. Lá fomos, eles à frente e eu atrás, a ver se tudo corria bem. Voamos alto para não termos surpresas e, como o avião é lento no ar, parecia que estávamos parados. Ao fim de meia hora aterrámos em Bambadinca na pista de terra batida. Tudo bem.

A chegada de um meio aéreo, numa terra aonde não acontece nada, é sempre um acontecimento. Fomos para o bar tomar one for the road. Depois das contas feitas e das despedidas, o Bobone meteu-se no Auster para regressar, mas o motor não pega. Que se passa?

Ligamos para Bissau via rádio, e o chefe instrutor do Aeroclub, entre muitas coisas, diz para vermos se os cabos que ligam os borries da bateria estavam bem apertados. É claro que não, estava um solto. Foi apertado e lá seguiram. Spínola deve-lhe ter puxado as orelhas pelo atraso.

Um dos nossos passatempos nos períodos de pausa era contar histórias. O Bobone contou que um dia Spínola sentou-se na sua mesa de trabalho e com o braço, atira tudo o que estava em cima da mesa para o chão. Depois respira fundo e diz:
- Vamos trabalhar.

Coitado, era o peso da responsabilidade e era o feitio de quem se preocupa. Foi por esse seu feitio que mais tarde o apanharam. Não era uma pessoa fria. Spínola era sem dúvida um bravo. Os pilotos de heli não gostavam de voar com ele.
Se ele via uma aldeia, mandava o piloto descer, fazia uma alocução à população e seguia. Não se importava se a aldeia era controlada por nós ou pelo inimigo. Almeida Bruno passou as passas do Algarve com ele por causa destas incumbências.

No funeral do Brig. Nascimento, no Cemitério dos Prazeres, o Brig. Spínola aguentou estoicamente a carga de água que caíu, aquando das cerimónias. Não vacilava.

Novamente no Leste

Estamos em junho. Regressado à rotina de Tabancas em Auto Defesa, chega o primeiro correio e nesse correio vem uma carta de meu pai e outra de minha mãe muito estranha, que diz:
- O teu pai está melhor.

Esta era portanto a segunda carta de minha mãe, pois por capricho de destino a primeira ficou para trás. Sigo de imediato para Bafatá, o único local de onde se podia telefonar para Lisboa.

Depois de longa espera, consegui falar com a minha mãe. Naquela época pedia-se o número, e as centrais manuais iam pedindo sucessivamente o número até ao destino e, por fim diziam "está ligado".

A minha mãe contou-me então a triste história. Meu pai, passados dias após a minha partida, teve um acidente vascular cerebral. Entrou em coma e veio a falecer ao fim de três meses. Eu julgava que não era coisa que não me podia acontecer, e ainda hoje acho que é mentira.

A nada assisti. Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:
- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem.

Uma rápida vinda a Lisboa

Devo gratidão a todos estes amigos. Foram horas muito difíceis. Chego a Bissau no heli e vou para o Grande Hotel, para embarcar para Lisboa no dia seguinte. À noite vou jantar com o Francisco Ramos. Eu, que não sou de muitas falas, não me calo durante o jantar.

Era uma realidade que eu não queria aceitar. A viagem de avião foi um martírio. Da tristeza para o que ia e de alívio por folgar durante um tempo o buraco da Guiné. Chego a Lisboa e vejo a minha mãe toda vestida de preto, como nunca a tinha visto. O funeral já se tinha dado. Vou para casa e esta parecia vazia. Ainda assisti à Missa de 7º dia na Igreja de S. Nicolau. A Igreja ficava por cima da casa comercial que o meu pai tinha na Rua da Prata. A Igreja estava repleta, embora a família não estivesse completa. Passados dez dias estou de regresso àquele inferno.

Ao Alferes David, [igualmente da CCAÇ 2405], passados meses, sucedeu-lhe a mesma coisa. Perdeu o Pai em circunstâncias idênticas. Houve muitos casos destes.

Novamente o regresso

Mais uma despedida no aeroporto e uma viagem sem história, toda feita de noite, com a habitual escala em Cabo Verde.

Regresso de novo à rotina de Tabancas em Auto Defesa.

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Nota de L. G.

(1) Vd. post de Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal

(...) "No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.

"A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós" (...).