Guiné > Região do Cacheu > 38ª CCmds (2º e 4º Gr Comb) > 11 de Maio de 1973 > Coluna logística que partiu de Farim, a caminho de Guidaje. Na foto de cima, o Gr de Combate do 1º Cabo A. Mendes, o 2º a contar da direita, com boina. Na foto do meio, progressão da coluna auto na picada de Guidaje... Na última foto, uma vista da bolanha do Cufeu, com destroços de viaturas (e cadáveres)...
Fotos : © Amilcar Mendes (2006). Todos os direitos reservados.
1. Escrevi há dias que "sobre Guidaje, há uma referência apenas no Diário da Guiné (1972/74), da autoria do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu (AGA). Vem na entrada Mansoa, 26 de Maio de 1973"" (*) ...
É meia verdade, meia mentira... Sobre "Guidaje" (com j), há de facto apenas um referência, mas sobre "Guidage" (com g), há mais umas tantas... A grafia de Guidaje/Guidage é controversa, os dois vocábulos são usados pelos nossos cartógrafos... Eu grafo de uma maneira (Guidaje), outros tendem a usar a forma mais comum, que é Guidage...Neste caso, sigo o (bom) conselho do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa...E é assim que tem aparecido no nosso blogue, Guidaje, com j...
Mas no caso do livro do AGA, eu devia ter tido mais cautela, como mandam as boas regras... Ora, na realidade o AGA estava no CAOP1, em Mansoa, durante a "batalha de Guidaje" [, grosso modo, entre 8 de maio e 8 de junho de 1973, ] e, sendo um homem em geral bem informado, por certo que escreveria algo mais sobre Guidaje, tal como escreveu sobre Guileje e Gadamael... Em 25 de junho de 1973, o CAOP1 (e com ele o AGA) é transferido para Cufar, na região de Tombali.
Faz assim todo o sentido recuperar algumas das entradas do seu diário, onde há uma referência explícita a Guidage (com g). São seis entradas (ou sete, se contabilizarmos a já atrás referida - Mansoa, 26 de maio de 1973). A "batalha de Guidaje" tocou-o de perto, se bem que indiretamente através das baixas da 38ª CCmds, unidade de intervenção afeta ao CAOP1, quer através da morte do soldado condutor auto do CAOP1, David Ferreira Viegas, natural de Olhão, morto em 12 de maio de 1973 [, já em Guidaje, no aquartelamento, após a realização da 3ª coluna para Guidaje, a 11]. (**)
Há uma edição comercial do livro do AGA. Referência completa: António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)
(...) Mansoa, 8 de Abril de 1973
Outra DO pilotada pelo furriel piloto aviador Baltazar da Silva foi abatida pelo IN quando voava entre Bigene e Guidage. O rapaz morreu, junto com um alferes médico e um sargento. O Baltazar almoçou comigo na semana passada, esteve aqui no meu quarto desanimado e triste. Escrevi então que ele havia partido para Bissau “com a morte na alma”.
(...) Mansoa, 14 de Maio de 1973
Parece estar em embrião uma nova alteração na localização do CAOP 1. Fala-se em irmos para o sul, a zona onde há mais guerra na Guiné. Mas quem está a embrulhar há cinco dias consecutivos é o aquartelamento de Guidage, bem lá no norte, na esteira dos lugares de morte e de loucura.
Quanto à transferência do CAOP não ficou ainda nada decidido. Isto está incerto como o vento em mudança de estação. De resto, um comando de operações sem meios aéreos como funciona? Reina uma certa incerteza e confusão entre quem manda em Bissau. O general Spínola foi agora a Lisboa pedir mais armas e meios para combater o PAIGC e ao que consta o Marcello Caetano disse-lhe ser impossível reforçar as tropas na Guiné.
(...) Mansoa, 19 de Maio de 1973
Há dez dias atrás, por causa de vacas, aproveitei uma boleia e fui até Cutia, a vinte quilómetros daqui, na estrada alcatroada para Mansabá e Farim.
Os balantas, etnia predominantemente na região de Mansoa, não querem vender vacas aos militares portugueses. Em Farim, sessenta quilómetros a norte, os fulas, outra etnia, vendem os animais com facilidade. Como em Mansoa falta carne para a alimentação diária, é preciso recorrer ao que há, neste caso as vacas de Farim.
Fez-se uma coluna com quatro unimogs do CAOP e quarenta homens da 38ª. de Comandos (***) para irem lá ao norte buscar as vacas. Como à tarde havia coluna de Cutia para Mansoa, peguei na G3 e segui com o nosso pessoal. Regressei calmamente a Mansoa, depois de mais uns quilómetros a conhecer a mata, o aquartelamento e a aldeia de Cutia, florestas, bolanhas, a terra pobre.
Os comandos e os quatro condutores do CAOP seguiram viagem e quando chegaram a Farim havia realidades bem mais duras do que a história da compra e transporte das vacas. Era crítica a situação em Guidage, uns quarenta quilómetros a noroeste de Farim, junto à fronteira com o Senegal. O aquartelamento estava a ser atacado há dois dias, de quatro em quatro horas, em média. Duas colunas de reabastecimento haviam partido de Farim para Guidage com víveres e munições e foram ambas atacadas na estrada, com mortos e muitos feridos. Tornou-se necessário chamar os aviões Fiats de Bissau, não para bombardearem o IN mas para destruir as Berliets carregadas de víveres e munições, abandonadas pelas NT, evitando assim que caíssem nas mãos dos guerrilheiros.
Os Comandos mais os nossos condutores do CAOP iam buscar vacas, mas nessa altura o mais importante era socorrer Guidage. De emergência, organizou-se nova coluna de Farim para Guidage reforçada com os nossos homens. Foi uma caminhada de morte, havia abutres a rondar os cadáveres dos soldados portugueses abandonados na picada pela coluna anterior, havia minas, uma delas rebentou sob o Unimog da frente, arrancou-lhe uma roda que foi projectada e passou por cima da cabeça do alferes Dias, da 38ª. de Comandos, houve emboscadas e um soldado comando ficou sem um pé e sem três dedos da mão direita. O infeliz foi o Tavares, um rapaz ribatejano do Cartaxo que até conheço bem, pai de dois filhos. Como não se fazem evacuações de helicóptero, levaram-no até Guidage com o coto e a mão amarrados em ligaduras.
Durante dois dias, em Guidage, foram atacados treze vezes, com morteiros e canhão sem recuo. Os guerrilheiros afinaram a pontaria para dentro das valas onde se abrigavam os nossos homens. Lá morreu mais um soldado da 38ª. de Comandos e o soldado condutor auto David Ferreira Viegas, do CAOP 1. Era um dos meus homens, um rapaz baixo, magrinho, tímido, natural de Olhão. Tinha vinte e um anos, fora pescador no Algarve, estava connosco no CAOP desde 3 de Março e na tropa há apenas oito meses.
Não trouxeram o corpo do Viegas para Mansoa, meteram-no na urna e seguiu de barco para Bissau. Tenho sido eu a tratar das coisas dele, fui-lhe mexer na mala e fazer o espólio de todos os seus pertences para enviar à família. Possuía tão pouco, algumas quinquilharias e uma roupita tão pobre! O povo português vai morrendo, o nosso David foi apenas mais um.
Comoveu-me o último aerograma com data de 27 de Abril que lhe foi enviado pela mãe, escrito pela Rosarinho, uma das sobrinhas, porque a mãe é analfabeta. A Elsa Maria, outra sobrinha pequena, como ainda não sabe escrever, mandou contas ao tio David:
1 2 3 4 5 2 1
1 2 3 4 5 2 1
___________
2 4 6 8 0 3 3
A Ana Cristina Viegas Fava, também sobrinha, diz: “Tio, eu já sei escrever e quando o tio estiver aborrecido escreva para mim que eu lhe respondo, está bem? "
O David Ferreira Viegas, contava apenas vinte e um anos. Não vai escrever a mais ninguém.
(...) Mansoa, 29 de Maio de 1973
Fui ao cinema ver um filme intitulado “Os Noivos da Revolução”, com o Jean Paul Belmondo.(...).
Em Portugal, as notícias sobre a Guiné continuam a ser alarmantes. De facto, Maio foi excepcional. As NT, incluindo os africanos que combatem ao nosso lado, tiveram mais de sessenta mortos e uma centena de feridos. Creio que isto bate todos os recordes. Agora, com a época das chuvas, a guerra vai acalmar um pouco.
As notícias em Portugal são também manipuladas, confusas, às vezes ridículas. No boletim oficioso das Forças Armadas lê-se “um grupo de guerrilheiros do PAIGC que tentava infiltra-se no Território Nacional foi repelido e perseguido pelas nossas tropas, tendo sofrido um número indeterminado de mortos.” Pode haver um fundo de verdade neste tipo de notícias mas quem descreve o que verdadeiramente aconteceu em Guidage ou em Guileje, quem fala na emboscada da coluna de Mansabá para Mansoa que provocou quatro mortos e quinze feridos quando o IN só registou dois feridos?
A opinião pública portuguesa alertar-se-ia demasiado se as notícias divulgadas na nossa terra correspondessem à realidade do que se passa na Guiné. Em Portugal as pessoas sabem que, por causa da guerra, a Guiné é terra má e suja, mas quantos entendem os porquês, conhecem o dia a dia das nossas tropas? Os boatos distorcem, aumentam, assustam. Tudo por uma razão simples, não temos liberdade.
(...) Mansoa, 14 de Junho de 1973
Recebi uma carta do Algarve, da mãe do David Viegas, o nosso soldado condutor morto em Guidage. Havia-lhe escrito uma sentida carta pessoal, logo após a morte do rapaz. Respondeu-me agora, naturalmente chorosa pelo falecimento do David, o mais novo dos seus cinco filhos, agradecendo ter-lhe dado notícias.
Como já referi, a senhora é analfabeta e é uma sobrinha quem lhe escreve as cartas. Eu informara-a de que o filho havia morrido devido ao rebentamento de uma granada de morteiro na vala onde se abrigava, teve morte quase instantânea e não sofreu. Assim foi, na realidade, mas não lhe contei que o Viegas ficou horrivelmente desfigurado, a granada rebentou junto à sua cabeça e os estilhaços apanharam-lhe toda a cara. Os outros três condutores do CAOP 1 que estavam com ele em Guidage e o viram morrer ali ao lado, descreveram-me o sucedido com lágrimas nos olhos. O Viegas era bom rapaz, pacífico, não se chateava com ninguém. O caixão está em Bissau, à espera do “Niassa”, o navio que o levará para Portugal, rumo a Olhão, a terra onde nasceu.
Eu não sabia, mas quando o rapaz morreu, o major P. disse-me que existia uma carta modelo, um texto padrão sempre igual utilizado em todo o Ultramar a enviar aos pais dos soldados mortos em combate. Tratámos de a copiar e seguiu para Olhão, espantosamente assinada não pelo coronel, comandante do Comando de Agrupamento Operacional Nº. 1, a que o Viegas pertencia, não pelo major P., oficial de Operações e Chefe do Estado Maior do CAOP 1, não por mim, simples alferes que tenho os condutores como meus subordinados, mas assinada pelo furriel Victor Henriques, meu subalterno que mal conhecia o Viegas e nunca esteve em Guidage. (...)
(...) Cufar, 27 de Junho de 1973
De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas.
Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado.(...)
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Notas do editor:
(*) 14 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9898: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (16): Guidaje foi há 39 anos...
(**) Vd os seguintes poste do J. M. Pechorro e do Daniel Matos:
19 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5300: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - I Parte (José Manuel Pechorrro)
21 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5310: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - II Parte (José Manuel Pechorrro)
16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)
3 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6307: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (14): Cemitérios de Guidaje e Unidades mobilizadas na Madeira
(***) Vd. postes de Amílcar Mendes (38ª CCmds):
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
(...) Resumo:
9 de Maio de 1973 > O 2º e o 4º grupos [da 38ª Cmds] vão hoje fazer uma escolta a uma coluna de Mansoa para Farim.
13 de Maio de 1973 > Regressei hoje a Mansoa. Cinco dias fora. Meu Deus, foram os piores dias da minha vida. Irei tentar descrever tudo o que passei. Os horrores da guerra! Nunca pensei que fosse possível acontecer o que vi. Terrível de mais para ser verdade. (...)
(...) 11 de Maio de 1973
Saimos de madrugada de Farim com destino a Guidaje. Primeiro a Binta onde os picadores se irão juntar aos nossos grupos. Daí entramos na maldita da picada. Os picadores seguem na frente. (...)
(...) Ao passar na bolanha do Cufeu é impossível descrever o que encontramos sem sentir um aperto na alma: dezenas de viaturas trucidadas pelas minas. Os cadáveres pelo chão são festim para os abutres. É uma loucura. Pedaços das viaturas projetadas a dezenas de metros pela acção das minas. Estrada cheia de abatizes. Tentamos não olhar. Nunca vi tanto morto, nossos e do IN, deixados para trás ao longo da picada. (...)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
(...) 11 de Maio de 1973 (continuação)
(...) A coluna, à saída da bolanha do Cufeu (2), pára. Ouve-se ao longe tiros e rebentamentos. A companhia que vinha ao nosso encontro, caiu numa emboscada na ponte. Pelo rádio ouvimos o oficial que comanda a companhia emboscada pedir apoio aéreo, porque o IN é em muito maior número e ele diz que está a ser dizimado. Chegam dois Fiats e tentam dar cobertura à companhia emboscada mas dizem que é impossível porque o IN esta demasiado próximo...
Ouço então o apelo mais dramático ouvido em toda a minha vida: Pela rádio o oficial que comandava a companhia emboscada apela à aviação:
BOMBARDEIEM TUDO! A NÓS, INCLUINDO! A SITUAÇÃO É DESESPERADA! ESTAMOS A SER TODOS MORTOS, POIS OS GAJOS SÃO EM NÚMERO MUITO SUPERIOR! (...)
(...) Já com Guidaje à vista subimos para as viaturas e eu sigo naquela só com três rodados, e onde segue o morto.
Chegamos a Guidaje! É a primeira coluna a chegar de há três semanas a este tempo. A população vem receber-nos com gritos de alegria, dá-nos água, trata-nos com carinho, sentem que o isolamento acabou.
Assim que entramos no destacamento, somos brindados com um ataque de morteirada. Com a noite vamos para as valas, que é onde se vive em Guidaje! O Filipe está num abrigo a soro, fui vê-lo e ele delirava a chamar pela família.(...)
Durante a noite iremos sofrer mais 4 ataques e um deles será mortal (...).
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...