Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > 1991 > Festa de Ramadão > El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), o pai do Cherno > Em 1937 fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel para receber e homenagear os combatentes de Sancorlã que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós)...
[Recorde-se: em rigor, foi uma expedição punitiva, contra os bijagós que se recusavam a pagar o "imposto de palhota", também conhecida por "quarta e última campanha de Canhabaque", decorrendo de 10 de novembro de 1935 a 20 de fevereiro de 1936... O pai do Cherno faleceu em Bissau em setembro de 1999, provavelmente com 80 anos. Recorde-se aqui que El Hadj é um título honorífico reservado ao crente muçulmano que, em vida, consegue ter a felicidade de fazer, com sucesso, pelo menos uma peregrinação anual, Hajj, a Meca]
Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P20005 (*):
Caros amigos,
Como já tive ocasião de dizer nas minhas memórias de infância, o meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. (**)
Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).
Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.
Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu, Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"
Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.
Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé (***)
2. Comentário do editor, aquando da apresentação do Cherno Baldé, à Tabanca Grande, em 19 de junho de 2009:
(...) Não te vou tratar por senhor dr. Cherno Baldé, porque a tua vontade é ingressares nesta Tabanca Grande, onde não há ou não deve haver barreiras (físicas, simbólicas, sociais, protocolares, étnicas ou culturais)... Tratemo-nos, pois, por tu, e vamos retomar as conversas e as brinqueiras com os tugas do teu tempo de Fajonquito (1968/74)...
Também não te vou tratar por camarada porque não foste combatente, nem militar, tecnicamente falando... Em contrapartida, passaste pela mesma Escola que eu, o ISCTE, e isso reforça as nossas afinidades e cumplicidades... Estive além disso na CCAÇ 12 onde havia vários Chernos Baldé, gente do Cossé, de Badora, do Corubal, militares do recrutamento local, fulas, que foram de um inexcedível lealdade e camaradagem.
Estás em casa, espero que sintas hoje muito mais confortável do que nesse tempo, em que matavas a fome com as sobras do quartel de Fajonquito a troco de pequenos serviços... Como tu, houve milhares de djubis (como a gente dizia, referindo-se aos putos) que viviam literalmente nos nossos quartéis, estudaram e fizeram-se homens nos nossos quartéis...
Essa tua história, fabulosa, de infância e adolescência merece ser contada...Uma história de vida, de luta, através do trabalho e do estudo, que é um exemplo, que nos comove a todos nós e que te deve orgulhar, a ti e à tua família...
Recebo-te, pois, de abraços abertos, meu amigo e meu irmãozinho, guineense, mesmo não tendo conhecido Fajonquito (do leste só conheci a região de Contuboel, Geba, Bafatá, Galomaro e Bambadinca, até ao Saltinho, passandor Xime, Mansambo e Xitole...) (...)
__________
Notas do editor:
(*) 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)
(*) 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)
(***) Último poste da série > 2 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18277: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (54): lusitos e infantes da Mocidade Portuguesa, uns, ou da "Mocidade Tareco", outros... Lá íamos "cantando e rindo"...
3 comentários:
Na anterior publicação do Cherno fiz um comentário (no telem por isso não terei expressado devidamente) sobre as crenças e as duvidas do pai traçando um paralelismo sobre as mesmas dúvidas, que hoje outros religiosos utilizam para vender porque é isso mesmo eles vendem ou fazem-se pagar, por espalhar as crendices e a ignorância . Certas religiões "seitas" vendem hoje duvidas sobre se o homem foi à Lua e pasme-se, há quem afirme que a terra é plana e acaba num sítio qualquer como a Reboleira e quem quiser ir na direcção da Damaia, tem que trazer meio de transporte aéreo.
Existe uma dessas igrejas "garagem" bem perto de onde eu moro e só vos digo que pagam, são enganados mas parecem felizes.
Talvez o custo da felicidade seja a ignorância.
Mas o pai do Cherno não era um vendilhão, era um homem sábio respeitado no seu tempo mas que não aceitava outras verdades senão a dele. O medo, de pecar contra Deus retirava qualquer abertura à ciência e modernidade.
Mas ao contrário de por cá quando os homens envelhecem, vão-lhes sendo tirando o poder de decisão, duvida-se do seu conhecimento, desvaloriza-se o que sente e duvida-se das suas queixas, julgo ler nas palavras do nosso amigo Cherno Baldé, um enorme carinho e respeito, que mesmo não estando de acordo com o seu pai, terá sido incapaz de de retorquir com o seus conhecimentos de homem culto .
Um abraço Cherno
Caros amigos
O Cherno consegue contar-nos as suas experiências com uma simplicidade e ao mesmo tempo uma clareza que me agrada.
Neste caso podemos ver aquilo que sabemos(?) das relações familiares em África, o respeito pelos mais velhos, a importância dada aos mesmos. Apesar de em clara oposição de conhecimentos adquiridos em contraponto com os conhecimentos impostos o respeito que o Cherno demonstra pelo seu pai, pelo mais velho, é incontornável.
Assim de passagem aproveito para dizer ao Cherno que "não perdeu tempo a visitar Samarcanda e Bucara", usou esse tempo para conhecer um pouco melhor parte da história da humanidade.
Um outro aspecto que se pode retirar deste relato é o de como "as verdades inculcadas" se podem tornar perigosas, principalmente quando não permitem que sejam postas em causa.
Mas isso tem sido assim ao longo dos tempos....
Abraços
Hélder Sousa
Caros amigos Juvenal e Helder Valério,
Muito grato pelas simpaticas e sabias apreciaçoes bloguistas aqui da nossa TG. Eu conto estas estorias para divertir um pouco e também para honrar, de certa forma, a memoria do meu pai, que era uma personagem interessante num meio socio-cultural envolto de algumas nuvens obscurantistas que ja vinham do seculo passado (XIX), o que nao o impediu de ser visionario e compreender a importancia do ensino da escola portuguesa sem, contudo, abandonar a sua cultura que defendia com unhas e dentes. Nao podia compreender que a nova escola significaria, para a nossa geraçao, uma mudança de paradigmas em muitos sentidos.
Um grande abraço para todos os antigos combatentes que visitam o nosso blogue,
Cherno Baldé
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