terça-feira, 23 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Duas fotos da dona Fatumatá, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, aliado de Spínola... Era já viúva, quando morreu, em 2010, com 114 luas, dizem uns, ou 100 anos, dizem outros. A foto de cima, a primeira, é do José Teixeira, a outra é do Paulo Santiago, dois "tugas" com uma enorme sensibilidade sociocultural, que honram a Tabanca Grande:  um e outro conheceram a senhora Fatumatá, ainda em vida, o Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), e o José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos)

Fotos: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. Dois deliciosos (e "muy preciosos", como diriam os espanhóis,.,) comentários sobre a Dona Fatumá, mulher grande de Contabane (e depois Sinchã Sambel), viúba do prestigiado régulo Sambel Baldé, aliado de Spínola:


Caros amigos Luis e Mário Migueis,

O nome correcto deve ser "Fatumata" (*), que é a versão fula do árabe Fátima ou Fátmah, todas as outras formas serão variantes abreviadas do mesmo nome, por exemplo: Fátu/Fáru, Máta/Mára, Fatumá/Farumá, Matâel/Marâel (diminuitivos), no meio fula.

Fatemá deverá ser uma versão portuguesa do mesmo nome, acho eu.

Voltando a questão da idade, acrescentaria que a minha mãe era da mesma geração que a Fatumata, talvez um pouco mais nova e, facto curioso, na opinião de muitos familiares, ela ja tinha mais de 100 anos, antes da sua morte ocorrida em 2017.

Não havendo forma de os contradizer, aceitava pacificamente este dado, mas por um feliz acaso, um dia, ela contou-me que quando o pai voltou da guerra de Canhabaque, ela ainda era uma miudinha dos seus 9/10 anos, mais ou menos. Sabendo que a última guerra de Canhabaque, que tinha contado com a participação de auxiliares de Sancorlã (nosso regulado), tinha sido em 1935/36, fiz as contas e conclui que a sua idade estava muito exagerada e que, na verdade, se em 1936 estava com 9/10 anos, entao em 2010 deveria andar, mais ou menos, à volta dos 83/84. Contudo, as minhas conclusões muito rigorosas, muito europeias, baseadas num marco histórico bem conhecido, simplesmente, foram rejeitadas e deitadas ao lixo da nossa memória colectiva.

Da mesma forma que em 1969/70 tinham rejeitado a ideia da chegada do homem à Lua (**), considerada uma ideia maluca dos brancos. Acontece que aceitar esta afirmação, para eles, era aceitar a ideia de que o céu não era o habitat de Deus. O meu pai nem sequer admitia que houvesse discussão acerca disso, corria com todos, grandes e pequenos. Aquilo punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar,  o que era inadmissivel.

Cherno Baldé

(ii) Hélder Sousa (*):

Caros amigos,

Tenho acompanhado este caso com alguma curiosidade e acho que tem sido abordado com correcção e bom senso.

Falando em "bom senso" acho que ele está quase sempre presente nas oportunas intervenções, solicitadas ou não, do Cherno.

Apenas acho que a expressão "Fatemá" não tem obrigação de ser uma "versão portuguesa", no sentido de se ter superiormente arranjado uma grafia para o nome. Acho mais provável que portugueses, isso sim, ao ouvirem referir-se à senhora e sem conhecer essas nuances dos nomes que o Cherno refere, passaram a grafar tal como lhe soava e depois foi passando de uns para outros
.
O que acho mesmo uma delícia são aqueles dois aspectos que o Cherno conta: ao tentar determinar com o "rigor dos brancos" a idade de sua mãe,  isso foi "rejeitado e deitado ao lixo da nossa memória colectiva", o que mostra como as comunidades normalmente se fecham e defendem as "suas verdades".

O outro aspecto, aliás no seguimento do anterior mas muito mais implicante, foi a discussão/posição sobre a "ida à Lua",  pois isso, como o Cherno diz, "punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar o que era inadmíssvel". (***)

Isto afinal não é nada estranho...

Hélder Sousa

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatemá (ou Fatumatá), a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)

Vd. também  poste de 22 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20004: (De)Caras (110): Fatumatá, esposa do régulo Sambel, de Contabane. Fotografada em 2005, com 96 anos (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(...) 26. Podias lá tu imaginar o que ficava lá para trás de um serra, dos cabeços e dos moinhos?! E muito menos que por detrás de uma serra, havia sempre outra serra, colina ou cabeço, e que era redonda a tua terra e o mar por onde se chegava aos Cabos da Boa Esperança!

O mais longe a que podias chegar, na tua imaginação febril de miúdo, era a lua, e as suas manchas escuras, que não eram mais do que a silhueta de um pobre diabo com um molho de lenha às costas, condenado sabe-se lá por quê e por quem!?... De certo, por Deus, por trabalhar ao domingo e não respeitar o dia do Senhor, dizia a tua catequista, a “Branca de Neve”…

27. Outros diziam que era a alma do ti Zé Mendes, morto numa outra vida, e agora ferreiro e segeiro da tua rua, a rua dos Valados, que, qual Hércules ou Vulcano, de tronco nu, passava o dia e a noite a dar à forja e a malhar o ferro em brasa…E rezava uma estranha ladainha enquanto malhava o ferro em brasa. Para nós, putos, a sua oficina era a boca do inferno. (...)

Excertos de Luís Graça, "Autobiogtrafia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde" (2005), Inédito.

Juvenal Amado disse...

Quando estive lá no Leste o nome que se usava era Fatumata ou Fátima por simpatia. Quanto há ida do homem há Lua foi um assunto, que não me apaixonou e hoje com as teorias da conspiração em que muita gente dúvida porque a bandeira parece mexer-se ao sabor de um vento inexistente em gravidade zero, continuo a achar que sim que foram lá. Para além do contributo que deu para a guerra fria, ainda se está para provar é que o esforço tenha valido para mais alguma coisa. Assim quando se comemoram 50 anos dessa efeméride também se comemoram 50 anos do primeiro transplante de rins feito em Portugal. Na foto vêem-se a feliz equipa de cirurgiões em tronco nu pois nem ar condicionado havia no bloco. Tos então duas situações em que a maioria dos negacionistas da viagem há lua na sua grande maioria por motivos religiosos, não aceitam,
também não aceitam as transfusões bem como os transplantes. Cá por mim penso que o transplante foi uma coisa fantástica, já a ida á lua duvido que sirva para alguma coisa, uma vez que quem promoveu a conquista do espaço está a caminho de acabar com a vida na terra.

Anónimo disse...

José Teixeira
23 jul 2019 16:02

Luís:

Acabo de falar pelo telemóvel com o Sulimane, filho da Fatumata, atual Régulo de Contabane que era soldado milícia em Manpatá quando estive lá.

Neste momento encontra-se temporariamente em Lisboa em casa de uma filha.

Segundo ele, a mãe morreu com cento e cinco anos em 2010, sem nunca ter ido a um hospital, suponho eu, que depois da independência. Contradiz a própria esposa que me apresentou a sogra em 2005, como tendo 96 anos.

100 anos, 105 ou 114 eis a questão.

Abraço do
Zé Teixeira

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Como ja tive ocasiao de dizer nas minhas memorias de infancia, o meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também nao aceitava a teoria da terra redonda. Nao discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da familia, mas nao admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatorio e depois no Liceu de Bafata (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em familia, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha as cidades historicas de Samarcanda e Bukhara (Uzbequistao), no ambito de uma excursao escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islamicas historicas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Asia Central, para la da cidade santa de Meca. Nao devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me a socapa : Tu Cherno nao sei o que a tua escola de serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irrascível nas suas crenças, de tal modo que nao valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetaria que podiamos fornecer. Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relaçoes, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religiao islamica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mario Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o dominio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciencia e das suas reais intençoes a longo prazo.

Um abraço amigo,

Cherno B aldé