sábado, 27 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20015: Os nossos seres, saberes e lazeres (345): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fazem confidências acerca de um romance que não chegou a ser, nem relação amorosa luso-belga nem escrita à procura de cativar leitores, foi um devaneio, ficou um caderninho intitulado "Rua do Eclipse" ideia não despicienda, digna de permanecer a banho-maria. E começou-se a visitar Gand, uma joia onde se entrelaçam velhas igrejas, relíquias medievais das corporações, um castelo fabuloso, praças harmoniosas, intervenções arquitetónicas recentes que dão brado, e o rio Lys sempre à mão, entre o medieval, o barroco e a pulsão contemporânea. Foi supino erro só lhe reservar um dia de fugir. Mas esta é a sina da viagem, ver e deplorar o que ficou por ver, ganhar vontade para regressar, um autêntico sal da vida.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (7)

Beja Santos

Neste roteiro sentimental, propicia-se a ocasião para um desabafo íntimo. Muitos anos atrás, andava o viandante exclusivamente centrado nas atividades laborais, num imprevisto ocorreu-lhe escrever um romance sobre a sua experiência como combatente da guerra colonial. Dito e feito, um dia, numa qualquer sessão que se realizava em Bruxelas, num edifício da Comissão Europeia, Rue Froissart, olha-se para o interior de uma cabina de interpretação, avista-se uma senhora que parecia modelar para a trama de um romance: uma paixoneta de portuga por senhora belga, enquanto não podiam juntar os trapinhos, a lauta correspondência do portuga incluiria múltiplas revelações do que fora aquela guerra, o que se enfrentara, a sua importância para o homem em que ele se constituíra. Palavra puxa palavra, e aquela senhora ouviu as cogitações do proponente português durante o almoço. E assim se escreveu um caderninho que tinha por título “Rua do Eclipse, hipótese de romance”. Tudo isto vem contado no primeiro volume do “Diário da Guiné”, publicado em 2008. Ora a Rua do Eclipse existe em Bruxelas, é uma transversal obscura de um dos eixos principais do centro. É certo que o viandante ainda não desistiu completamente de voltar à carga, só que esta ficção anda por aí a marinar. O fundamental foi revisitar, sem apertos no coração, a Rua do Eclipse. Aqui a temos, em plena insignificância.



Ali bem perto está uma igreja que o viandante conhece desde a primeira hora desde que arribou em Bruxelas, há mais de quarenta anos, tem a ver com a Ordem das Clarissas, palmilhava-se para o interior até a um pequeno hotel que tinha um nome pomposo George V, Rue T'Kint, Anneessens. Foi muito bom aqui voltar, a igreja, há cerca de vinte anos, viu o seu interior devorado por um incêndio, perdeu imensas riquezas. Mas esta estrutura em azulejo, não tendo nada de espampanante, embevece pela harmonia das linhas.



Estes recessos são bastante comuns no centro de Bruxelas, dão uma sensação de intimidade, de atmosfera provinciana, quando ali ao lado fervilham negócios, grandes hotéis, até multidões de turistas. Um dado que sempre impressionou o viandante, uma escala humana, de certeza que estes arquitetos conheciam as entranhas de Paris…



A itinerância muda de rumo, por uns escassos euros, à conta de bilhete de terceira idade, toma-se um comboio na Gare Central e vai-se até Gand, uma das joias da Flandres, perfeitamente visitável a pé, sai-se na estação de S. Pedro, resiste-se a parar no Parque da Cidadela, onde se realizou a grande Exposição Universal de 1913, cheia de atrações, avança-se para o centro da cidade, aqui nasceu o Imperador Carlos V que não se apiedou de uma revolta local, humilhou-os até mais não. Foi rica na Idade Média, era uma das cidades mais importantes da Europa Ocidental do seu tempo, umas vezes dependente da França outras do conde da Flandres, o viandante vem à procura de belos monumentos, mas não resiste a captar a imagem da estação ferroviária, que bela arquitetura do ferro, que bela azulejaria!




Um dos aspetos mais fascinantes de Gand é a interseção entre o antigo e o moderno, é cidade populosa, também estudantil, sede de inúmeros eventos científicos e musicais, atração turística por excelência, há quem venha aqui exclusivamente para vir contemplar o famoso tríptico da Adoração do Cordeiro Místico, dos irmãos Van Eyck. O viandante ficou maravilhado com este edifício moderno, chama-se o pavilhão municipal, está perto do campanário, do edifício da Câmara e da Igreja de S. Nicolau. É um design inovador, tem uma estrutura de telhado com quarenta metros, 1600 janelas, foi inicialmente muito contestado, hoje é um indiscutível ex-líbris de Gand.



Gand está atravessada por rias, recupera velhas estruturas, como mercados, é muito aprazível contemplar estas intervenções, sentir o respeito por reedificar sem adulterar.


O viandante anda a sorver toda esta beleza em curtos haustos, tem consciência de que foi um erro reservar exclusivamente um dia para aqui deambular. Estamos agora diante do Castelo dos Condes da Flandres, um dos poucos espécimes que restam de fortificações medievais. Imagine-se que por aqui andaram os vikings a pilhar! É um edifício imponente, é uma construção maciça da arquitetura militar que aparece como um contrapeso à arquitetura civil dos ricos patrícios que habitavam o outro lado do rio Lys.


Em cada recanto, uma surpresa, veja-se esta entrada de mercado adossada a dois prédios, parece que nada se fez ao acaso. Circula-se pelo casco histórico e é um prazer sentir que a velha Gand não foi destruída a caterpillar, guardaram-se magníficos edifícios históricos como o armazém dos cereais, as oficinas dos correios, o grémio dos marinheiros, contemplam-se as fachadas das casas patrícias e sente-se orgulho em ter uma cidade preservada. Pois bem, chegou a hora de amesendar, descansar os pés, há muita beleza à nossa espera.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 20 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19997: Os nossos seres, saberes e lazeres (343): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19998: Os nossos seres, saberes e lazeres (344): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (3) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Sem comentários: