Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta PAIGC. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta PAIGC. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26442: As nossas geografias emocionais (37): A Fulacunda do meu tempo (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3ª C/BART 6520/72, 1972/74)








Foto nº 1, 1A e 1B



Foto nº 2 e 2A


Foto nº 3 e 3A



Foto nº 4 e 4A

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda 3ª C/Bart 6520/72 (1972/74) > Aspetos do  quotidiano da população civil de Fulacunda (Fotos nºs 2, 3 e 4); porto fluvial de Fulacunda (a 2 km a nordeste do aquartelamento): reabastecimento quinzenal: mantimentos, caixas de munições, sacos de arroz para a população, etc.  (foto nº 1).


Fotos (e legenda): © Jorge Pinto (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar_ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


1. Mandei há dias uma mensagem ao Jorge Pinto com o pedido de resposta a várias perguntas:


Dá uma vista de olhos por este poste com mais fotos tuas "melhoradas", e com alguns acrescentos meus nas legendas (*).

Confirma ou corrige, por favor:



(i) a população de Fulacunda andava à volta das 300/400 pessoas ?


(ii) a tropa, cerca de 220 ? (3ª C/BART 6250/72 + 1 Pel Mil + 1 Pel Art)


(ii) o PAIGC, quantos bigrupos teria no teu subsetor (Fulacunda) ? um ou dois, no máximo...


(iii) não havia bolanhas, não havia comerciantes... logo o arroz vinha de fora...


(iv) mancarra ou milho painço ? (a mim parece-me milho, ou sorgo, diz o Cherno Baldé);


(v) população: só biafada ? balantas também ? as milícias eram fulas ? E,se sim, originárias donde ?


Manda mais fotos destas, se tiveres... Um chicoração, Luis

PS - Sei que o Fernando Carolino, cunhado do Juvenal Amado, e que foi alferes da tua companhia, e vive am Valada de Frades, tem "slides" de Fulacunda...


Dá um jeitinho, tu e o Juvenal para ele se juntar ao blogue e partilhar essas fotos (Diz-lhe que essas fotos vão parar um dia ao lixo, os netos não vão querer saber nada da Guiné, e muito menos de Fulacunda, e nós temos o dever de as salvar...



2. Resposta do Jorge Pinto:

Data - 25/01/2025, 22:05
 
Boa noite , Luís

Hoje, decidi que não adiaria mais a resposta ao teu mail. Vou tentar responder às questões que colocas e enviar mais umas fotos de Fulacunda e Bissau...

(i) Quanto à população de Fulacunda seriam mais ou menos 400 pessoas de etnia Biafada;

(vi) Havia uma família Balanta em que chefe de família usava sempre com um chapéu de cipaio, todo o dia pedia vinho ao nosso vagomestre e estava quase sempre metido em desacatos na tabanca.(Parece que o pai é que tinha sido cipaio, ou seja,elemento da "polícia administrativa, antes da guerra.)

 Havia, ainda, uma família Fula, pacata e que caçava às vezes umas gazelas que nos vendia, bem caras. (Havia pouca caça, em redor de Fulacunda.)

(ii) Toda esta população tinha familiares nas tabancas do mato que rodeavam Fulacunda e que muitas vezes vinham de visita, nos davam algumas "informações" sobre o movimento do bigrupo de Bunca Dabó, levando em troca uns quilos de arroz.
 
O pelotão de milícias era composto por uns 35 / 40 elementos, comandados pelo alferes Malá, homem grande e muito respeitado, com uma idade aproximada de uns 55 anos.

(iii) Em Fulacunda não havia comerciantes. Existia uma "mini e velhinha loja", pertença de um libanês ausente em Bissau e que às vezes um "rapazola" da tabanca abria para vender à população uns panos (tecidos) que ele enviava pelo barco que nos reabastecia.
 
Havia muito pouca atividade agrícola. Apenas era cultivada a área em redor do arame farpado que circundava todo o aglomerado. Cultivavam principalmente mancarra e algum milho painço. O alimento da população era basicamente o arroz fornecido pela tropa. (Os homens eram milícias, as mulheres lavadeiras... Enfim,. "economia de guerra"...)

Envio 5 fotos. A última foi tirada em Bissau, um ou dois dias antes do nosso regresso, por volta de 23 de agosto de 1974. Quem não conhece esta esplanada?!!!
[Será publicada noutro poste.]

As outras foram sendo tiradas em Fulacunda, durante os dois anos de comissão. (**)

Forte abraço e desejo de boa saúde, Jorge.


3. Em conversa o telefone, o Jorge Pinto adiantou ainda mais as seguintes informações adicionais:

Fulacaunda era uma terra importante amntes da guerra. Tinha um porto fluvial a 2 km, no rio Fulacunda, afluente do Geba (e, portanto,com fácil ligação a Bissau). 

Além disso, era um ponto de cruzamento de várias estradas, conforme se pode ver na carta da antiga província da Guiné (1961) (escala 1 /500 mil):

  • para oeste/noroeste, Enxudé, Jabadá. Tite, Bissássema..); 
  • para sudoeste (São João, Bolama); 
  • par sul/ sudeste: Nova Sintra, Buba, Aldeia Formosa, Empada)...

A leste tinha formidável barreira do rio Corubal, cujas margens e bolanhas eram controladas pelo PAIGC (pelo menos até 1972, ano em que foi reconquistada a península de Gampará, a nordeste de Fulacunda).

Antes da guerra havia uma numerosa população (uns 4 tabancas) à volta da vila, que era sede de circunscrição, com casas de estilo colonual, uma delas a do administrador. A população refugiou-se no mato, ficando sob controlo do PAIGC. A restante (c. 400) foi a que ficou em Fulacunda. Tudo a gente com família no mato (na guerilha ou na população sob controlo do PAIGC=...

Havia, para leste, junto ao rio Corubal, margem esquerda, duas grandes bolanhas, que continuaram a ser cultivadas, e que eram uma importante fonte de abastecimento de arroz para o PAIGC (tral como as bolanhas do outro lado rio, no sector L1, subsetores de Xime, Mansambo e Xitole):  Guebambol e Canturé (a tropa chamava-lhe Cantora, nesse tempo, diz-me o Jorge).

Havia cerca de 220 homens em armas em Fulacaunda: 

  • a 3ª C/BART 6520/72;
  •  1 pleotão de milícias (comandado pelo prestigiado alf de 2ª linha Malan;~
  •  1 pel art, com 3 obuses 14 cm.

O PAIGC tinha um  bigrupo na zona, comandando pelo Bunca Dabó. 

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26400: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (35): Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª C / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) - Parte V

(**) Último poste da série > 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26429: As nossas geografias emocionais (36): Fulacunda, sempre!... (Henk Eggens, médico neerlandês, a viver em Portugal)

Guiné 61/74 - P26440: (De) Caras (226): Encontro de inimigos de ontem, em Fulacunda, julho de 1974 (Henk Eggens, médico neerlandês, cooperante na Guiné-Bissau, 1980/84)






Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª C/BART 6520/72, 1972/74) > Julho de 1974 > Pormenor de foto de grupo: visita do bigrupo de Bunca Dabó, do PAIGC, ao quartel e tabanca de Fulacaunda, e ao porto fluvial (que ficava a 2 km de distância). Na foto, o alf mil Jorge Pinto, em farad nº 2, completamente desarmado, faz o papel de antitrião... Descontraído... Os "iniumigos de ontem" quiseram ir ver o porto fluvial...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar_ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Guiné-Bissau > s/l> s/d > O Comandante das FARP Quemo Mané (Canjabel, região de Quínara, c. 1932 - Moscovo, 1985). Fonte: Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta 05248.000.024. Reproduzido com a devida vénia...

Citação:
(1966-1973), "Quemo Mané", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43764 (2022-2-19)



1. Mensagem enviada por Henk Eggens (*),



O dr. Henk Eggens, neerlandês, médico,
cooperante na Guiné-Bissau
(Fulacunda e Bissau, 1980/84)



Data - quinta, 9 jan 2025 , 12:40
Assunto - Encontro de inimigos

Olá,  Luís,

Já desde o final do ano passado queria responder-te e agradecer pelos links para as fotografias e textos que dizem respeito a Fulacunda, Guiné-Bissau.

Fiquei olhando para as fotografias que mostram os encontros entre soldados do exército português e os guerrilheiros do PAIGC. Além da qualidade boa das fotografias em si, fiquei pensando no efeito mental deste encontro; deve ter sido emocional e confuso para ambas as partes. Vejo os portugueses relaxados, sem armas, e os do PAIGC tensos e, como escreveste, "armados até aos dentes" com RPG e AK.(**)

Fiquei pensando sobre a mudança de paradigma que deve ter acontecido nas mentes de todos os presentes. Encontrar pessoas que queriam te matar pouco tempo antes do encontro. Acho, mas não conheço, que deve existir artigos, teses e livros sobre este fenómeno que deve marcar pessoas no mundo inteiro quando a guerra acaba e os inimigos se encontram pela primeira vez. Tens conhecimento destas publicações?

Vejo as notícias da Síria nestes dias onde deve acontecer o mesmo.

Numa outra entrada no teu blogue vi a referência a um comandante do PAIGC, Quemo Mané. Este foi o governador da região de Quínara e meu vizinho durante minha estadia em Fulacunda (1980-1982). Havia rumores sobre a sua crueldade durante a luta. A história sobre o 'julgamento revolucionário' no blogue ilustra bem estes rumores de então. Tive pouco contacto com ele, mas ainda assim metia medo nas pessoas e em mim na altura. (***)

Abraços,
Henk

PS- Admito que deixo meu app IA corrigir os meus textos portugueses por erros ortográficos.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26209: Ser solidário (275): Quatro anos como médico cooperante (1980-1984), em Fulacunda e em Bissau (Henk Eggens, neerlandês, consultor internacional em saúde pública, reformado, a viver em Santa Comba Dão)

(**) Vd. poste de 18 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26278: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (31): Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª C / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) - Parte I

(***) Último poste da série > 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26206: (De) Caras (225): Duas fotografias, girândola e fastígio das recordações (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26403: Humor de caserna (98): Quando o IN... jabadava!... Até que o goês e pacato alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... (Rui A. Ferreira, Sá da Bandeira, 1943 - Viseu, 2022)


1. O Rui Alexandrino Ferreira (Sá da Bandeira, Angola, hoje Lubango, 1943-Viseu, 2022), ten cor inf ref, duas comissões no CTIG, a última como cmdt da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, jan 71 / set 72). 

Da primeira vez, esteve como alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67). Foi um grande operacional, e também um talentoso escritor, tendo-nos deixado três livros de memórias. Angolano,  adoptou a cidade de Viseu, depois do 25 de Abril,  para viver, amar, escrever e morrer (a sua última obra, de 2017, tem por justamente por título "A caminho de Viseu - Memórias").

Gostava de pregar partidas, e era um bom contador de histórias.


Do seu segundo livro ("Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014), vamos publicar duas histórias sobre Jababá (um dos subsetores do setor S1: Tite, Jabadá, Fulacunda, São João) , em dois postes separados. 

poucas referências no nosso blogue a Jababá (pouco mais de 3 dezenas), na região de Quínara, na margem esquerda do Rio Geba, um aquartelamento que se via quando se navegava no rio Geba, de Bissau para o Xime ou vice-versa (quer no "barco turra", quer em LDG).

A história da reconquista da Ponta de Jabadá en 29/1/1965, já foi aqui contada pelo Gonçalo Inocentes, nosso grão-tabanqueiro nº  810. Até então o PAIGC era "rei e senhor", impondo ali o terror à navegação no Geba.

Pelas nossas contas, esta história com o "alferes Basílio" deve-se ter passado em meados de 1965, ao tempo do BCAÇ 599 (Tite) e com o Pel Mort 912 a guarnecer Jabadá, reocupada após a Op Braçal. (No entanto, ao tempo do nosso camarada Santos Oliveira, ex-fur mil do Pel Mort 912, o comandante seria o alferes Rodrigues, desconhecendo nós o seu primeiro nome; mas Basílio também pode ser um pseudónimo.)

 

Quando o IN... jabava!... Até que o goês e pacato  alferes Basílio dos morteiros quis saber porquê... 


por Rui A. Ferreira (1943-2022)



Jabadá era uma guarnição debruçada sobre o rio Geba. Organicamente dependia do batalhão de Tite e era atacada constantemente, de tal forma que, quando se queria dizer que o IN tinha atacado  Jabadá, se dizia:

− O IN... jabadou!

O alferes Basílio era um moço calmo e sereno, como aliás o são a maioria dos indivíduos com tendência para engordar. Comandava o pelotão de morteiros que ocupava Jabadá e que era na altura a única tropa ali presente.

Farto de ter de aturar  ataques sucessivos, um belo dia, este tranquilo goês, abdicando da sesta, que era prática e unanimemente por todos cumprida (guerrilheiros do IN idem idem, aspas aspas), disfarçou-se a si e a parte do seu grupo, com roupas e artefactos do IN, saiu rapidamente do aquartelamento, entrou por uma casa de mato dos guerrilheiros, eliminou uma série deles e voltou o mais rapidamente que conseguiu para Jabadá.

Continuou a ser atacado, mas agora já sabia a razão porque o faziam.

Fonte: Excertos de  Rui Alexandrino Ferreira, "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra: Palimage, 2014, pág. 346.


( Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, título: LG)
 
_________

domingo, 12 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26383: Efemérides (448): Há 54 anos, em 31/12/1970, acabámos com o álcool no bar de Nema, para "dar de beber à dor" pela morte de camaradas nossos na véspera (Eduardo Estrela, ex-fur mill, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)


1. Mensagem  do Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2592/CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, Vila Real de Santo António; membro da Tabanca Grande desde 29/2/2012 (foto à direita)


Data - sexta, 27/12/2024, 21:50
Assunto - Memórias


Boa noite, Luís!


O post 26316 transporta-nos dolorosamente para a terrível emboscada na estrada Ponte Caium-Piche.(*)

Fui reler o P18551  (**) onde o Jorge Araújo relata a actividade do corpo de exército do PAIGC durante o final do ano de 1970, na zona dos corredores de Sitató e Lamel.

Como tenho comigo a história do BCAÇ 2879 onde a minha companhia estava integrada como unidade independente e de forma a ajudar o meu arquivo mental, fui também reler a mesma.

Já o disse no blogue que o PAIGC esteve muito ativo no período compreendido entre o início de dezembro de 1970 e meados de janeiro de 1971, na zona de Lamel (setor O2).

Tivemos nesse espaço de tempo 14 mortos e dezenas de feridos, a maior parte resultante de combates com os guerrilheiros e outros de acidente em atividade operacional na zona.

Em 14, para além do camarada João Bento Guilherme que faleceu, houve 4 feridos graves da Ccaç 2533.

Em 21 morreu em combate o camarada António da Fonseca Ambrósio que era alf mil da 2533 .

Em 30 , para além dos dois camaradas da Ccaç 14, morreram 2 camaradas do Pel Mil 281, 2 do Pel Mil 283 e 2 da Ccaç 2547.

Em 19 de Janeiro de 1971 um acidente com granada defensiva colocada num dilagrama provocou a morte de 3 camaradas da Ccaç 2681 e 2 dos Pelotões de Milícias, quando a coluna circulava na zona de Lamel.

Na emboscada de 30 de dezembro morreu o condutor da minha companhia José Rodrigues de Carvalho Lopes, o qual era habitualmente o rebenta-minas nas colunas onde estivesse integrado .

Nas colunas onde o comandante da escolta era eu, viajava sempre ao seu lado.  Nesse dia a escolta era feita pelo grupo de combate do António Bartolomeu, já que o meu grupo estava a reforçar a CCAÇ 2549 do à época capitão Vasco Lourenço.

Eram sensivelmente 16,30 quando em Nema/Farim começámos a ouvir os sons dos rebentamentos. Pelo rádio soubemos que já havia vários mortos e feridos. Saíram forças de Nema e de Jumbembem em socorro, mas quando chegámos ao local vislumbrámos um quadro horripilante.

O PAIGC imobilizou a coluna com o rebentamento dum fornilho. Apesar da pronta resposta da nossa malta,  o resultado da luta deixou-nos o coração esmagado. O Lopes era um moço fantástico. Era casado, tinha uma filhinha que nunca conheceu e era ele que nos cortava o cabelo.

Chorei a sua morte e a dos outros companheiros caídos.

No dia seguinte acabámos com o álcool no bar comum de sargentos e oficiais de Nema.
O "bioxene",  como diz o Valdemar,  era a muleta para o esquecimento e para suportar o inferno.

Abraço fraterno
 
Bom 2025 para ti e para todos os comparsas da fábula da loucura que ainda vão resistindo às intempéries 
da vida. (***)

Eduardo
_________________


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26365 Notas de leitura (1762): "Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação": apresentação do prof Joop de Song, Simpósio Internacional "Amílcar Cabral: Um Património Nacional e Universal", Praia, Cabo Verde, 9 de setembro de 2024


PAIGC > Foto nº 1 > Soldado com arma (LGFog RPG-7)



PAIGC > Foto nº 2 >  Guiné-Bissaiu, zona norte: evacuação com maca para o Senegal




PAIGC > Foto nº 3 > Exames médicos: uso do microscópico



PAIGC > Foto nº 4 > Intervenção cirúrgica ao ar livre, no mato: médicos cubanos, enfermeiro guineens



PAIGC > Foto nº 5 > Ambulância de Zinguichor, Senegal



PAIGC > Foto nº 6 >  O dr. Roel Coutinho usando a pistola de vacinação


PAIGC > Foto nº 7 > Loja do Povo, em Sara, na região do Oio



PAIGC > Foto nº 8 > Mulher, em escola para adultos


PAIGC > Foto nº 9 > Guerrilheiro, em escola para adultos



PAIGC > Foto nº 10 > Cabo Verde, ilha de Santiago, Praia>  Mural: o juramento de Amílcar Cabral (1969): "Eu jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e em Cabo-Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho".

As fotografias, com exceção da última, são do médico Roel Coutinho. Existe uma série para uso livre de fotografias do Dr. Coutinho no Wikimedia Commons .

https://commons.wikimedia.org/wiki/Commons:Guinea-Bissau_and_Senegal_1973-
1974_(Coutinho_Collection)



Roel Coutinho, 2016, foto de Patrick Sternfeld / capa 
da revista "Benjamin", junho 2016, ano 28, nº 104.
Com a devida vénia...


É hoje um prestigiado médico, epidemiologista e professor,jubilado, de epidemiologia e prevenção de doenças transmissíveis. Esteve no Senegal e na Guiné-Bissau, em missão sanitária que não excluia a simpatia política pelo PAIGC, entre março de 1973 e abril de 1974. (O seu álbum fotográfico, com cerca de 700 documentos, é o mais completo que conhecemos sobre o PAIGC na zona norte; tem 16 referências no nosso blogue.)

Tinha acabado de se licenciar em medicina (em 1972). Especializar-se-ia depois em microbiologia médica. Doutorou-se em 1984, em doenças sexualmente transmissíveis. É um especialista mundial em HIV/Sida, com mais de 600 artigos publicados em revistas científicas.

Roel Coutinho nasceu em 1946, nos Países Baixos, em Laren, perto de Amesterdão, província da Holanda do Norte. Tem ascendência luso-judaica, sefardita: os antepassados, marranos ou cristãos-novos, devem ter saído de Portugal para a Holanda no séc. XVII. Os portugueses, cristãos novos, e de novo reconvertidos ao judaísmo, constituíam uma comunidade prestigiada e influente, pela cultura, o dinheiro e o poder. Sempre usaram os seus apelidos portugueses até à II Guerra Mundial.

Prova da importância da comunidade luso-judaica de Amesterdão (onde nasceu o grande filósofo Espinosa, 1632-1677), é a "Esnoga", a monumental Sinagoga Portuguesa, inaugurada em 1675, e chegou a ter 3 a 4 mil fiéis. Hoje a comunidade está reduzida a umas escassas centenas de pessoas: espantosamente o edifício da "Esnoga Portuguesa", monumento nacional, escapou à destruição da II Guerra Mundial e à ocupação nazi; é visita obrigatória para os portugueses que forem a Amesterdão
. (LG)





Médico, doutorado, psiquiatra e psicoterapeuta: (i) professor emérito de Psiquiatria Cultural e Saúde Mental Global na Amsterdam University Medical Centre;  (ii) professor ajunto emérito de Psiquiatria na Escola de Medicina da Universidade de Boston e professor visitante emérito de Psicologia na Universidade de Rhodes, África do Sul; (iii) fundador e diretor da Organização Psicossocial Transcultural (TPO), que presta serviços de saúde mental e psicossociais, especialmente em áreas de pós-guerra e pós-desastre, em mais de 20 países em África, Ásia e Europa; (iv)  trabalhou  a meio tempo como psicoterapeuta e psiquiatra com imigrantes e refugiados na Holanda: (v)  tem integrado os contributos  da saúde mental pública e global, psicoterapia, psiquiatria, antropologia e epidemiologia em intervenções comunitárias; (vi)  e autor e coautor de 335 artigos, capítulos e livros.
 
(Nota curricular e foto, reproduzidos, com a devida vénia, de: World Association of Cultural Psychiatry)
 


Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação

Por Prof. Joop de Jong


Texto enviado para publicação no nosso blogue, em 7 de setembro último,  pelo nosso leitor,  o Dr. Henk Eggens, de nacionalidade neerlandesa, especialista em saúde pública e medicina tropical, que vive em Portugal (Santa Comba Dão):

"Texto da apresentação que o meu amigo e colega Dr. Joop de Jong (neerlandês) fará na Praia, Cabo Verde, no simpósio Amílcar Cabral no dia 9 de setembro 2024. https://www.100amilcar.com/agenda/event-five-la65y-9xatt (Simpósio Internacional > Amílcar Cabral: Um Património Nacional e Universal | Cabo Verde e Guiné-Bissau, 9-12 de setembro de 2024).

"Trata-se de uma exposição sobre o  sistema de saúde desenvolvido pelo PAIGC na zona norte da Guiné durante a guerra."


__________

O Prof. Joop de Jong foi trabalhar como  jovem médico  nas zonas libertadas no Norte da Guiné en 1973. Voltou como psiquiatra para Bissau em 1981 para desenvolver a psiquiatria no país. Ajudou construir um hospital de psiquiatria no bairro de Brá, Bissau. Publicou sobre "Jangue na Guiné-Bissau: uma síndrome cultural entre as mulheres Balantas".

 De Jong é professor emérito de Psiquiatria Cultural e Saúde Mental Global.


Introdução

O desejo de independência é muitas vezes impulsionado pela indignação moral e pela falta de perspetiva social. Antes da luta pela independência e desde a fundação do PAIGC em 1956, Amílcar Cabral desenvolveu uma visão para reduzir as desigualdades em que os guineenses nascem, vivem e envelhecem. Ele tentou libertar a população guineense do seu atraso em quase todos os domínios da vida: desigualdade social, pobreza, desnutrição, falta de educação e cuidados de saúde. 

Para dar uma ideia dessa tarefa hercúlea: a mortalidade infantil na Guiné Portuguesa era de sessenta por cento em 1954, a doença do sono prevalecia em dois quintos das aldeias, e os hospitais ofereciam um mínimo de cuidados nas cidades (cf. Teixeira da Mota em Cabral 1961). Portugal gastava muito pouco dinheiro em cuidados de saúde em comparação com os países vizinhos (1). 

E os portugueses, ao contrário de outros colonizadores, não se consideravam racistas. Eles não tinham nada contra os asiáticos ou os negros, apenas contra os “nativos incivilizados” que tentavam elevar a assimilados. Nos anos 50 do século XX, 0,39% da população guineense estava registada como “assimilada” (2 ). (Foto nº 1: Soldado do PAIGC com arma. Roel Coutinho). 

A desigualdade social foi causada por uma diferença de poder e recursos. Quando Amílcar e um punhado de camaradas começaram a luta em 1963, eles não tinham poder, dinheiro ou
conhecimento. Como eles lidaram com isso?

Nesta apresentação, descrevemos as iniciativas do PAIGC para melhorar os cuidados de saúde da população e dos combatentes pela liberdade. Mostramos em linhas gerais que o PAIGC - muito antes da reunião da OMS em Alma Ata em 1976 - tentou combater a desigualdade social melhorando a agricultura, a educação e os cuidados de saúde. 

Isso aconteceu em parte como uma reação ao regime português que, ao longo da luta, tornou-se mais severo e aumentou a repressão da população local. E quando a luta pela libertação teve sucesso. De Spínola tentou igualar os sucessos do Partido com o seu programa “Guiné melhor”. Ele até falou sobre “realizar uma verdadeira revolução social para aumentar a autoestima e a dignidade da população” (O Século, 7 de agosto de 1970). 

A dinâmica entre libertador e opressor, entre cuidados curativos e preventivos e entre cultura indígena e moderna, determinou o desenvolvimento dos cuidados de saúde. Esboçamos esses desenvolvimentos desde o início da luta.

O início da guerra

Durante a primeira fase da luta, o objetivo era “cuidar dos feridos com os meios disponíveis”. “Meios disponíveis” como eufemismo para os quatro enfermeiros que se formaram em Bissau e se tornaram membros do Partido. Esses enfermeiros treinavam socorristas que eram selecionados entre os guerrilheiros (3). Uma dessas socorristas é a heroína nacional Titina Silá (4). 

Os socorristas eram integrados nas unidades de combate para salvar o máximo possível de soldados e outras vidas com alguns curativos, líquido desinfetante e soro antitetânico. Os gravemente feridos eram transportados em macas feitas de galhos até a fronteira. E,  de lá, evacuados a uma grande distância para as capitais dos países vizinhos, Conacri ou Dakar. (Foto nº 2: Evacuação com maca para Senegal. Roel Coutinho).

O auge da luta

Entre 1965 e 1970, o PAIGC conquistou cada vez mais áreas libertadas. Os portugueses responderam com "a cenoura e o pau”. Por um lado, deslocaram a população local para as
“aldeias protegidas”
["reordenamentos"].

Esta abordagem foi copiada dos franceses na Argélia e dos americanos no Vietname. O objetivo era “proteger” as guarnições militares contra-ataques dos “terroristas” com a ajuda de uma camada de habitantes locais. Por outro lado, o mato foi bombardeado com mais frequência. O PAIGC adaptou-se organizando o máximo possível de cuidados acessíveis nas zonas libertadas para militares e moradores das aldeias . Nesse período, foi criada uma rede de mais de cem postos de saúde (5) . 

Enfermeiros auxiliares formaram a espinha dorsal do serviço médico e ofereceram cuidados básicos. Os pacientes podiam ser internados temporariamente enquanto aguardavam a visita de um médico do hospital mais próximo. Casos de emergência eram transportados para lá em macas. (Foto nº 3 : exames médicos mo, com uso do microscópico. Roel Coutinho).

Num nível de atendimento superior, foi criada uma rede de hospitais setoriais e regionais (6) . Aqui, os pacientes encaminhados eram tratados e os enfermeiros auxiliares eram treinados.

Os hospitais foram construídos com materiais locais. Tudo era feito de ramos e palha e ficava bem escondido entre as árvores. Duas cabanas alongadas com vinte camas cada para
os doentes. Uma cabana como consultório, uma como sala de operações e algumas cabanas para o pessoal. Muito era feito ao ar livre. (Foto nº 4: Operação no ar livre. Médicos cubanos, enfermeiro guineense. Roel Coutinho).

Devido à construção simples, tudo podia ser facilmente deslocado. Quando os bombardeamentos  aumentaram, o PAIGC decidiu que cada hospital deveria ser deslocado anualmente (7) . Incluindo doentes e pessoal, isso levava cerca de três dias.

Cabral (1975, II: 216) percebeu a importância dos cuidados autónomos nas áreas libertadas. penas casos muito graves eram evacuados para um dos três hospitais nos países vizinhos (8) .

A liderança do Partido também percebeu que os cuidados eram muito curativos e distantes da população para fazer algo sobre a terrível condição de saúde dos moradores rurais (9). Essa péssima saúde estava relacionada à desnutrição, que por sua vez estava relacionada com a imposição colonial de cultivar culturas comerciais em detrimento das culturas alimentares. A má condição de saúde também era resultado da falta de higiene, baixa taxa de vacinação e alta taxa de analfabetismo. 

Duas iniciativas deveriam melhorar essa situação. Cada setor recebeu uma brigada de saúde composta por três assistentes. Eles tentaram ensinar aos aldeões os princípios de higiene, nutrição e cuidados materno-infantis. E encaminhavam os doentes para os postos de saúde. Com sucesso variável. Cabral lamentou que os “camaradas não prestassem atenção suficiente às brigadas de saúde” (Cabral 1971: 13) (10). 

A segunda iniciativa preventiva consistia em campanhas de vacinação e na prevenção da malária com redes mosquiteiras e profilaxia da malária. (Foto nº 5. Ambulância, Ziguinchor, Senegal.Roel Coutinho).

Vacinação

O médico holandês Roel Coutinho trabalhou em 1973 nas áreas libertadas. Ele descreve uma viagem pela floresta para ir fazer vacinação  num acampamento:

"Com a velha ambulância, dirigimo-nos de Ziguinchor, no Senegal, até a fronteira com a Guiné-Bissau.

"Em ritmo acelerado e em silêncio mortal, caminhámos por 1,5 horas por um caminho estreito através de uma floresta escura. Com uma 'canoa', atravessámos o rio. Esperámos na borda densamente arborizada da floresta ao longo do rio. Alguns soldados surgiram entre as árvores. Quando entrámos na floresta, vi que o acampamento estava ali. Espalhados entre as árvores estavam camas com redes mosquiteiras penduradas acima. Alguns soldados desapareceram entre as árvores para avisar que haveria vacinação e consulta. (Foto nº 6:  O Dr. Roel Coutinho vacinando com pistola de vacinação.  Roel Coutinho):

"Revezávamo-nos para vacinar com a pistola de vacinação. Quando a pistola de vacinação ficava bloqueada por poeira, os enfermeiros mudavam rotineiramente para seringas e agulhas. Durante as consultas, verificou-se que um dos pacientes estava em tão mau estado que teve de ser levado de maca e ambulância de volta para o hospital em Ziguinchor# (De Jong & Buijtenhuijs 1979).

O Partido investiu muito tempo na melhoria e diversificação da agricultura e na criação de lojas comunitárias onde os agricultores podiam trocar seus produtos por itens de primeira
necessidade. (Foto nº 7: Loja do Povo, Sara. Roel Coutinho).

E o Partido incentivava o que hoje chamamos de atividades geradoras de rendimento.

Outra prioridade foi a emancipação das mulheres, por exemplo, através da educação. (Foto nº 8: Escola para adultos, mulher; foto nº 9: Escola para adultos, guerrilheiros).

Cultura

E o PAIGC descobriu, através de tentativa e erro, que a cultura era uma espada de dois gumes.

A atitude de Cabral em relação à cultura pode ser melhor descrita nestes termos: “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Assim, os curandeiros guineenses, como em inúmeras outras culturas da África Subsaariana, oferecem proteção contra balas e, naturalmente, contra a feitiçaria e bruxaria. 

Cabral sabia que alguns combatentes se sentiam invulneráveis por causa disso. Por isso, ele às vezes enviava um ajudante para evitar que um comandante se levantasse e avançasse no meio de uma chuva de balas (11). 

A cultura e os modelos de explicação cultural também desempenham um papel nas consultas médicas, tanto no tratamento individual quanto nas iniciativas de saúde pública.

É difícil aceitar que pacientes com tuberculose interrompam seu tratamento médico assim que a tosse com sangue pára. Curandeiros respondem a esse enigma após uma longa série de entrevistas: 

“Claro que sabemos que vamos morrer se tossirmos sangue e, por isso, vamos ao hospital com seus medicamentos poderosos. Mas o que vocês não entendem é que a hemorragia é causada por uma flecha ou bala invisível para vocês, de uma arma de feitiçaria que atinge o peito por dentro. E o curandeiro ou curandeira é o único que pode curar essa ferida. Por isso, os pacientes vêm até nós o mais rápido possível após suas injeções e pílulas para uma verdadeira cura”.

Mas Cabral e a liderança do Partido também testemunharam as terríveis consequências do poder da cultura durante o primeiro congresso do Partido em Cassaca em 1964. Um grupo
de mulheres Balantas nómadas fez acusações de feitiçaria. As mulheres diziam que as bruxas eram responsáveis pela morte de aldeões, enviando aviões e helicópteros portugueses para
atacá-los. 

Os anais do Partido não são claros sobre esse período, mas provavelmente algumas centenas de bruxas foram torturadas e mortas por comandantes do PAIGC. Esses comandantes tiveram que responder durante o congresso do Partido e cerca de uma dezena deles foram condenados à morte (De Jong, 1987; De Jong & Reis, 2010: 313; 2013). 

Vinte e cinco anos depois, os Balantas foram tomados por um culto de possessão em massa, o Ki-yang-yang. O culto de cura emancipa a posição das mulheres entre os Balantas, bem como
a posição dos Balantas dentro do Estado guineense.

 O culto também ajuda os Balantas a lidar com o trauma da luta pela libertação (De Jong & Reis, 2010; 2013). Os seguidores estão convencidos de que os líderes um dia tirarão uma motocicleta do chão para todos. A semente dessa esperança mítica foi plantada por Amílcar, que prometeu prosperidade material à população após a independência.

Discussão

Um sistema de saúde é composto por todos os atores que tentam melhorar a saúde e os cuidados. O sistema é construído sobre serviços, trabalhadores da saúde, medicamentos essenciais, financiamento, liderança e sistemas de informação. Vimos que esses componentes estavam ausentes no início da luta pela independência e que o PAIGC operava num vácuo.

O movimento de libertação construiu, num período de aproximadamente 15 anos, um sistema de saúde simples. O sistema de saúde fornecia cuidados curativos consistindo em diferentes escalões de postos e hospitais nas áreas libertadas e nos países vizinhos. Com o objetivo de organizar cuidados acessíveis, próximos e acessíveis para os combatentes e a população local. Numa fase posterior, o Partido focou-se na descentralização e na prevenção.

Quanto à escassez de trabalhadores da saúde, o Partido organizou uma cascata de níveis de formação e treino. Médicos estrangeiros e médicos guineenses que retornaram do exterior, 
treinavam e supervisionavam várias categorias de trabalhadores da saúde locais. 

É uma forma de educação continuada que gradualmente resulta em competência crescente. Mas, na independência, o nível dos enfermeiros era insuficiente, tanto do lado do PAIGC quanto do lado colonial. Isso também se aplicava aos médicos que estudaram na Universidade Lumumba em Moscovo.

O Partido também estabeleceu um sistema de distribuição de medicamentos. A maioria desses medicamentos foi doada por países comunistas e comitês de solidariedade. (Foto nº: Praia, Cabo Verde, mural: Retrato e juramento de Cabral).

Cabral conheceu bem o país e as pessoas durante o Recenseamento Agrícola de 1953, anos antes da fundação do PAIGC. Ele percebeu a importância do que hoje chamamos de desenvolvimento intersetorial. Agricultura, economia, desenvolvimento rural, educação, saúde e emancipação das mulheres estão interligados. E a sinergia só pode ser alcançada através da colaboração com outros domínios e setores.

A Organização Mundial da Saúde afirmou em 2008 que a saúde da população mundial só pode melhorar trabalhando nos determinantes sociais da saúde. 

Algumas décadas antes, o PAIGC e Amílcar Cabral já se concentravam em fatores que reduzem a desigualdade social entre as pessoas. Dentro das suas possibilidades limitadas, fizeram tudo o que podiam para melhorar as condições precárias em que os guineenses nasciam, cresciam e envelheciam.

___________

Notas do autor:

(1) Em 1959, per capita, 1,1 US$. Libéria 1,6. Mauritânia 4,2. Serra Leoa 19,1 (Rudebeck 1974:39; De Jong & Buijtenhuijs 1979: 115).

(2) Para obter mais ou menos os direitos de um cidadão português, o assimilado tinha que cumprir requisitos como: ter mais de 18 anos, falar bem português, sustentar-se, ter um modo de vida civilizado e não ser recusador de serviço ou desertor (Rudebeck 1974: 22).

(3) E que muitas vezes perderam um membro na luta ou sofrem de uma doença grave como a lepra.

(4) Em 1963, ela foi escolhida para ir à União Soviética para uma formação em guerra de guerrilha, junto com Teodora Inácia Gomes. Após o seu regresso, ela treinou outros guerrilheiros. Em 1964, ela fez um curso de primeiros socorros na União Soviética. Em 30 de janeiro de 1973, ela foi morta em uma emboscada pelo exército português. Ela se afogou no rio Farim, a caminho do funeral de Amílcar Cabral, que foi assassinado uma semana antes.

(5) 117 postos de saúde. Na frente sul, 42; na frente norte, 64; e na frente leste, 11 (De Jong &; Buijtenhuijs, 1979).

(6) No total, 13. Em 1973, havia sete hospitais setoriais (3 no Norte, 3 no Sul e 1 no Leste) e seis hospitais regionais (2 no Norte, 3 no Sul e 1 no Leste). Os hospitais regionais começaram a ser estabelecidos a partir de 1966 e eram dirigidos por um cirurgião, e os hospitais setoriais a partir de 1971, sob a direção de um assistente médico.

(7) Assim, o hospital de Sara foi deslocado dezassete vezes em um ano devido a bombardeamentos e ataques por tropas transportadas por helicópteros. Ninguém ficou ferido. Desde então, os hospitais eram regularmente deslocados.

(8) Para três hospitais no exterior. O bem equipado Hospital de Solidariedade, em Boké, com 123 leitos, onde os feridos evacuados da frente sul foram tratados. Em 1972, 136 feridos de guerra, 72 fraturas e 9 amputações foram realizadas aqui. Isso explica por que Cabral disse a um jornalista que "temos tão poucos feridos que mal vale a pena mencionar#".  Os doentes e feridos da frente leste também iamj para a Guiné Conacri, ou seja, para o hospital em Kundara, com 50 leitos. E os da frente norte para o hospital em Ziguinchor, também com 50
leitos. Havia laboratórios simples e dois dos três hospitais tinham uma sala de operações e uma seção de raios-X.

(9) As doenças mais comuns em 1975 foram: infeção por ancilostomíase (66%); desnutrição proteica e energética (48%); tracoma (42%); anemia (34%); malária (34%); hérnia abdominal (27%); filariose (21%); infeções respiratórias (15%); vermes intestinais (10%); infeções cutâneas (%); ceratite (9%); bócio (8%); catarata (5%). 64% precisavam de cuidados odontológicos (A Saúde em Oio 1975: 49-53).

(10) Na frente norte, as brigadas nunca foram realmente ativas. Alguns comissários políticos, como Carmen Pereira, incentivaram as brigadas. E, ao contrário dos cuidados básicos de saúde na China, o Partido exerceu pouca pressão, como também é evidente no diário de Roel Coutinho (2022).
 
(11) Nino Vieira, que mais tarde liderou o golpe contra Luís Cabral, é um exemplo do que os companheiros de luta consideravam um caso de invencibilidade ou invulnerabilidade.

Bibliografia:

A. Cabral (1961) Report to the United Nations.

A. Cabral (1971) Sobre alguns problemas práticos da nossa vida e da nossa luta.

A. Cabral (1975) Unité et lutte I et II. François Maspéro. Paris.

Roel Coutinho (2022) De vrijheidsstrijd van Guinee-Bissau door de ogen van een jonge
dokter. Afrika Studie Centrum. Leiden.

Joop de Jong & Rob Buijtenhuijs (1979) Een bevrijdingsbeweging aan de macht [A liberation
movement in power]. De Uitbuyt. Wageningen.

Jong de, J.T.V.M. (1987) A descent into African psychiatry. Royal Tropical Institute.
Amsterdam. ISBN 90 6832 018 1.

Jong de, J.T.V.M. (1987) Jangue in Guinee Bissau: een cultuurgebonden syndroom onder
Balanta vrouwen [Jangue in Guinea Bissau: a culture bound syndrome among Balanta
women]. Ned Tijdschrift v Psychiatrie 2, 5886.

Joop T. de Jong & Ria Reis (2010) Kiyang-yang, a West-African post-war idiom of distress.
Culture, Medicine and Psychiatry, 34, 2, 301-321.

De Jong, J.T.V.M., Reis, R. (2013) Collective trauma píprocessing: Dissociation as a way of
processing postwar traumatic stress in Guinea Bissau. Transcultural Psychiatry, 50 (5) 644-
661.

Rudebeck, L. (1974) Guinea Bissau: A Study of Political Mobilization. The Scandinavian
Institute of African Studies. Uppsala.

Saúde em Oio (1975). Minsas. Bissau.

(Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: HE / LG)

_________________

Nota do editor LG:

sábado, 28 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26320: Operação Grande Empresa, a reocupação do Cantanhez e a criação do COP 4, a partir de 12 de dezembro de 1972 - Parte V: Um ano depois, pelo Natal de 73, dá-se iníco à Op Estrela Telúrica: "Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade" (António Graça de Abreu, CAOP1, Cufar, 22, 25 e 26 de dezembro de 1973).



Foto nº 1




Foto nº 2


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CAOP1 > c. 1973/74 > Em cima, o António Graça de Abreu, em Cufar, no rio Cumbijã (foto nº 1); na foto seguinte (nº 2), posando de camuflado, no aeroporto de Cufar, em janeiro de 1974, com Miguel Champalimaud.

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um ano depois do início da Op Grande Empresa (*), o Cantanhez continua a "ferro e fogo"... É o que se deduz da leitura do incontornável diário do  António Graça de Abreu, de que já publicamos,  em tempos,  extensos excertos, com a devida autorização do autor. 

Estamos a falar do  "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp)

Recorde-se que o nosso António Graça de Abreu:

(i)  chegou a Bissau a 24/6/1972, vindo de DC-6, de Lisboa;

(ii) foi colocado no CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1, sediado em Canchungo (Teixeira Pinto);

(iii) era alferes miliciano, com a especialidade de atirador de infantaria, reclassificado por incapacidade parcial em "Secretariado, Serviço de Pessoal";

(iv)  chegou a Canchungo, de helicóptero, a 26, de manhã;

(v) nunca identifica, no livro,  o seu primeiro comandante, coronel paraquedista [ Raul Durão, durão de apelido e durão no exercício da autoridade];

(vi) tinha um diário, onde escrevia quase todos os dias (ou, em alternativa, cartas e aerogramas que mandava à sua mulher, num total de 347, até ao fim da comissão, em  17/4/1974);

(vii)  teve os seus primeiros "trinta e cinco dias de férias em Portugal" de 7 de novembro a 17 de dezembro de 1972 (período em que não tem quaisquer notas no seu Diário); (uns dias antes, a 12, começara a Op Grande Empresa, no sul da Guiné);

(viii)   passou depois por Mansoa (Parte II do Diário) para acabar a sua comissão, sempre no CAOP1, em Cufar, no sul da Guiné (Parte III).

É desta III parte do seu diário, que transcrevemos as suas entradas relativas aos dias 22, 24 e 26 de dezembro de 1973. É já com-chefe e governador da Guiné o gen Bettencourt Rodrigues. 

É em Cufar que o António Graça de Abreu passa o seu Natal de 1973, o seu segundo Natal na Guiné, numa época claramente de escalada da guerra no sul... 

Estava em curso mais uma grande operação no Cantanhez, a Op Estrela Telúrica, na sequência  da Op Grande Empresa (reconquista e reocupação do Cantanhez, península do Cubucaré, dezembro de 1972-junho de 1973). 

Como ele escreveu ironicamente, "Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação 'Estrela Telúrica.' Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade". 



2. Excertos do Diário da Guiné:


(...) Cufar, 22 de dezembro de 1973 

Deixei a cidade [de Bissau], deixei o frenesim das gentes, os motores, a poluição, a confusão e regressei ao bucolismo do campo, à nada pacata aldeia africana, aos rebentamentos de granadas, foguetões e bombas, às cabeças alteradas pela guerra, ao desamor e aos medos.

Ao descer do Nordatlas na pista da Cufar, deparei-me logo com a nossa ambulância à espera, pronta para as evacuações para Bissau. Mais um morto e oito feridos, fuzileiros estacionados no Chugué,  atacados no rio Cumbijã,  mesmo em frente a Cufar.

Preparam-se grandes operações na zona. Os comandos africanos vêm cá para baixo fazer mortos, ter mortos. Ontem – isto é muito animador! – deslocaram-se para Cufar mais dois médicos (um cirurgião e um anestesista) mais uns tantos enfermeiros. Trouxeram uns quilos largos de aparelhagem médica e cirúrgica, e materiais para primeiros socorros, enfim temos um aparato clínico capaz de assustar o menos medroso.


Os pobres vão morrer com a certeza de que morrerão bem acompanhados e assistidos.

Por estes dias, chegarão mais quinhentos homens, três companhias de comandos africanos, mais a minha conhecida 38ª de Comandos e ainda talvez paraquedistas. Estes homens vão tentar a “limpeza” do Cantanhez. Em Bissau, encontrei alguns alferes amigos da 38ª que me puseram a par do que se espera com esta operação. Os rapazes também estão receosos, o moral não é elevado.


Entretanto, os Fiats continuam a bombardear aqui à nossa volta, com poucos resultados, parece que os guerrilheiros já possuem abrigos à prova da nossa aviação.

Cufar, 24 de dezembro de 1973 


Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.

Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã.  

Os pobres de Cadique,  a 1ª C/BCAÇ 4514/72  , que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel,  comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. 

O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. 

Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvario da espécie humana.


Cufar, 26 de dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. 

Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de “Estrela Telúrica”. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a “Estrela Telúrica” prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª CCmds, fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. 

Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a “embrulhar”, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata,[1] com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. 

O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. 

Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. 

Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos “embrulhanços”, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação “Estrela Telúrica.” Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

_____________

Nota do autor:

 [1] Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, (coord.), Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora,1995, pp. 195-213.

(Revisão / fixação de texto, para publicação no blogue: LG)

________________