Fui depois à junta médica. Era um coronel e um tenente-coronel. Não sabia mas pensei que deviam ser médicos já que chamavam médica àquela junta. O coronel puxou duns papéis. Folheou-os, os dois olharam depois para eles e cochicharam. Devia ser do meu processo, pensei.
– O ouvido esquerdo tem 10% de incapacidade, no direito tem 20%. De resto está tudo bem - ouvi dizerem.
Foi tudo rápido.
O coronel juntou os papéis e disse:
– Está apto para todo o serviço.
O tenente-coronel abanou a cabeça que sim. Levantaram-se os dois.
– Vá ao Depósito Geral de Adidos. Leve isto.
Estendeu-me um dos papéis e vi que era a ordem para me apresentar lá.
Grande fantochada, fui pensando depois daquilo. Mera formalidade porque já tinham decidido que devia regressar à Guiné. Já sabia que os feridos, depois de curados tinham que ir terminar a comissão. Mas é se estivessem mesmo curados, em condições, também sabia isso. O grau de incapacidade por eles apontado não era verdadeiro. Como é que podia ser se o médico que me tratara dissera que o tímpano esquerdo tinha colado mas o direito não, que ia continuar com um buraco? Filha da putice.
Fui para o DGA, Depósito Geral de “Ardidos”, como a malta lhe chamava.
No primeiro dia decidi deslocar-me ao Anexo do Hospital Militar em Campolide para ver o Fragata. Não foi fácil entrar.
– Só os familiares é que podem visitar os doentes – disse-me o Oficial de Dia, um alferes.
– Espera lá. Não sei se és do quadro ou se és miliciano, isso não interessa porque hás-de perceber uma coisa. Eu conheço esse homem há quase dois anos, foi sempre do meu pelotão e, na Guiné, do meu grupo de combate. O tempo que lá passámos tornou-nos da mesma família, fomos unha com carne em situações complicadas. Hás-de imaginar, não? Pergunta-lhe a ele.
Nunca me chegou a dizer se era ou não miliciano. Mas, uma coisa ou outra, nunca tinha estado na guerra, concluí. Senão ter-se-ia aberto logo também, era o normal quando dois combatentes se encontravam. Depois de mais alguma conversa e reticências acabou por ceder. Sobretudo depois de eu lhe dizer que ia voltar para a Guiné.
– É pá, vai lá, pronto. Mas, faz favor, se alguém te perguntar diz que és irmão ou primo, ou outra coisa qualquer da família.
Consultou uma lista, disse-me qual era o quarto em que o Fragata estava e indicou-me o caminho para lá.
À medida que ia andando espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-me estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Havia alguns que pareciam melhor, mas vi homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também. Ainda bem que não era para falar com eles que ia. Só de ver já era impressionante. Se tivesse de os ouvir contar como foi, estavam stressados de certeza, devia ser terrível.
Ia tão com intenção de só ver o Fragata que não me passara pela cabeça que, no quarto dele, podia encontrar igual panorama. E encontrei mesmo quando lá cheguei e vi as quatro camas. Fiquei especado à porta, atónito. O Fragata estava com uma perna engessada, numa cama estava um sem mãos e a cara com manchas esverdeadas, noutra um sem pernas e, fora o que me deixara estarrecido, vi numa das camas um tronco de homem com uma cabeça.
– Olha o meu alferes!
Foi assim que o Fragata me fez voltar a mim e dar uns passos até à cama dele.
– Como é que estás, Fragata?
Ainda tinha a voz entaramelada, não me recompusera ainda daquela visão.
– Não estou mal, meu alferes. Tenho braços e pernas. Aqui sou o que estou melhor, como vê.
– Mas o que é que tens?
– Levei uma rajada e fiquei com um joelho todo lixado. Foi naquele sítio onde estivemos primeiro, em Sinchã Jobel, lembra-se? O meu alferes até ficou lá toda a noite.
Disse-lhe que me lembrava. Os outros do quarto ouviam com atenção.
– O meu alferes lembra-se daquela chapada que me deu?
Fora uma vez em que tinha ido ver como estavam as sentinelas da noite no quartel e tinha visto que o Fragata não estava no posto em que devia estar. Tinha ido ter com uma bajuda. Fora ter com ele todo chateado e perguntara-lhe se queria uma chapada ou uma participação por abandono do posto. Ele ficara à rasca e preferira levar na cara.
– Era melhor não ma ter dado – continuou o Fragata. – Preferia ter levado uma porrada e mudar de companhia. Já não me tinha metido nisto.
– Foi o que foi. Não te metias nesta metias-te noutra. Mas ouve lá: o alferes Domingos Maçarico Zé Pedro, que também foi ferido numa operação a esse sítio e foi evacuado, disse-me que os gajos te levaram para um hospital deles. Como é que foi isso?
O Fragata ficou uns segundos silencioso.
– Olhe, meu alferes –acabou por dizer – os mandões proibiram-me de contar mas eu estou-me cagando, quero que eles se fodam. Desculpe, meu alferes – mera por causa da linguagem. – A estes aqui e à minha família já contei e vou-lhe contar a si também. Aquela operação foi muito má para nós. Fui ferido, a nossa malta pensou que eu estava morto e não me pôde apanhar. Os do PAIGC, sim, apanharam-me e quiseram-me levar para o hospital deles mas, como eu não podia andar, tiveram de me levar numa maca até Ziguinchor.
Quando o Domingos Maçarico me contara cheguei a interrogar-me como o teriam feito, não achava que fosse possível. Agora ficara admirado, fora mesmo.
– Desde a mata central da Guiné até ao Senegal, cuidado!
– Foram dez dias a atravessar matas, bolanhas e rios, e a fugir dos nossos também. Nem queira saber o que eu passei.
– Imagino, sim, imagino. Não deve ter sido nada fácil. E como é que foste tratado lá?
– Foi um médico português desertor, o doutor Pádua, que me tratou do joelho. E muito bem. Eu tinha a rótula partida, ele arranjou-ma e pôs-me a andar de muletas. Disse-me que tinha já uma infecção e que teria morrido de certeza se eles não me tivessem levado e tivesse lá ficado.
– Estava lá mais algum português ferido?
– Não. Onde eu estava era só malta do PAIGC, também feridos da guerra.
– Só!? E davam-se bem?...
Estava curioso e interessado em saber como era que os feridos pelo lado do Fragata o aceitavam ali com eles.
– Demo-nos bem. Olhe, até fiz lá amigos. O chefe deles, o Luís Cabral, levava-me, às vezes, cigarros e eu dava alguns aos outros. Era malta porreira. E olhe, meu alferes, devo agradecer ao Luís Cabral porque foi ele que conseguiu que a Cruz Vermelha me trouxesse para Portugal. É mesmo um gajo porreiro.
Espanto ouvir isto de um inimigo de um lado sobre inimigos do outro lado. E ver que estes não hostilizavam o outro. Mais uma vez me tinha de interrogar sobre o significado da palavra inimigo naquela guerra. Mais uma prova que o eram à força, que alguém é que queria que fossem inimigos.
Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.
– Como é que foste ferido? –perguntei ao que não tinha mãos.
– Era o furriel de minas e armadilhas e… já sabe. Estava a desmontar uma armadilha e ela rebentou-me nas mãos.
– Aí o Quim está fodido. Nem uma punheta pode bater – disse o Fragata.
E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.
Admirei-me pois não imaginava que a tropa se preocupasse em cuidar desse aspecto com os feridos que ali tinha. Se calhar era um esquema organizado por eles, também podia ser.
Virara-me para o que não tinha pernas e ia-lhe perguntar mas ele antecipou-se.
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC, levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.
Fiquei silencioso. Além dos mortos, até tinha entre eles uns amigos, havia estes jovens com a vida desfeita, sem hipóteses do futuro que podiam vir a ter se não os metessem naquela guerra. O Casqueiro sobretudo. Estava ali, rosto fixo sem ouvir nada da conversa deles. Era um homem-saco só podendo abrir a boca para lhe meterem comida e água. Já reparara que devia ter uma fralda, de certeza que era onde fazia as necessidades. As deste muito mais, mas os outros também tinham ficado com grandes limitações. O Fragata safara-se, e graças ao inimigo. À vista disto já não era a estupidez ou as barbaridades como se fazia a guerra que me perturbavam, era a guerra em si, e sobretudo esta sem sentido que deixava tantos sem futuro.
Os outros notaram como eu estava. O Fragata quis amenizar. Era palerma, às vezes, mas era bom rapaz. Eu sabia disso.
– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles – disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se. – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete! – os outros riram-se novamente. – E à noite? Nem queira saber. Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.
Já vira, já vira a malta inutilizada e traumatizada ali despejada. Aquelas piadas eram um intervalo curto nas suas horas longas de angústia e desespero. Tinha de sair dali.
– Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?
– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.
– É melhor. Conta lá essa do mijo aos camaradas.
Apertei a mão ao Fragata e ao Fragoso, um coto ao Quim e dei uma palmada no ombro do Casqueiro. Este fez um esgar de saudação. Não ouvira nada mas já devia estar habituado a imaginar.
Dois dias depois, no DGA, meteram-me nas mãos uma guia de marcha para embarcar no Uíge e apresentar-me no Quartel-General do CTIG. O embarque era daí a três dias. Ardera mesmo, concluí. Da primeira vez ainda fora embalado na ignorância, mas agora não, já sabia bem como era aquilo, até já vira as consequências. Porque não fazer como alguns fizeram, o Gonçalves por exemplo, dar o salto para França? Andei todo esse dia em que me deram a guia de marcha a pensar nisso.
À noite marquei um encontro com o meu novo contacto. Falei-lhe da ideia de dar o salto mas ouvi-o dizer o mesmo que já o Herculano Carvalho já me dissera. Que era melhor não desertar, que havia trabalho a fazer na Guiné.
– Tens guia de marcha para o QG do CTIG, não é? Ali é que é porreiro. Não vais para o mato e, ali no QG, podes conversar sobre a situação com muita gente. É ótimo sítio para tal.
***
Grande navio, não era nada como o Ana Mafalda. Como não ia integrado em nenhuma companhia era só dormir, comer, jogar às cartas, apanhar sol. Ia um grupo em rendição individual e foram todos bons parceiros. Foi uma viagem magnífica.
Desta vez não foi como da primeira, quando tivera de saltar do Ana Mafalda para uma LDG e seguir logo rio Geba acima. Agora desembarquei em Bissau e fui apresentar-me na Repartição de Pessoal do Quartel General.
– Você vai ser colocado numa companhia do recrutamento da Província que está lá em cima, ao pé do Senegal – disse-me um capitão.
Abri a boca de espanto. Mas que merda era esta?!
– Mas, meu capitão, eu vim do hospital da Estrela. Não estou em condições de ir para uma companhia operacional.
– É, pá, tem de ser. Há um alferes de lá que teve de ser hospitalizado e é preciso substituí-lo urgentemente.
– Mas eu estou à rasca dos ouvidos. Como é que vai ser?
– Paciência, nosso alferes. Amanhã, logo de manhã, sai uma DO para levar os frescos e o correio, você vai nela. O capitão de lá já está avisado.
– E não posso ir para a companhia onde estava antes?
– Você já foi substituído lá há uma data de tempo. Pensa que tinham lá um lugar em aberto para si, é? – fez um sorriso irónico. – É o que você vai fazer agora, vai substituir outro.
– Mas o que me foi substituir na outra companhia morreu, eu sei…
– E também já foi substituído, é assim. Prepare-se para partir amanhã.
Que merda! Que fazer? Nada, não podia fazer nada. Apenas ficar furioso e desforrar-me com uns uísques no bar de oficiais. (...)