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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27300: Casos: a verdade sobre... (58): O inferno de Contabane, na noite de 22 de junho de 1968... Não consta do livro da CECA sobre a actividade operacional no ano de 1968... Felizmente temos a versão do Manuel Traquina e Carlos Nery, da CCAÇ 2382


Guiné > Região de Bafatá > Carta de Contabane  (1959) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Contabane, Saltinho, Rio Corubal e Quirafo. (Nesta altura não havia Sinchã Sambel, a um escasso quilómetro do Saltinho, na margem direita do rio Corubal).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

1. A propósito da morte recente do Suleimane Baldé (1938-2025)(*), régulo de Contabane, e antigo militar do recrutamento local que integrou as NT (primeiro como milícia e depois como 1º cabo do  Pel Caç Nat 53, 1968/74), vem-nos à memória o medonho ataque do PAIGC à sua tabanca natal: foi riscada do mapa pelos homens do 'Nino' Vieira (**). Sem dó nem piedade.  (Mas também levou  a sua conta, o 'Nino',  com vários mortos e feridos graves.)

Não sabemos onde é que o filho do régulo Sambel Baldé e da Fatumatá estava nessa noite. Não estaria lá, em Contabane.  O Zé Teixeira  diz que o conheceu (e privou com ele) na "segunda metade do ano de 1968 em Mampatá Forreá, onde ele estava colocado na Milícia local". 

Foi já depois da data do ataque a Contabane que a companhia do Zé Teixeira, a CCAÇ 2381, foi para Buba, em 18/7/1968, em reforço do BCAÇ 2834. Em 8/8/1968, por troca com a CCAÇ 2382, assume a responsabilidade do subsector de Aldeia Formosa, com pelotões destacados em Chamarra, de 10/7/1968 a 8/2/1969. Fica então integrada no dispositivo e manobra do COSAF/COP 1 e depois do BCaç 2834.

É possível que o Suleimane pertencesse ao Pel Mil 135 / CMil 11 (que estava em Buba, com uma secção em Mampatá). E que nesse ano tenha entrado para o Pel Caç Nat 53, que veio do Xime para o Saltinho. Teria já 30 anos. Como não havia registo civil, a idade era sempre imprecisa. Com 30 anos um europeu já era velho para a tropa. Com 30 ou mais um fula ainda era um " mancebo". 

Em 22/6/1968, a CCAÇ 2832 tinham dois pelotões em Mampatá e outros dois em Contabane (mais o comando, incluindo o cap mil Carlos Nery em pessoa, o cmdt da companhia).
 
No livro da CECA - Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974) (6º Volume: Aspetos da Atividade Operacional, na Guiné no período de 1967/70), só há 7 referências a Contabane e 8 à CCAÇ 2382... 

E infelizmente não há uma única  linha sobre este violentíssimo ataque, de 3 horas de duração,  com um arsenal de armas coletivas (canhão s/r, morteiro, LGFog, metralhadoras com balas tracejantes e incendiárias) à tabanca e destacamento de Contabane...  (felizmente tinha um perímetro de arame farpado e alguns abrigos mais ou menos improvisados).

A povoação ficou reduzida a cinzas e os nossos camaradas perderem praticamente todos os seus haveres, víveres e até equipamentos.  O destacamento será abandonado. A tabanca seria mais tarde reconstruída, no Saltinho, na margem direita do rio Corubal, com a ajuda fundamental da CCAÇ 2701. Passou a designar-se Sinchâ Sambel, em homenagem ao pai do Suleimane Baldé.

O brigadeiro António Spínola tinha acabado de chegar ao CTIG, em 24 de maio de 1968.  Onde meses depois, em 14 de abril de 1969, durante o "briefing" que fez  por ocasião da visita à Guiné do Presidente do Conselho, Marcello Caetano, acompanhado pelos Ministro do Ultramar, Secretário de Estado da Informação e Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, disse  (deixando um recado bem claro ao poder político):

(...) "Dentro da política realista de estrita economia de meios, e perante a não satisfação, em tempo oportuno, dos meios de combate e de apoio solicitados em novembro (de 1968, e então considerados pelo SGDN  (Secretariado Geral da Defesa Nacional) de urgência imediata, e respeitando o princípio da concentração de meios nas zonas de esforço - princípio básico da manobra militar - tivemos que desmilitarizar algumas áreas do Leste e do Sul da província.

À luz deste condicionalismo, foram desmilitarizados os seguintes pontos: 

  • Banjara, 
  • Beli, Madina do Boé, 
  • Ché Che
  • Contabane, 
  • Colibuia, 
  • Cumbijã, 
  • Ponte Baiana, 
  • Gandembel, 
  • Mejo, Sangonhá, 
  • Cacoca, Cachil, 
  • Ganjola 
  • e Gubia." (CECA, 2015, pág. 401)"

Há muito que se sabia   do crescente incremento da actividade lN na região de Forreá-Contabane.  


2. Claro que esta omissão (a referência ao ataque a Contabane) não tem nada a ver com o "branqueamento" desta situação (que foi, de facto, um revés para as NT), mas resulta, sim, em grande parte, da insuficiência de fontes de consulta, bem como da metodologia seguida pelo grupo de trabalho.

O segundo livro dos "Aspectos da Actividade Operacional - Guiné" abrange o período de  de 1967 a 1970 (4 anos).

(...) "Tal como se referiu na primeira obra são completamentares os livros editados pela Comissão para os Estudos das Campanhas de África: 1° volume - 'Enquadramento Geral'; 7° volume - Tomo II Guiné - 'Fichas das Unidades'; 'Subsídio para o estudo da doutrina aplicada nas Campanhas de África', no respeitante à logística no Teatro de Operações da Guiné.

O trabalho foi conduzido pela recolha de uma compilação de elementos, resumo e extractos alicerçados em documentos oficiais como directivas, ordens, planos, normas de execução permanente e diversos relatórios de comando, pessoal, informações, operações e logística. 

As matérias que são referidas, eram na maioria, no respeitante à segurança, classificadas, exigindo a aplicação de medidas de segurança que recebiam consoante os inconvenientes que podiam causar a sua divulgação em graus que iam desde o reservado, confidencial e secreto até muito secreto. 

Posteriormente foi proposta e autorizada a desclassificação dos documentos pelo que não são agora mencionados os graus que lhes tinham sido atribuídos à época.

Circunscrevemo-nos à consulta dos documentos produzidos à data na Metrópole e aos que na altura foram efectivados e encaminhados para Portugal Continental. Os que foram elaborados e arquivados nos CCFAG e CTIG, embora tenham sido enviados de lá e armazenados no extinto BCaç nº 5, acabaram por ser destruídos num incêndio. Devido a este, não se pode lucrar com o conhecimento dos seus conteúdos.

As fontes de consulta ficaram limitadas aos arquivos dos SGDN, ARM, CECA e do testemunho de alguns militares. [Gralha: a sigla ARM deve ser AHM - Arquivo Histórico Militar; ARM não vem na lista das abreviaturas do referido livro da CECA]

Sobre as operações e acções tácticas executadas no TO da Guiné são mencionadas as ajuizadas como mais relevantes.

Sendo este trabalho sobre a actividade operacional é nossa intenção destacar, também, o esforço apreciável dos militares no apoio à população na sua defesa, educação, saúde, contrução de aldeamentos e vias de comunicação.

Prestamos homenagem aos Oficiais, Sargentos e Praças, que combateram até ao risco da própria vida, com muita dignidade e valor e cumpriram múltiplas e difíceis missões em prol da população.
Consideramos que a actuação dos militares na Campanha da Guiné, merecidamente, deve constituir um exemplo." (CECA. 2105, pág. 7).

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015), 607 pp.

(Pesquisa, revisão / fixação de texto, negritos LG) (***)
__________________

Nota do editor LG:

(*) Vd. poste de 9 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27299: In Memoriam (559): Suleimane Baldé (1938-2025), régulo de Contabane, ex-1º cabo do Pel Caç Nat 53 (1968-1974), filho do régulo Sambel Baldé e de Fatumatá; fica inumado, simbolicamente, à sombra do nosso poilão, no lugar nº 908


27 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25690: 20º aniversário do nosso blogue (16): Alguns dos melhores postes de sempre (XII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte II: a versão de Carlos Nery, na história da unidade (pp. 10,11,12 e 13)

(***) Último poste da série > 5 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27287: Casos: a verdade sobre... (57): a emboscada de 1 de outubro de 1971, em Bangacia (Duas Fontes), Galomaro, Sector L5, ao tempo do BCAÇ 2912 (1970/72) (António Tavares / J. F. Santos Ribeiro / Vasco Joaquim / Paulo Santiago)

Guiné 61/74 - P27299: In Memoriam (559): Suleimane Baldé (1938-2025), régulo de Contabane, ex-1º cabo do Pel Caç Nat 53 (1968-1974), filho do régulo Sambel Baldé e de Fatumatá; fica inumado, simbolicamente, à sombra do nosso poilão, no lugar nº 908


Guiné-Bissau >  Região de Bafatá > Saltinho > Sinchã Sambel > 2015 : O Zé Teixeira e o Suleimane Baldé (1938-2015), régulo de Contabane...É a foto mais recente que temos dele. Os dois conheceram-se em Mampatá, em 1968

Foto (e legenda): © José Teixeira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sinchã Sambel (antiga Contabane) > 3 março de 2008 > O Suleimane Baldé, régulo de Contabane, à direita o Pedro Lauret, e à esquerda o Paulo Santiago, seu antigo comandante, quando ele era, em 1970/72, 1º cabo do Pel Caç Nat 53. Foto tirada por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de março de 2008)

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Matosinhos > Tabanca de Matosinhos > s/d > O Suleimane Baldé, ao centro, à sua direita, o Paulo Santiago, à direita o Mário Miguéis da Silva (que conheceu o Suleimane no Saltinho, em 1970) e de perfil o Zé Teixeira.

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Paulo Santiago (ex-alf mil, cmdt, Pel Caç
Nat 53, Saltinho, 1970/72)

Paulo Santiago


Data - 8 out 2025 11:38

Assunto - In memoriam: Suleimane Baldé

Soube há pouco, por telefonema do Zé Teixeira, da morte súbita, ontem, do Suleimane Baldé, antigo 1º cabo do Pel Caç Nat 53 que comandei entre out/70 e ago/72.

O Suleimane, filho do Sambel Baldé e da Fatumatá (morreu aos 100, em 2010),  herdou do pai o regulado de Contabane. 

Em outubro de 1970 eu era um puto ao lado do Suleimane, dez anos era a diferença entre os meus 22 e os dele 32. Fomos bons camaradas.

Ficou algumas vezes em minha casa, quando de vindas a Portugal. 

A foto em anexo  foi tirada numa dessas vezes. Aconteceu na Tabanca de Matosinhos, na imagem Mário Miguéis, que conheceu o Suleimane no Saltinho, e de perfil o Zé Teixeira.

Descansa em paz, camarada Suleimane.

PS - O Suleimane Baldé foi, de facto, também  milícia, antes de ingressar no Pel Caç Nat  53. Esclareça-se, por outro lado, que os moradores de Contabane não  foram dispersos por Aldeia Formosa e Mampatá, A grande maioria,foi "instalada" junto da picada que seguia para o Xitole a cerca de 1 km do quartel do Saltinho, Foram estes antigos moradores da destruída Contabane que ajudaram militares da CCaç 2701 na construção da actual Sinchã Sambel, onde vivi os meus últimos meses de comissão.

Já no século XXI, eu e o antigo cap Carlos Clemente, hoje coronel na situação de reforma, fomos ouvidos, várias vezes, acerca de um ferimento sofrido,  junto a um ouvido, pelo 1º cabo Suleimane Baldé e que lhe provocava  perda de audição. Foi uma situação complicada. Uma operação irregular, sem relatórios escritos, com o grupo do Marcelino da Mata. Mais por declarações do Clemente,do que minhas, foi atribuída uma pensão ao Suleimane.
 

Zé Teixeira

2. Mensagem  do José Teixeira (ex- 1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70):

SULEIMANE BALDÉ, UM AMIGO QUE PARTIU PARA O ETERNO AQUARTELAMENTO. (*)

Tive o prazer de conviver com o Sulimane (como eu o tratava), na segunda metade do ano de 1968 em Mampatá Forreá, onde ele estava colocado na Milícia local. 

Suponho que já estava casado com a Naná, filha do régulo, o alferes de segunda linha Aliu Baldé, de quem guardo as melhores recordações, bem como dos seus filhos e de toda a gente com quem convivi. 

Nessa altura, não sabia que ele era filho do régulo Sambel de Contabane, a viver em Aldeia Formosa (Quebo)  depois da tabanca onde vivia (Contabane) ter sido atacada e  queimada, no dia 22 de junho desse ano.(**)

Quando em 2005 voltei à Guiné, encontrei-o na tabanca de Sinchã Sambel, no Saltinho – tabanca, onde o seu pai se fixou e com ele a sede do regulado de Contabane, agora nas mãos do Sulimane. 

Foi a esposa, a Naná,  que me reconheceu e me fez recordar, os tempos passados em Mampatá, trinta e cinco anos antes, uma surpresa profundamente agradável para quem regressava à Guiné, agora como voluntário para reviver os tempos, os bons e os menos bons, de outrora.

Foi um prazer grato voltar e encontrar o casal e solidificar a amizade que nos unia desde a minha estadia em Mampatá.

Voltei à Guiné várias vezes, com paragem obrigatória por Sinchã Sambel para conviver com o Sulimane e família. 

Levei a sua casa os meus filhos e a minha esposa, os camaradas e amigos que me acompanhavam nas visitas à Guiné. Fui sempre recebido como um filho, pelo Sulimane e pela Naná, também falecida há alguns meses atrás.

O Paulo Salgado, seu conhecido e amigo de outras andanças pela Guiné, quando o Sulimane era seu 1º cabo no Pel Caç Nat 53,  no Saltinho, trouxe-o à tabanca de Matosinhos. Tive a oportunidade de várias vezes o ir visitar a Lisboa, quando ele vinha cá, sobretudo por causa das doenças que o apoquentavam, o mesmo acontecia quando a Naná estava em Lisboa.

Escrever sobre o Sulimane é falar de um homem íntegro, um grande líder étnico, um guineense que também era um português de alma e coração. Um homem simples, cordato, conversador e firme nos seus ideais. Um gigante, que muito me ensinou nos diversos encontros que tivemos.

Faleceu no  passado dia 7, com oitenta e sete anos.

Com a sua morte, fiquei mais pobre.
Fica em paz, querido amigo.

Junto fotos nos nossos encontros.

Zé Teixeira

(Fonte: página do facebook do José Teixeira, 8 de outubro de 2025, 23:22)


3. Comentário do editor LG:

O Suleimane Baldé era 1º cabo do Pel Caç Nat 53, ao tempo do Paulo Santiago, seu comandandente no época de 1970/72. Era DFA (com 30% de incapacidade, por estilhaço num ouvido, resultante de uma nina A/P. Fez operações "irregulares" para lá da fronteira com o grupo do Marcelino da Mata. Herdou de seu pai o regulado de Contabe. A sua tabanca, Contabane, foi riscada do mapa pelo PAIGC, em 22 de junho de  1968. (**)

Veio a Portugal várias vezes. Manteve sempre fortes laços afetivos aos "tugas" (em especial ao José Teixeira, ao Paulo Santiago, Mário Miguéis da Silva). Por todas as razões, e sendo um dos valorosos camaradas da Guiné, passa a ser inumado, simbolicamente, sob o poilão da Tabanca Grande, no lugar nº 908. Tem várias referências no nosso blogue.

As fotos  que publicamos são elequoentes: tanto o Zé Teixeira como o Paulo Santiago sempre tiveram um especial carinho por este nosso camarada e sua família.

São dois "tugas" com uma enorme sensibilidade sociocultural, e capacidade de empatia,  que honram a Tabanca Grande:  um e outro conheceram a senhora Fatumatá, ainda em vida, o Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), e o José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), que foi à Guiné-Bissau ainda mais vezes (pelo menos, 2005, 2007, 2008, 2013, 2015, se não erro)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Sinchã Sambel >  2005 > A mulher do régulo local, a que está a ordenhar a vaca, casada com o régulo de Sinchã Sambel,  Suleimane Baldé, antigo 1º cabo do Pel Caç Nat 53, filho do antigo régulo de Contabane, Sambel Baldé. 

Depois da evacuação de Contabane, em a população dispersou-se por Mampatá e Aldeia Formosa. Mais tarde,foi reunida numa nova tabanca, junto ao Saltinho, Sinchã Sambel, em homenagem ao régulo, que foi sempre leal aos portugueses (era um firme alidado de Spínola).

Foto (e legenda): ©  José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Contabane > Sinchã Sambel > 3 março de 2008 > "Eu, o Pedro Lauret com o régulo Suleimane Baldé, régulo de Contabane, e outros habitantes da tabanca"

Fotos (e legendas): © Paulo Santiago (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Sinchã Sambel > 2005 > "Fatumatá, esposa do régulo Sambel de Contabane.T
irei-lhe esta foto  em 2005 quando ela tinha 96 anos, segundo me disse a Meta Baldé (Naná), esposa do Suleimane Baldé, o filho e atual régulo.   À data estava perfeitamente lúcida. A imagem que me ficou dela foi o seu abraço prolongado enquanto me dizia com emoção 'Branco e na volta, Branco e na volta'.  Quando faleceu em 2010,  tinha efetivamente 100 anos. 


Foto (e legenda): ©  José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel > 2005 > Fota da dona Fatumatá, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, aliado de Spínola... Era já viúva, quando morreu, em 2010 ("com 114 luas, dizem uns, ou 100 anos, dizem outros".  


Foto (e legenda): ©  Paulo Santiago  (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel > 2013 >   Zé Teixeira, Naná, Maria Armanda e Suleimane Baldé



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel > 2013 >  
A famíla Baldé e a família Teixeira  



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel > 2015 >  O "Sulimane", como lhe chamava o Zé Teixeira. Dois velhos amigos e camaradas.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel > 2015 >  O " Sulimane" com o seu filho Alfa e o Zé Teixeira, vendo-se dntro da morança o Eduardo Moutinho Santos.

Fotos (e legenda): ©  José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

(Revisão / fixação de texto: LG)
_________________

Notas do editor LG:


Recorde-se o contexto (LG):

Face à pressão IN sobre a região do Forreá, a CCAÇ 2382 (que chegara ao CTIG em 6mai68, e estava a fazer a IAO em Bula), é colocada em 7jun68, à pressa, no Sector S2 (Aldeia Formosa), com dois pelotões em Contabane, no Forreá. Veio render forças da 5ª CCmds.

Em 11jun68, instala-se o o comando e os outros dois pelotões em Mampatá; no entanto, em 18jun68, a sede da subunidade passou para Contabane, ficando apenas um pelotão destacado em Mampatá.

Na noite de 22jun68, Contabane sofre um ataque de 3 horas e fica praticamente reduzida cinzas.

O régulo era o Sambel, e a "mulher grande" do régulo, uma grande senhora, a Fatumatá, pais do Suleimane Baldé (1935-2025).

Em 1jul68, Contabane, é evacuada, a CCAÇ 2382 volta de novo a instalar-se em Mampatá, agora com dois pelotões destacados em Buba e Patê Embalá. Será construído um reordenamento, no Saltinho, Sinchã Sambel, para alojar as famílias da antiga Contabane.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25694: S(C)em Comentários (41): Contabane, que depois, em 22 de junho de 1968, será praticamente riscada do mapa, acabando por ser evacuada em 1 de julho...


1. Face à pressão IN sobre a região do Forreá, a CCAÇ 2382 (que chegara ao CTIG em 6mai68, e estava a fazar a IAO em Bula), é colocada e
m 7jun68, à pressa,  no Sector S2 (Aldeia Formosa), com dois pelotões em  Contabane.  Veio render forças da 5ª CCmds.

Em 11jun68,  instala-se o o comando e os outros dois pelotões em Mampatá; no entanto, em 18jun68, a sede da subunidade passou para Contabane, ficando apenas um pelotão destacado em Mampatá.  

Na noite de 22jun68, Contabane sofre um ataque de 3 horas e fica praticamente reduzida cinzas. (Também vi este "filme",  um ano mais tarde, ns zona leste, no subsetor de Mansambo: Candamã, tabanca fula em autodefesa do regulado do Corubal, é atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de julho de 196; esse brutal ataque, com balas e granadas incendiárias,  em que o PAIGC utilizou dois bigrupos, reforçados, e armamento pesado,  surgiu na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada, que decorreu de 8 a 18 de março de 1969; e foi comandado pelo famigerado Mamadu Indjai, um dos futuros conspiradores da ala militarista do PAIGC que irá assassinar o Amílcar Cabral.)

 Em 1jul68, Contabane, no Forreá,  é evacuada, a CCAÇ 2382 volta de novo a instalar-se em Mampatá, agora com dois pelotões destacados em Buba e Patê Embalá.

Este trecho do Carlos Nery (*) , a seguir reproduzido,  refere-se a um patrulhamento na véspera. Contabane era uma bela aldeia fula, bucólica, como Candamã e tantas outras, onde a vida parecia que corria normalmente. O régulo era o Sambel, e a "mulher grande" do régulo, uma grande senhora, a Fatumatá.  

 

Guiné-Bissau > Saltinho > Sinchã Sambel >  2005 > A mulher do régulo local. A que está a ordenhar a vaca é casada com o régulo de Sinchã Sambel,  Suleimane Baldé, antigo milícia, filho do antigo régulo de Contabane, Sambel Baldé.  Depois da evacuação de Contabane, em 1 de julho de 1968, a população dispersou-se por Mampatá e Aldeia Formosa. Mais tarde,foi reunida numa nova tabanca, junto ao Saltinho, Sinchã Sambel, em homenagem ao régulo, que foi sempre leal aos portugueses (era um firme alidado de Spínola).

Foto (e legenda): ©  José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...) Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto. (...) 

2. Este trecho merece ser destacado na série  "S(c)em comentários" (**). (LG)

Guine 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)


Carlos Nery, foto de perfil do
Facebook. Grande ator
da Companhia Maior




1. Texto soberbo, antológico, escrito com garra, raiva e objetividade, do  Carlos Nery Gomes de Araújo, o nosso Carlos Nery, ex-cap mil inf, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70. 

Poucos dos comandantes operacionais, com apenas um mês de Guiné,  seriam capazes de vir a público dizer isto, no final de uma ataque devastador de 3 horas, uma experiência brutal para o Carlos Nery, os seus homens e o povo de Contabane :

 "As palavras soam-me tragicamente absurdas, 
sinto na garganta um aperto inenarrável e,
 com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —,
 sinto que muito de mim se perde, 
se perde irremediavelmente".



Noite Longa em Contabane

por Carlos Nery Gomes de Araújo


— Morteiro 60?

— Pronto, meu capitão!

— Lança-granadas?

— Presente!

— Dilagrama?

— Estou aqui!

Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.

— Meter uma bala na câmara!

O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.

— Patilhas em segurança!

Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.

— Está «no ir»!

Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».

Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.

— Aumentar os espaços entre cada dois homens!

— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!

As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç Nat na documentação operacional).

Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.

Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.

– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...

Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.

Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.

– Vamos lá então ver essa tabanca.

******

Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Rachid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.

– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.

– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.

Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá 
[de 22 de maio e 11 de junho de 1968, respetivamente] e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.

A companhia cujo comando me fora entregue, interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.

Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.

O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos.  As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.

Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.

Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.

- Capitão! Capitão! — ouço num apelo lancinante.

Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem Caçador Nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.

– Acode-me! Capitão, acode-me!

Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.

– O enfermeiro! 

A ordem percorre os homens ainda de borco. A resposta chega-me a medo.

– Não veio...

Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.

– Salva-me, capitão!

Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.

Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido. Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.

Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.

Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.

*******

O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.

Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta-mato, trazíamos pela estrada.

Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.

Instalar os canhões em posição de tiro direto, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.

Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.

******

Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.

Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.

Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «Por uma Guiné Melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.

Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.

Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.

Carlos Nery (2010).
Nasceu no Funchal em 1933.
Aos 35 anos estava a comandar
um companhia operacional
na Guiné

******

Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser
chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. À medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.

Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo  
de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida,  que, não escondendo a suacontrariedade, iam ser preparados «à pressão»  para assumir
 o  comando de homens nas três frentes 
de combate em África.

Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.

Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.

Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.

– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.

Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.

Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tetos de colmo seco das casas.

Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.

Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma coletiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detetar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.

Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.

Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direções.

A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.

– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.

O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro. Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.

Abrigados junto de uma parede semidestruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa tarde e do furriel enfermeiro da companhia.

– Então, como está ele? — pergunto.

– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!

Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.

O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.

Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.

– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.

O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.

Em combate noturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!

Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?

Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.

Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.

– Há mortos?

– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?

– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.

– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.

O perigo da situação residia, efetivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.

O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.

A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.

O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.

O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.

Sinal de retirada, viríamos a saber.

******


Clareia o dia.

Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.

O incêndio, os impactes dos projéteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.

Fatumatá, mulher grande do régulo Sambel 
[foto acima, de 2005] (*),  apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objetos que satisfaçam a sua cobiça.

Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.

A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina antipessoal acionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.

O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.

******

'Nino', comandante da Frente-Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.

Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.

******

Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.

Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.

Somos sobrevoados por jatos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.



A então ten enf pqdt Ivone Reis
 (1929-2022),
em Cacine, 12/12/1968. 
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Envergando o seu camuflado de paraquedista, adianta-se uma mulher:

– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma exceção e espero aqui com vocês.

Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira paraquedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu,  facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.

Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.

– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... 
 ouço-me dizer.

Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?

Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:

– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.

 
As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente. 

Carlos Nery Gomes de Araújo (**)

In Memórias da Guerra Colonial, volume 2: carne para canhão. S/l, Andrómeda Publicações, 1984, 158 pp.


(Revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: CV/LG)

__________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (18): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatumatá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)

terça-feira, 23 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Duas fotos da dona Fatumatá, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, aliado de Spínola... Era já viúva, quando morreu, em 2010, com 114 luas, dizem uns, ou 100 anos, dizem outros. A foto de cima, a primeira, é do José Teixeira, a outra é do Paulo Santiago, dois "tugas" com uma enorme sensibilidade sociocultural, que honram a Tabanca Grande:  um e outro conheceram a senhora Fatumatá, ainda em vida, o Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), e o José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos)

Fotos: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. Dois deliciosos (e "muy preciosos", como diriam os espanhóis,.,) comentários sobre a Dona Fatumá, mulher grande de Contabane (e depois Sinchã Sambel), viúba do prestigiado régulo Sambel Baldé, aliado de Spínola:


Caros amigos Luis e Mário Migueis,

O nome correcto deve ser "Fatumata" (*), que é a versão fula do árabe Fátima ou Fátmah, todas as outras formas serão variantes abreviadas do mesmo nome, por exemplo: Fátu/Fáru, Máta/Mára, Fatumá/Farumá, Matâel/Marâel (diminuitivos), no meio fula.

Fatemá deverá ser uma versão portuguesa do mesmo nome, acho eu.

Voltando a questão da idade, acrescentaria que a minha mãe era da mesma geração que a Fatumata, talvez um pouco mais nova e, facto curioso, na opinião de muitos familiares, ela ja tinha mais de 100 anos, antes da sua morte ocorrida em 2017.

Não havendo forma de os contradizer, aceitava pacificamente este dado, mas por um feliz acaso, um dia, ela contou-me que quando o pai voltou da guerra de Canhabaque, ela ainda era uma miudinha dos seus 9/10 anos, mais ou menos. Sabendo que a última guerra de Canhabaque, que tinha contado com a participação de auxiliares de Sancorlã (nosso regulado), tinha sido em 1935/36, fiz as contas e conclui que a sua idade estava muito exagerada e que, na verdade, se em 1936 estava com 9/10 anos, entao em 2010 deveria andar, mais ou menos, à volta dos 83/84. Contudo, as minhas conclusões muito rigorosas, muito europeias, baseadas num marco histórico bem conhecido, simplesmente, foram rejeitadas e deitadas ao lixo da nossa memória colectiva.

Da mesma forma que em 1969/70 tinham rejeitado a ideia da chegada do homem à Lua (**), considerada uma ideia maluca dos brancos. Acontece que aceitar esta afirmação, para eles, era aceitar a ideia de que o céu não era o habitat de Deus. O meu pai nem sequer admitia que houvesse discussão acerca disso, corria com todos, grandes e pequenos. Aquilo punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar,  o que era inadmissivel.

Cherno Baldé

(ii) Hélder Sousa (*):

Caros amigos,

Tenho acompanhado este caso com alguma curiosidade e acho que tem sido abordado com correcção e bom senso.

Falando em "bom senso" acho que ele está quase sempre presente nas oportunas intervenções, solicitadas ou não, do Cherno.

Apenas acho que a expressão "Fatemá" não tem obrigação de ser uma "versão portuguesa", no sentido de se ter superiormente arranjado uma grafia para o nome. Acho mais provável que portugueses, isso sim, ao ouvirem referir-se à senhora e sem conhecer essas nuances dos nomes que o Cherno refere, passaram a grafar tal como lhe soava e depois foi passando de uns para outros
.
O que acho mesmo uma delícia são aqueles dois aspectos que o Cherno conta: ao tentar determinar com o "rigor dos brancos" a idade de sua mãe,  isso foi "rejeitado e deitado ao lixo da nossa memória colectiva", o que mostra como as comunidades normalmente se fecham e defendem as "suas verdades".

O outro aspecto, aliás no seguimento do anterior mas muito mais implicante, foi a discussão/posição sobre a "ida à Lua",  pois isso, como o Cherno diz, "punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar o que era inadmíssvel". (***)

Isto afinal não é nada estranho...

Hélder Sousa

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatemá (ou Fatumatá), a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)

Vd. também  poste de 22 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20004: (De)Caras (110): Fatumatá, esposa do régulo Sambel, de Contabane. Fotografada em 2005, com 96 anos (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


segunda-feira, 22 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20004: (De)Caras (134): Fatumatá, esposa do régulo Sambel, de Contabane. Fotografada em 2005, com 96 anos (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Fatumatá, esposa do Régulo Sambel de Contabane. Tinha então 96 anos. Morreu aos 100, em 2010.(*)

Foto (e legenda): ©  ´José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do José Teixeira (ex-1.º cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos, fogo acima, tirada em 2011, em Faro Sadjuma):

Enviado: 21 de julho de 2019 23:30

Assunto: Fatumata,  a esposa do Sambel, régulo de Contabane.

Meus caros:

Junto uma foto da Fatumata,  esposa do Régulo Sambel de Contabane que lhe tirei em 2005 quando ela tinha 96 anos, segundo me disse a Meta Baldé (Naná), esposa do Suleimane, o filho e atual régulo. 

 À data estava perfeitamente lúcida. A imagem que me ficou dela foi o seu abraço prolongado enquanto me dizia com emoção "Branco e na volta, Branco e na volta". 

Quando faleceu em 2010,  tinha efetivamente 100 anos. (*+)

Fraternal abraço do Zé Teixeira
____________

Notas do editor:


domingo, 21 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatumatá, a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Fatumatá e Paulo Santiago, ladeados por familiares e amigos. Por de trás, João Santiago, filho do Paulo, que também quis sentir as emoções de seu pai ao voltar à Guiné da sua juventude.

Fotos (e legendas): © Paulo Santiago  (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


1. A propósito da mulher grande, Fatumatá, de Contabane (*),  volta-se aqui a reproduzir mensagem de Paulo Santiago  (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), com data de 8 de Novembro de 2010 (*)


Telefonema que recebi, às 23.00 horas de ontem, do Zé Teixeira, que recebera a mesma notícia do Carlos Nery [, ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), que, por sua vez, a recebera de um antigo milícia: "Morreu a Fatemá"!

Fatumatá, Mulher Grande, Grande Senhora, que conheci há 40 anos, tendo-a visitado em 2005 e 2008, era viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do actual régulo, Suleimane Baldé, ex-1.º cabo do Pel Caç Nat 53, que tive a honra de comandar.

A Fatumatá ficou na memória de inúmeros militares que foram passando por Contabane, Aldeia Formosa e Saltinho, onde, na outra margem do rio Corubal, nos anos de 1970-71, foi construído o reordenamento de Contabane, hoje chamado Sinchã Sambel. O meu convívio, mais intenso, com a Fatemá decorreu no período em que vivi naquele reordenamento, de maio a agosto de 1972. Nos dias em que não havia saídas para o mato, quase sempre, a seguir ao jantar, tinha longas conversas com o Sambel e a Fatemá. 

Ela lembrava-me a minha avó Clementina que me enviou o bolo-rei mais delicioso que até hoje comi, apesar de muito duro quando o recebi em Bambadinca, história que já contei aqui no blogue.
 
A Fatumatá era dotada de grande jovialidade e simpatia. Ainda hoje quando encontro algum ex-militar da CCAÇ 2701, a que estive adido, sabendo que estive recentemente na Guiné, em 2008, vem a pergunta : "E a Fatemá ainda é viva? Como é que ela está?"

Em fevereiro de 2005, acompanhado pelo meu filho João, apareci de surpresa em Sinchã Sambel, a Fatumatá  fez-nos uma recepção que jamais esqueceremos. Sem o saber desencontrara-me do Suleimane que tinha vindo, dias antes para Lisboa, e a Fatemá, naquele dia foi régulo e chefe de tabanca. Ela mobilizou toda a aldeia para receber os visitantes. Foi uma tarde, prolongou-se pela noite, de fortes emoções onde pontificava aquela figura matriarcal que no final nos ofereceu um cabrito.
Na Guiné, onde a esperança de vida é muito baixa, a Fatumatá era uma excepção notável, e com certeza única, tempos atrás ultrapassara os cem anos. O Suleimane, ontem, quando lhe telefonei,  disse-me que a mãe tinha 114  anos (?!), e,  sendo assim, nasceu no séc XIX, passou pelo séc XX e vem morrer no séc XXI. 

Soube envelhecer com dignidade, para quem nunca soube o que era botox ou pilling, a Fatumatá tinha uma pele lisa, com muito poucas rugas, e,  para além deste aspecto exterior, possuía uma cabeça cheia de memórias. Em 2005, falou-me dos militares portugueses que foi conhecendo ao longo dos anos da guerra, uns que eu conhecia, outros não. Curiosamente, esqueceu o comandante da CCAÇ 3490, ou fez por bem não o mencionar.

Em Março de 2008, encontrei-a  já muito prostrada, muito apática, e já não me reconheceu
Ontem à tarde, segundo o Suleimane, "ficou-se"... morreu de velhice. Hoje, às 10.00 horas, seria enterrada. Que Alá a tenha em descanso.

Águeda, Aguada de Cima, 8 de novembro de 2010

2. Comentários ao poste P7249:

(i) Luís Graça, editor:

Paulo: A ternura com que falas desta mulher, que bem podia ter sido tua avó ou bisavó... Os laços de afecto que deixaste por onde passaste... Eu não sei se isto é muito "português", só sei que é de um grande português, cidadão e homem, de sue nome Paulo Santiago e cuja presença, entre nós, muito honra a Tabanca Grande...

Há mais postes onde evocas a Fatumatá... Por exemplo, fui buscar este excerto:

"Jamil [ Nasser, comerciante libanês do Saltinho,] desistiu da abertura de uma casa em Mampatá, mas a ideia foi aproveitada por um outro comerciante do Xitole, o Rachid. Passou-se para o reordenamento de Contabane, na outra margem do rio, e estou a ver a Fatemá, mulher do régulo Sambel, mãe do meu 1º Cabo Suleimane, a 'pendurar-se' ao pescoço do Spínola e a cobri-lo de beijos."(...) (**)


(ii) José Brás (**):

[ex-fur mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68); nasceu em Alenquer; trabalhou na TAP como tripulante comercial de 1972 a 1997; foi sindicatista e autarca; mora em Montemor-o-Novo; tem mais de 130 referências no nosso blogue; é autor de “Vindimas no Capim”, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Europa América, 1987, e também de "Lugares de Passagem", Chiado Editora, Lisboa, 2010].

A minha memória sobre a Fatumatá  não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.

Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre, para minha desgraça pessoal,  porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.

Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus intérpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.

Por isso Fatumatá era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel. tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra. Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.

Lembro também do posto rádio que montei em sua casa, com AN-GRC9,  para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, uma cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.

E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.
Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.

 (iii) José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos) (**)

 Não me lembro da Fatumatá (...), quando trilhei as picadas de Quebo e Mampatá [, em 1968/70].

Recordo o régulo Sambel, seu marido, e a sua dedicação e fidelidade a Portugal. O seu filho, o nosso amigo Suleimane, actual régulo de Contabane, esse sim, como soldado milícia partilhou comigo algumas...  aventuras em Mampatá. Hoje prezo muito a sua amizade e a da sua esposa, a Ádada, que conheci ainda bajuda. Que bonita que era e ainda é!

Tal como o Paulo Santiago, tive a felicidade de conviver com a Fatumatá em 2005, quando a Adada (...) me reconheceu, passados trinta e cinco anos (que belo e feliz momento!).

Estava a saborear este encontro, quando vejo surgir à porta da sua morança a velhinha Fatemá, que se dirige a mim com um sorriso, para logo me abraçar e,  com as lágrimas nos olhos,  me pedir "Branco na volta, branco na volta !"

Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para matar saudades, ela insistia "Branco na volta!"... Seguiu-se uma amena conversa, interrompida aqui e além pelos seus bisnetos, que queriam brincar comigo ao fotógrafo.

Voltei em 2008. Notei que estava mais parada, porque os anos não perdoam. Retenho a imagem de uma mulher linda, apesar da idade, lúcida e,  sobretudo, tal como o filho e outros familiares que conheço, muito ligada a Portugal e aos portugueses que por lá passaram.

Com a sua morte perdeu-se um forte elo de ligação, com os portugueses que pisaram aqueles trilhos do regulado de Contabane.

3. Comentários  ao poste P19995 (*)

(i) Mário Miguéis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, BissauBambadinca e Saltinho, 1970/72; bancário reformado, cartunista,  vive em Esposende)

Na entrevista (pág. 10 e 11) feita por mim e pelo ex-alferes Rocha  ao respeitável Sambel Baldé, régulo de Contabane (pai do atual régulo, Suleimane Baldé) [, e publicada no jornald e caserba, "O Saltitão"], perguntávamos, a certa altura, ao entrevistado "quantas chuvas tinha"...."Cinquenta e sete", respondeu Sambel, com convicção. 

Ora, tendo sido referido aqui no blogue, aquando do falecimento da Fatumatá (senhora de uma simpatia e gentileza inexcedíveis, mulher mais velha de Sambel e mãe do atual régulo) que esta deveria ter a proveta idade de 114 anos e,  tendo ainda em atenção que a Fatumatá, para quem a conheceu e ao Sambel, não era mais velha que este, antes pelo contrário, das duas uma: ou o Sambel tinha mais que 57 anos em 1971 (data da entrevista) ou a Fatumatá não tinha assim tantas chuvas quando faleceu [, em 2010]... (Experimentem fazer as contas).

Para os menos familiarizados com a guerra no sul e leste da Guiné, o Sambel alude, na entrevista, ao ataque do PAIGC à tabanca de Contabane (nas proximidades de Aldeia Formosa), que destruiu completamente (disso se falou já abundantemente aqui no nosso blogue). 

Madina-Contabane foi edificada na margem esquerda do Corubal, junto ao Saltinho, pelas tropas da CCAÇ 2701, em 1971, para recolher, em definitivo, a população, algo dispersa durante dois anos, da antiga Contabane. 

O capitão André, a certa altura da entrevista referido pelo Sambel, era o comandante da CCAÇ 2406 ("Os Tigres"), que precederam a CCAÇ 2701 no Saltinho (já publiquei uma foto no blogue, montando o tigre da CCAÇ 2406, "escultura" que tem na sua base uma lápide alusiva aos vários mortos da Companhia).

(ii) Cherno Baldé, Bissau (*):

(...) A segunda hipótese deve ser a mais provável, pois 114 anos são "muitas chuvas" para as condições reais em que nós vivemos, mesmo sendo uma mulher. O método da contagem (chuvas) e a ausência de registos escritos fazem mais que complicar a contagem. E, para piorar, no meio tradicional fula, a idade não era importante senão no momento e em função do beneficio que dai poderia resultar. Convinha ser jovem e forte nos momentos de recrutamento para tarefas mais ou menos bem remuneradas, e mais velho quando isso permitia beneficiar de alguma herança ou deixar de pagar impostos.

Gostei muito da lenda sobre a origem do cavalo e da entrevista ao Régulo Sambel Baldé. A lenda do cavalo retrata a epopeia das guerras com o reino Bambará de Segou, de onde é originária a maior parte dos primeiros fulas que povoaram o actual territorio da Senegambia (Guiné, GBissau, Senegal e a Gâmbia).

O verbo "firmar" é uma tradução directa da lingua fula, o mesmo que dizer "estar vs morar". Fez-me lembrar o meu velho pai que falava igualzinho, e bem vistas as coisas, com muito mérito e inteligência se tivermos em conta as suas origens e histórias de vida. Queria ver qualquer um de vocês a falar fula com a mesma desenvoltura de espirito e clareza no sentido. Caso para dizer: Mesmo se nunca mereceram o devido respeito e confiança da parte de muitos portugueses, mormente administradores coloniais e comandantes de companhias do exercito, os nossos pais e avôs foram extraordinários e dignos de admiração. (...)

(iii) Paulo Santiago (*):

Foi o Suleimane que me falou nos 114 anos da mãe, pode haver exagero, talvez...Ela teria uns sessenta e picos quando por lá andámos, mais os quarenta que ainda viveu. O Suleimane,é mais velho que eu doze anos,tem agora oitenta e três.

(iv) Mário Miguéis da Silva:

Caro Cherno Baldé, as tuas palavras alusivas aos vossos pais e avôs conseguiram comover-me. Tive com as populações de etnia fula, com as quais convivi ao longo dos dois anos da minha comissão de serviço, uma relação da maior cordialidade. Percebi, desde cedo, as carências de que padeciam e a delicadeza da sua posição. Embora suportassem tudo com elevação, com a maior das dignidades, não me passava ao lado o seu sofrimento, a sua preocupação com o futuro dos seus. Isto, apesar do seu passado de guerreiros altivos e indomáveis. 

De um modo geral, procurei ser muito amigo de todos, acarinhando as crianças e fazendo o que estava ao meu alcance para ajudar pais e mães. Mas, os Homens-Grandes, gente humilde no seu comportamento exterior, mas sábia e altiva como nenhuma outra no território, sempre me infundiram o maior respeito e mereceram grande amizade. Quando, como agora, dou comigo a recordar algumas vetustas personalidades, que tive a honra de conhecer no seio das suas tabancas disseminadas pelo leste e sul da Guiné, e embora não tenha quaisquer problemas de consciência quanto ao meu comportamento em relação às mesmas, não deixo de me sentir algo entristecido por não ter podido ser tão generoso com elas quanto desejaria.

Obrigado pelo teu comentário ao poste e um grande abraço. (*****)

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(*****) Último poste da série > 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)