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"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar." (Reproduzido com a devida vénia...)
Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)
No livro (de 2015) o Fragata aparece sob o nome fictício de Gabriel (pág. 476).
Recorde-se que o soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), "um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate" , foi ferido e feito prisioneiro pelo IN no decurso da Op Invisível, em 19 de Dezembro de 1967. Na mesma ocasião, foi "dado como desaparecido" em companha (na realidade terá sido morto, e o seu corpo nunca foi recuperado) o alf mil Fernando da Costa Fernandes, natural de Santo Tirso. (Este oficial tinha vindo para a CART 1690, para substituir o A. Marques Lopes, entretanto evacuado parta o HMP, na sequência da mina A/C acionada em 21/8/1967, na estrada Geba-Banjara, que vitimou mortalmente o cap art Manuel Guimarães).
O alferes Fernandes será mais tarde, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda.
(...) "Mas a história toda [do Fragata ] foi-me contada pelo comandante Gazela [do PAIGC, em Bissau, ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês dr. [Mário] Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.
Depois desse tratamento, o Fragata foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC - "posso voltar para casa".
Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra. " (...) (**)
– O ouvido esquerdo tem 10% de incapacidade, no direito tem 20%. De resto está tudo bem - ouvi dizerem.
– Está apto para todo o serviço.
– Vá ao Depósito Geral de Adidos. Leve isto.
– Só os familiares é que podem visitar os doentes – disse-me o Oficial de Dia, um alferes.
– É pá, vai lá, pronto. Mas, faz favor, se alguém te perguntar diz que és irmão ou primo, ou outra coisa qualquer da família.
– Olha o meu alferes!
– Como é que estás, Fragata?
Ainda tinha a voz entaramelada, não me recompusera ainda daquela visão.
– Não estou mal, meu alferes. Tenho braços e pernas. Aqui sou o que estou melhor, como vê.
– Mas o que é que tens?
– Levei uma rajada e fiquei com um joelho todo lixado. Foi naquele sítio onde estivemos primeiro, em Sinchã Jobel, lembra-se? O meu alferes até ficou lá toda a noite.
Disse-lhe que me lembrava. Os outros do quarto ouviam com atenção.
– Era melhor não ma ter dado – continuou o Fragata. – Preferia ter levado uma porrada e mudar de companhia. Já não me tinha metido nisto.
– Olhe, meu alferes –acabou por dizer – os mandões proibiram-me de contar mas eu estou-me cagando, quero que eles se fodam. Desculpe, meu alferes – mera por causa da linguagem. – A estes aqui e à minha família já contei e vou-lhe contar a si também. Aquela operação foi muito má para nós. Fui ferido, a nossa malta pensou que eu estava morto e não me pôde apanhar. Os do PAIGC, sim, apanharam-me e quiseram-me levar para o hospital deles mas, como eu não podia andar, tiveram de me levar numa maca até Ziguinchor.
– Desde a mata central da Guiné até ao Senegal, cuidado!
– Imagino, sim, imagino. Não deve ter sido nada fácil. E como é que foste tratado lá?
– Não. Onde eu estava era só malta do PAIGC, também feridos da guerra.
– Só!? E davam-se bem?...
Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.
– Como é que foste ferido? –perguntei ao que não tinha mãos.
E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC, levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.
– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles – disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se. – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete! – os outros riram-se novamente. – E à noite? Nem queira saber. Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.
– Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?
– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.
– É melhor. Conta lá essa do mijo aos camaradas.
Dois dias depois, no DGA, meteram-me nas mãos uma guia de marcha para embarcar no Uíge e apresentar-me no Quartel-General do CTIG. O embarque era daí a três dias. Ardera mesmo, concluí. Da primeira vez ainda fora embalado na ignorância, mas agora não, já sabia bem como era aquilo, até já vira as consequências. Porque não fazer como alguns fizeram, o Gonçalves por exemplo, dar o salto para França? Andei todo esse dia em que me deram a guia de marcha a pensar nisso.
À noite marquei um encontro com o meu novo contacto. Falei-lhe da ideia de dar o salto mas ouvi-o dizer o mesmo que já o Herculano Carvalho já me dissera. Que era melhor não desertar, que havia trabalho a fazer na Guiné.
– Tens guia de marcha para o QG do CTIG, não é? Ali é que é porreiro. Não vais para o mato e, ali no QG, podes conversar sobre a situação com muita gente. É ótimo sítio para tal.
Desta vez não foi como da primeira, quando tivera de saltar do Ana Mafalda para uma LDG e seguir logo rio Geba acima. Agora desembarquei em Bissau e fui apresentar-me na Repartição de Pessoal do Quartel General.
– Mas, meu capitão, eu vim do hospital da Estrela. Não estou em condições de ir para uma companhia operacional.
– É, pá, tem de ser. Há um alferes de lá que teve de ser hospitalizado e é preciso substituí-lo urgentemente.
– Paciência, nosso alferes. Amanhã, logo de manhã, sai uma DO para levar os frescos e o correio, você vai nela. O capitão de lá já está avisado.
– E não posso ir para a companhia onde estava antes?
– Você já foi substituído lá há uma data de tempo. Pensa que tinham lá um lugar em aberto para si, é? – fez um sorriso irónico. – É o que você vai fazer agora, vai substituir outro.
– E também já foi substituído, é assim. Prepare-se para partir amanhã.