sexta-feira, 26 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20013: Notas de leitura (1202): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (16) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É de lastimar que a história do BCAV 490 seja parcimoniosa quanto às operações desenvolvidas nas regiões de Mansabá e Bissorã, há dois relatórios centrados no Morés e no Oio, os grupos do PAIGC agem com elevado sentido tático, detetam precocemente e perseguem com emboscadas, não dão descanso. Os T-6 bombardeiam, as forças apeadas destroem as bases.
Começara o jogo do gato e do rato, só que naquele ano de 1963 ainda era relativamente fácil queimar tabancas do Morés e ali permanecer uma noite.
O bardo dedica versos tocantes ao 1.º Cabo Adozindo e já nos está a preparar para um acontecimento poderoso do início do ano, a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (16)

Beja Santos

“Adozindo Carvalho morreu
com 21 anos de idade.
Nessa maldita emboscada
teve grande infelicidade.

A muito custo se arriscou
o 1.º Cabo Enfermeiro
depois de salvar um companheiro,
algum tempo rastejou.
Ao pé do Roque se deitou,
mas foi grande azar o seu,
um terrorista lhe deu
uma rajada em sítio mortal.
E quando chegou ao hospital
Adozindo Carvalho morreu.

Depois de penar na vida
foi morto este infeliz.
A sorte assim o quis
que ele abalasse desta lida.
Já não se vê a família querida
a quem tinha muita amizade.
Na força da mocidade
teve esse grande acidente.
Deixou pena a toda a gente
com 21 anos de idade.

A força do inimigo
estava à frente da Companhia.
Ele com coragem seguia
rastejando para o perigo.
Ele era um rapaz amigo
de toda a rapaziada.
No ombro levou uma rajada
e perdeu toda a acção.
Deu muito grito de aflição
nesta maldita emboscada.

Aos seus pais se abraçou
antes de vir para o Ultramar
pensando em voltar
mas na Guiné morto ficou,
já nunca mais regressou
à sua velha cidade.
Já está na eternidade
e em Bissau sepultado
foi morto por um malvado
teve grande infelicidade.”

********************

Na história do BCAV 490, o Capitão António Pais do Amaral elaborou um relatório em 7 de novembro de 1963 acerca desta operação no Morés, onde se refere explicitamente esta morte:  
“Havia feridos principalmente no primeiro grupo de combate mas também havia um na retaguarda do segundo grupo de combate e outro no meio da coluna. O 1.º Cabo Enfermeiro n.º 1826/63, Adozindo Carvalho de Brito do primeiro grupo de combate tinha sido atingido gravemente quando, indiferente ao perigo e com a maior decisão e sangue frio, acabava de curar um camarada seu. Havia necessidade de trazer todos para a retaguarda e entretanto os T-6 ainda não tinham chegado. Foi então que o Alferes Rui de Noronha de Ferreira e o Furriel António Covas num belo gesto de solidariedade transportaram à retaguarda um dos feridos mais graves. Cremos não exagerar que todos se portaram com muita galhardia. O Morés foi atingido pelas quatro horas, altura a partir da qual os helicópteros começaram a evacuar os feridos mais graves, um dos quais o 1.º Cabo Adozindo que não resistiu aos ferimentos recebidos”.

É então que a memória esvoaça para uma outra emboscada, da minha inteira responsabilidade, eu estava no Cuor, ao fim de escassos meses era bem claro que havia pontes de passagem entre as bases do PAIGC sitas em Madina e Belel para a outra margem do Geba, fosse para colher informações fosse para a troca de produtos, fosse para o que fosse para marcar presença naquela guerra. Matéria que recordei no meu livro “A Viagem do Tangomau”, publicado em 2012 e que aqui se reproduz na íntegra:
“Confirmado que é na região entre Chicri/Gambana e Saliquinhé que se processam as deambulações de quem vive no Cuor profundo, sempre que há deslocações a Mato de Cão ao romper da alva se aproveita por calcorrear velhos trilhos e fazer regressos em verdadeira oblíqua, um dia se encontrará um trilho escondido. É precisamente o que vai acontecer já passava do meio-dia de 14 de Novembro. Uma LDG passara à frente de um comboio de 6 embarcações por Mato de Cão, cerca das 9 horas. Quando os 25 homens que acompanhavam o Tangomau pensaram que este ia pedir boleia aos barcos, foram surpreendidos pela meia volta terminante, a coluna seguiu em passo estugado de Mato de Cão a Chicri, e é precisamente numa lala que se encontrou um caminho pronunciado, durante uma hora a coluna prosseguiu pelo mato adentro e não havia que duvidar, aquele caminho inflectia bem acima de Mato de Cão em direcção a Sinchã Corubal. É preciso que se diga que se andou sempre a ver o trilho mas fora dele, caso ali se deixassem marcas de presença a gente de Madina mudaria o curso das viagens. A coluna regressou prontamente a Missirá, o Tangomau aparentava indiferença pela descoberta. Conversou com os furriéis, foi uma conversa em surdina, ficou entendido que no dia seguinte sairia no princípio da tarde, prosseguindo por aquele caminho iria montar uma emboscada nocturna.

Dito e feito, após o almoço e de surpresa convocou cerca de 25 homens, incluindo um apontador de bazuca e quatro apontadores de dilagrama. Sucintamente, informou que partiam para uma emboscada nocturna, levavam um guia, que tomassem nota do itinerário da ida, seria por aquela picada, exactamente por aquela picada, se houvesse emboscada a gente provinda de Madina, que iriam retirar; caso aparecesse um grupo oriundo fosse de Santa Helena ou dos Nhabijões, retirariam em corta-mato até Chicri, e viriam pela estrada até Canturé, sempre beneficiando da lua nova. Que cada um levasse dois cantis, que o Veloso e o Raposo distribuíssem conservas de peixe e pão, cubos de marmelada, com ou sem emboscada regressariam a Missirá a meio da manhã.

Ainda não tinha escurecido e a força operacional acoitou-se num ponto indefinido mas muito próximo das lalas de Sinchã Corubal, dentro da mata, com ampla visibilidade sobre a outra orla. O Tangomau leva três meses e meio de Cuor, sabe que a floresta à noite tem outras expressões de vida, os estalos da madeira sobressaltam, como o piar das aves pode parecer lúgubre ou de muito mau agoiro, um porco de mato pode aterrar uma patrulha em marcha, há sons que se confundem, perde-se ainda mais a noção das distâncias, só se sente o bafo dos vizinhos do lado, às vezes parece que se vai perdido num oceano de sombras. Assim se chegou à escuridão total, na primeira hora ainda houve umas mexidas para aliviar as precisões, mais adiante ouviram-se sons como o gorgolejar dos líquidos ou mandíbulas em movimento. Depois o som absoluto ou quase, havia o restolhar dos animais, não se ouvia o Geba, não bruxuleavam luzes, a lua nova assegurava uma visibilidade difusa do outro lado da mata, era a longa espera de um lince. E é exactamente quando se entra no período da dormência, em que o corpo entorpece e a mente vagueia sem préstimo que Mamadu Djau, um bazuqueiro de elite, cicia junto ao ouvido direito do Tangomau: aproxima-se gente, estão a sair do mato, vão entrar na lala. A ordem transmitida em murmúrio é de que ninguém se mexa, estejam de armas em riste, será ele a disparar, quer todos em fuzilaria para atormentar e desnortear o grupo colhido pela surpresa. E assim foi. Na maior tensão, deixou aqueles vultos avançar, descontraídos, só se ouvia a respiração descompassada dos emboscados. Alçou a G3 e disparou um carregador para dentro do caminho. Se uma flagelação dentro do quartel gera um tumultuo interior, nos primeiros segundos, e depois nos implica numa movimentação pré-concebida para um morteiro, para uma seteira, para um ponto alto e aí descarregar uma bazuca ou um dilagrama, com os nervos controlados, na fuzilaria da mata, a altas horas da noite, chega-se ao extremo de parecer que se está quase num corpo a corpo, mesmo sabendo que há distâncias insuperáveis, e que até naquele caso se ouviam urros e recuos precipitados, comprovando que quem ali vinha não possuía capacidade de ripostar. Como aconteceu. Foram minutos de fogo torrencial e depois deu-se ordem de seguir o comandante em passo de corrida por todo aquele trilho que doravante perderia préstimo para as gentes de Madina. Foi uma louca correria até Chicri, aqui verificou-se que estavam todos e de boa saúde, graças à lua nova deu para perceber como os rostos se embaciavam de suor e havia em todos uma respiração ofegante; seguiu-se para Gambana, a corta-mato até Canturé, no auge da madrugada entrou-se por Missirá, militares e civis vieram alvorotados saber o que se passava. Houve risos estrídulos, deram-se abraços, a ordem era de ir para a cama, a meio da manhã haveria trabalho à espreita.”

(continua)

Berliet destruída, lápis e aguarela de Manuel Botelho.
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Nota do editor

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Último poste da série de 26 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20011: Notas de leitura (1201): O nosso camarada A. Marques Lopes já chegou ao Brasil, ou melhor, o seu livro "Cabra-cega" (São Paulo: Paperblur, 2019, R$69,90, mais portes do correio)

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