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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
À pergunta de quem mandou matar Amílcar Cabral, manda a probidade que se responda que não há provas concludentes sobre a natureza dos mandantes. Sabe-se que havia organização, assassinado o fundador do PAIGC os sublevados repartiram-se em diferentes atividades, é óbvio que havia um plano.

 Desapareceram ou continuam religiosamente escondidas as conclusões das comissões de inquérito. Mesmo que um dia venham a aparecer, também se poderá pôr em causa o que ali vem escrito, já houve testemunhos suficientes de que foram arrancadas declarações ao sublevados da forma mais bárbara, à altura das polícias políticas mais torcionárias.

Não deixa de embaraçar quem analisa os factos a situação chocante de duas fações distintas, cabo-verdianos e guineenses, estes apresentam-se a Sékou Touré alegando que estão fartos de ser dominados pelos cabo-verdianos, por quem nutrem uma hostilidade multissecular. Creio que não se pode ir mais longe sem exibição de provas. Mas reconheça-se que para os velhos nostálgicos da unidade Guiné-Cabo Verde continua a saber bem alegar que foi Spínola e a PIDE/DGS em Bissau que dirigiram a manobra. 

E, por fim, convém não esquecer que a morte do fundador do PAIGC é o início de um mito poderosíssimo: o que teria acontecido ao país independente sob a liderança de Amílcar Cabral?

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) 

Beja Santos  (*)

A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral. 

Anos depois de José Pedro Castanheira ter dado forma de livro à sua importantíssima reportagem aparecia na imprensa portuguesa um livro-testemunho de análise irrecusável. Oscar Oramas, embaixador cubano em Conacri, ao tempo dos acontecimentos, tecia um rasgado elogio ao homem Amílcar Cabral e ao génio construtor de nações. É uma biografia, infelizmente cheia de imprecisões: atribui uma falsa importância a Juvenal Cabral na formação de Amílcar, pura mistificação; faz de Cabral um deportado pelo Governador Mello e Alvim, quando ele fazia o recenseamento agrícola, está demonstrado que Cabral regressou à pressa com a mulher a Portugal, estavam gravemente doentes com paludismo… 

O antigo embaixador estudou a história muito à pressa, atrevendo-se a dislates como dizer que o território da Guiné foi descoberto por navegadores portugueses nos finais do século XV… A despeito deste quadro de perniciosas imprecisões, coube-lhe assistir de perto ao assassinato de Cabral. O fundador do PAIGC vinha a insistir de que havia um processo de sabotagem dentro do partido e advertia que a maquinação era incentivada pelas forças coloniais que se aproveitariam de traidores e delinquentes. Minutos depois dos tiros assassinos, Otto Schacht, chefe da segurança do PAIGC telefona a Oramas, pede a sua comparência. No local do assassinato, o segurança cubano que acompanha o embaixador adverte que há um grupo escondido.

E ele escreve no seu livro “Amílcar Cabral para além do seu tempo”, Hugin Editores, 1998: “Mais tarde soube-se que escondido atrás daquelas árvores estava também Osvaldo Vieira”

Oramas procura um dirigente guineense, Bacary Ghibo, este telefona a Sékou Touré, Oramas conversa com o presidente da Guiné-Bissau. Entretanto, Oramas conversa com o embaixador soviético e acerta-se numa estratégia para procurarem recuperar Aristides Pereira que fora sequestrado por sublevados e levado numa lancha. 

Oramas assiste no palácio presidencial à reunião de Sékou Touré com a delegação de sublevados. Entre os conjurados estão Momo Touré e Inocêncio Kani que “explicam que a direção do PAIGC tem estado controlado pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que são os que lutam de armas na mão contra os portugueses. Dizem ter denunciado esta situação em várias oportunidades mas Amílcar nunca lhes deu importância. Acrescentam que não queriam matar Amílcar, apenas conversar com ele, convencê-lo a mudar, mas como resistiu, na confusão foi liquidado”.

Esta leitura dos acontecimentos vistos por uma testemunha privilegiada dão conta de uma tensão profunda que se procurava camuflar, embora diversos dirigentes do PAIGC tenham vindo a declarar, pouco depois do assassinato, que a atmosfera em Conacri era irrespirável, era patente que se urdia uma conjura cabo-verdianos e guineenses já não sentavam à mesma mesa.

No seu relevante trabalho, Castanheira houve opiniões díspares. Por exemplo, o Coronel Carlos Fabião era de opinião que fora a PIDE a montar o esquema. Fragoso Allas nega qualquer envolvimento. O respetivo ministro, Silva Cunha declara que não houve intervenção portuguesa. Alpoim Calvão também atira achas para a fogueira, envolve a PIDE. Nas suas investigações dos arquivos da PIDE, nenhum dos documentos trabalhados por Castanheira permite aduzir envolvimento da PIDE no complô, igualmente não há um papel incriminatório para Spínola.

Castanheira vai até Conacri ao local do crime e escreve:  

“É um círculo de cimento, de dois metros de diâmetro, pintado de branco. À volta, um murete baixo, igualmente caiado. No meio, desenhada com pedras do tamanho de uma unha, uma estrela de cinco pontas. Foi ali que caiu Amílcar Cabral a escassos metros da residência, junto à majestosa mangueira que filtra a luz quente e clara do sol africano. Durante anos, aquele punhado de terreno esteve simplesmente protegido por uma cerca de arames velhos e enferrujados. Foi preciso esperar por 1988 para que o local passasse a estar assinalado com alguma dignidade. Em Maio de 1960, Amílcar instalou-se em Conacri, ao PAIGC foram concedidas as quatro casas que hoje são património da embaixada da Guiné-Bissau (…) os quatro imóveis, simples, funcionais, de um único piso, faziam parte de um vasto conjunto urbanístico erguido, no final dos anos 1950, pela Société Minière”.


Neste preciso local foi assassinado Amílcar Cabral ao fim da noite de 20 de Janeiro de 1973

No final da reportagem, Castanheira ouve Nino Vieira. Desconhece-se o número dos fuzilados, mas diz que houve muito mortos, admite mesmo que houve inocentes mortos e comenta: “No congresso de 1984, Fidélis Almada declarou publicamente que foi mandatado para acusar muita gente”. Interpelado quanto ao facto do grupo dos conspiradores ser composto por guineenses, não ilude a clivagem que se estabelecera, mas pensava que a causa principal da morte de Amílcar fora a infiltração, era coisa trabalhada pela PIDE. Não adiante provas. Aqui e acolá, faz a sua crítica azeda a Aristides Pereira e a Luís Cabral.

Esta reportagem de José Pedro Castanheira veio abrir espaço a diferentes interpretações quanto a organizadores. Acrescente-se que não há provas nenhumas sob a natureza dos mandantes: não se sabe quem foi o cérebro do complô guineense, que houve complô demonstra-se pela capacidade de manobra dos revoltosos ao sequestrar Aristides Pereira, ao prender todo o grupo cabo-verdiano, ao querer captar as simpatias e aquiescência de Sékou Touré. Sobre esta matéria, o relato de Oscar Oramas é muito pobre, está constantemente a invocar o que veio na reportagem de José Pedro Castanheira. 

Mas Oramas revela profundo ceticismo quanto ao comportamento de Sékou Touré, pergunta mesmo como é que os conspiradores chegaram ao palácio no meio de uma grande mobilização militar que começou logo quando o embaixador cubano conversou telefonicamente com Sékou Touré. E está comprovado que naquela manhã de 20 de Janeiro um alto funcionário guineense, a mando de Sékou Touré, vai informar Amílcar Cabral que está uma intentona em marcha, este chama Mamadu N’Diaye e pede-lhe cautelas redobradas, como hipótese de trabalho terá sido esta determinação de Amílcar que levou os conspiradores a prontamente a entrar em ação.

Enfim tudo no campo das hipóteses mas há factos iniludíveis, de um lado, estavam cabo-verdianos e, do outro, guineenses, foram estes que se sublevaram em número elevado e ninguém acredita que Momo Touré e Inocêncio Kani tivessem estofo para pôr tanta gente em movimento naquele complô. A segunda morte de Cabral será confirmada a 14 de Novembro de 1980, quando os cabo-verdianos forem definitivamente arredados do poder, na Guiné-Bissau.
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Notas do editor

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19126: Notas de leitura (1113): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,

O tempo passa e cada vez mais me convenço que estamos perante um segredo de polichinelo que se intenta manter com vivíssima matéria de investigação. Um complô, está demonstrado, única e exclusivamente constituído por guineenses. Há informações de que aqueles últimos meses que precedem o assassínio decorrem numa atmosfera irrespirável em Conacri, os guineenses já não se sentam à mesa com os cabo-verdianos. Pôs-se em andamento o complô, são presos todos os cabo-verdianos e ameaçados de fuzilamento. 

Uma testemunha privilegiada, Oscar Oramas, embaixador de Cuba na Guiné Conacri, assiste à conversa dos sublevados com Sékou Touré, poucas horas depois do assassínio, justificam-se porque não querem continuar a ser mandados por cabo-verdianos. Todos os fuzilados serão guineenses, sem exceção. Desapareceram comodamente todos os documentos das comissões de inquérito. 

Anos depois, diferentes dirigentes de topo do PAIGC queixavam-se dos excessos cometidos. Deu jeito, nos tempos subsequentes, atribuir-se o assassínio a Spínola e à PIDE/DGS, como a história se faz de provas factuais e da consulta de fontes, jamais se encontrou qualquer documento comprometedor. Mas nos tempos que corre, e em nome dos mitos, todos estes acontecimentos aparecem atravessados por fantasmas para contornar habilmente irmãos desavindos, de duas parcelas de África com coisas em comum e muitíssimas outras em atrito.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1)

Beja Santos

O nome do jornalista José Pedro Castanheira está associado a dois trabalhos de reportagem de excecional valor para o período da guerra da Guiné e do fim do Estado Novo. Tendo dado conta que se aproximavam os 20 anos da efeméride do assassinato de Amílcar Cabral, obteve meios para uma investigação aprofundada, falou com alguns protagonistas de maior peso, a viúva de Cabral, Ana Maria de Sá Cabral, António de Spínola, Luís Cabral, entre outros, visitou o local do crime, debruçou-se sobre a documentação existente nos arquivos da PIDE sobre tentativas de eliminar Amílcar Cabral.
Esta reportagem será a catapulta de um livro que foi acolhido muitíssimo bem em Portugal e vários países.

A outra grande reportagem que revela o talento jornalístico de José Pedro Castanheira foi a reunião de diferentes protagonistas em Londres que participaram no encontro secreto de Março de 1974, do lado português estava o então cônsul em Milão, o futuro embaixador José Manuel Vilas Boas.

Para surpresa de muita boa gente, em 1994, ficava-se a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros, de Marcello Caetano, Rui Patrício, diligenciava negociações que levassem ao acordo de paz e ao reconhecimento da República da Guiné-Bissau, estava já imparável o processo de reconhecimento na ONU, o que tornaria ainda mais calamitosa a situação portuguesa, adensava-se a hipótese de uma intervenção militar da Organização da Unidade Africana.

António de Spínola

A reportagem de Castanheira aprofunda quatro pistas para a compreensão do atentado:

(i) um golpe de Estado de uma fação guineense;

(ii) a cumplicidade de Sékou Touré;

(iii) uma operação desencadeada por Spínola;

(iv) ou uma iniciativa da PIDE.

Inicia-se a reportagem com os acontecimentos que terão ocorrido cerca das 23,00h de 20 de Janeiro de 1973, quando Cabral e a mulher regressavam de uma receção em Conacri na embaixada da Polónia. Interpelado por um grupo onde a figura proeminente era Inocêncio Kani, um ex-comandante da Marinha do PAIGC, Cabral não deixa que o amarrem, Kani disparou um tiro à queima-roupa, Cabral pretende ainda conversar com os sublevados, alguém de nome Bacar assesta-lhe uma curta rajada que o atinge na cabeça, Cabral morre.

Um segundo grupo liderado pelo chefe dos guardas, Mamadu N’Diaye, aprisiona Aristides Pereira, que trabalhava numa casa próxima, e metem-no numa vedeta, barbaramente amarrado.

Um terceiro e último grupo, chefiado por João Tomás, apodera-se da prisão do partido, conhecida por Montanha, e libertam detidos que faziam parte do complô. Contam com a conivência dos guardas, e detêm um número elevadíssimo de dirigentes que metem na prisão, advertindo-os que iam ser fuzilados no dia seguinte.

Os revoltosos vão dar conhecimento a Sékou Touré, este não dá cobertura ao assassínio, manda prender os conspiradores, mais adiante ouviremos as recordações de um participante privilegiado, Oscar Oramas, embaixador de Cuba em Conacri, será o primeiro diplomata a ver o corpo de Cabral abatido, telefonará a Sékou Touré, assistirá à reunião deste com os sublevados.


Ana Maria Cabral na Função Amílcar Cabral na Cidade da Praia 


Seguem-se dois processos misteriosos, duas comissões de inquérito de que jamais conheceremos os resultados.

Uma comissão de inquérito internacional de que farão parte, entre outros, Agostinho Neto e Joaquim Chissano. As autoridades guineenses nunca deixaram vir à luz os resultados do inquérito. Do lado do PAIGC, na medida em que Sékou Touré entregou os revoltosos à nova direção do partido, forma-se uma comissão de inquérito que seria presidida por Fidélis Almada e onde estariam nomes como Otto Schacht, António Buscardini e José Araújo. Também não se virá a conhecer a documentação constante às inquirições, os sublevados, em número que nunca se pôde quantificar com rigor, foram divididos em grupos, e executados. Pedro Pires garantiu ter assistido aos fuzilamentos na região Sul. Castanheira fez perguntas a vários dirigentes. Disse-lhes Aristides Pereira:

“Nunca consegui ter uma ideia exata dos fuzilados. Pedi ao Fidélis uma lista, mas nunca me chegou às mãos”.

Fidélis confirma que o relatório da comissão não fornece números:

“Creio que se provou a culpa de 71, mas nem todos foram executados". 

Fernando Baginha fala em 110. Luís Cabral confessa que não houve um interrogatório sereno, Carlos Correia admite que “tenha havido maldade em algumas denúncias”.

A cumplicidade de Sékou Touré é outro mistério. Vários investigadores avaliam um elevado grau de indecisão quando se dá o assassínio, outros admitem que ele recebeu prontamente os sublevados temendo que se tratava de algo parecido com a invasão de Conacri, de 22 de Novembro de 1970. Não são de fiar as declarações de Senghor de que a morte de Cabral foi instigada por Sékou Touré, eram adversários figadais. Senghor afirmava ter provas de que a morte de Cabral fora apoiado por Touré, mas nunca mostrou tais provas.

Aristides Pereira foi sempre reservado sobre a participação guineense no complô, mas na longa e importante entrevista que concedeu ao jornalista José Vicente Lopes, deixou bem claro que Osvaldo estaria envolvido na trama e não excluiu o apoio expetante de Nino Vieira. Morto Cabral, era preciso camuflar a querela multisecular entre cabo-verdianos e guineenses.

O alibi foi o de que por detrás do complô exclusivamente guineense estava a manipulação de um braço longo, a DGS, dentro de um plano maquinado por Spínola. Todas as investigações nesta direção encontram prateleiras vazias, nem um só papel no arquivo da DGS, todas as maquinações para matar Cabral precedem Spínola na Guiné e Fragoso Allas na direção da PIDE em Bissau. Spínola adiantará a Castanheira argumentos de uma tremenda ingenuidade. Esperava que a invasão de Conacri, desenhada por Alpoim Calvão, trouxesse um Amílcar Cabral sequestrado que aceitaria de bom grado fazer parte do governo da Guiné.

Também sem exibir provas, Spínola diz ter recebido um convite de Amílcar Cabral para se encontrar com ele em Bissau, em Outubro de 1972. Alega que esta proposta lhe chegou por via de Fragoso Allas, Marcello Caetano disse-lhe redondamente que não. Na sua entrevista com o Castanheira diz igualmente que não se lembra do nome de quem era o delegado de confiança de Amílcar Cabral. Enfim, há muita gente a abusar do diz-se e consta.

(Continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Neste afã de ajuntar o que à Guiné diz respeito, dei com esta edição do CIDAC de 1978 e permito-me chamar à vossa atenção para o papel pioneiro que eles tiveram na cooperação luso-guineense, é documentação que se pode consultar na sua sede, não há para ali revelações bombásticas mas dá para verificar que houve muita generosidade, vários doadores apostaram no progresso guineense. E coube-me a sorte em encontrar um tocante livro de aprendizagem português feito em parceria com a Escola Superior de Educação de Setúbal.
Dá gosto ver como sabemos ajustar a comunicação e ir ao encontro às reais necessidades dos outros.

Um abraço do
Mário


Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: 
Uma análise comparativa

Beja Santos

“Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, é o balanço feito por um dos fundadores do CIDAC aos congressos dos três principais movimentos de libertação africanos de língua portuguesa, em 1977. Para o leitor mais interessado em conhecer a história do CIDAC, que começou por ser Centro de Informação e Documentação Anticolonial, logo em maio de 1974, e que se tornou posteriormente em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral, remete-se para o link: www.cidac.pt/files/9013/8434/2125/Solidariedades.pdf, encontra-se neste documento a narrativa de 30 anos atividade laboriosa em termos de cooperação com as ex-colónias, o estudioso poderá encontrar na Biblioteca do CIDAC (Rua Tomás Ribeiro, 3-9 1069-069 Lisboa) o historial da cooperação com a Guiné-Bissau.

Importa registar que Luís Moita escreveu sobre os congressos do PAIGC anteriores a 1977. Referindo-se ao Congresso de Cassacá (13 a 17 de fevereiro de 1964), cita uma frase de Amílcar Cabral em 1969: “O partido já estava doente, após um ano de luta”. O Congresso tomou decisões fundamentais no domínio da organização política e militar, trata-se de matéria que está profundamente documentada. Passado 9 anos, o PAIGC reuniu o seu II Congresso no Boé. Em dezembro de 1972, tinham decorrido as eleições para a Assembleia Nacional Popular e em 20 de janeiro Cabral é assassinado. Neste II Congresso decidiu-se convocar a Assembleia Nacional Popular no decurso desse ano 1973, a fim de cumprir a decisão de proclamar o Estado da Guiné, são os acontecimentos de 24 d setembro de 1973. São portanto Congressos que assinalam etapas fundamentais da luta e onde se tentou a superação de contradições e dificuldades sentidas enquanto movimento independentista.

Luís Moita detém-se uma estrutura social guineense e cabo-verdiana e alude ao relatório do Conselho Superior de Luta do PAIGC onde se diz que o processo histórico da luta de libertação nacional foi desencadeado não por uma classe mas pelo setor revolucionário da pequena burguesia, não havia, tanto na Guiné como em Cabo Verde, um operariado consciente dos seus interesses.

O III Congresso debruçou-se sobre os anos de poder, entre 1974 e 1977. O PAIGC não fala em revolução socialista,  fala em democracia nacional revolucionária e procura não iludir as realidades: o poder político assentava numa base económica frágil, em virtude do baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas nacionais, por isso a tarefa primordial era alargar e fortalecer a base económica do poder político. O III Congresso considerou que a etapa que se vivia era fundamentalmente caraterizada pelas necessidades de consolidação da independência e de mobilização nacional.

Entendia o PAIGC que se tinha estruturado como partido e tinha adotado um programa de frente nacional, era a vanguarda do povo da Guiné e Cabo Verde, praticava uma política de unidade nacional e definia-se como um movimento de libertação no poder. Neste III Congresso aprovaram-se novos estatutos do PAIGC onde se equacionavam as relações entre o partido e as organizações de massas:

  “Processam-se na base do princípio da independência orgânica e autonomia dessas organizações e do princípio da direção e controlo pelo partido”.

E assim chegamos ao conceito de desenvolvimento, apresentado por Aristides Pereira: 

“Só tomando medidas concretas que conduzam à liquidação da exploração pelo homem na nossa terra podemos criar as condições para que seja real o progresso continuo no nosso povo. Isto significa que o desenvolvimento da nossa terra tem de processar-se na base da mobilização das camadas mais desfavorecidas da população, sobretudo dos trabalhadores do campo”

E, mais adiante: 

“Na Guiné, há duas questões fundamentais que estamos a desenvolver: uma, é a criação de condições que conduzam ao estabelecimento do equilíbrio da nossa balança de pagamentos e a outra é a necessidade de reforçar e alargar as medidas tendentes a quebrar o círculo fechado da nossa autossubsistência, em que se encontra 80 % da nossa população”

Segue-se a enumeração de um conjunto de projetos, que, como se sabe, ou foram rotundos fracassos (caso do complexo agro industrial do Cumeré) outros que não encontraram doadores ou financiadores.

A direção do PAIGC eleita no III Congresso tinha a seguinte Comissão Permanente: Aristides Pereira (secretário-geral), Luís Cabral (secretário-geral adjunto), Francisco Mendes, João Bernardo Vieira, Pedro Pires, Umarú Djaló, Constantino Teixeira e Abílio Duarte.

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Aprender português na Guiné-Bissau: 
Um manual do aluno datado de 1994

Encontrei este manual editado pela Escola Superior de Educação de Setúbal na Feira da Ladra, teve uma tiragem de 900 exemplares, foi escrito por Alcina Ferreira e tem desenhos de Luís Balata e Manuel Júlio, a capa é de Elisa da Costa, uma aluna guineense.

Na apresentação ao aluno diz-se que “Durante este ano, vais aprender a escrever em pequenas frases aquilo que pensas. Vais também aprender a ler melhor, para entender o que os outros te contam por escrito. No fim deste ano serás capaz de ler o jornal, as cartas, as revistas e outros livros”.

É um livro felizmente articulado com as realidades guineenses, oxalá tinha sido útil a muitos meninos, preparando-os para falar mais fluentemente o português. Dá gosto ver materializada a cooperação entre metodólogos portugueses e guineenses, o manual tem conteúdo e a sua sobriedade não afeta o valor das mensagens. Aqui ficam algumas imagens.



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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13806: Notas de leitura (645): “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, organizadores Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12982: Notas de leitura (581): Quem são os responsáveis pelo assassínio de Amílcar Cabral?, em O Jornal de Janeiro de 1976 e Jeune Afrique de Novembro de 1983 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Junto comentários a duas entrevistas publicadas em 1976 e 1983, alusivas aos acontecimentos de 20 de Janeiro de 1973.
Não deixa hoje de surpreender o tom perentório com que se incriminaram a PIDE de Bissau e Spínola, sem apresentar uma prova material, como foi possível pôr muita gente a acreditar que pessoas com reconhecidas limitações como Momo Turé pudessem ter-se imposto à frente de larguíssimas dezenas de quadros conspirativos.
As provas materiais de quem mandou matar Cabral continuam em falta, os arquivos estão vazios, os processos efetuados em 1973 desapareceram. Vamos ter que aguardar que algumas das figuras determinantes estejam dispostas a revelar o que aconteceu.
Joaquim Chissano, por exemplo.

Um abraço do
Mário


Quem são os responsáveis pelo assassínio de Amílcar Cabral?

Beja Santos

O puzzle continua incompleto, quarenta anos depois são escassos os factos provados quanto ao assassinato de Amílcar Cabral pelas 22h30 de 20 de Janeiro, em Conacri: sabe-se que houve uma equipa que o abordou, que o primeiro tiro partiu de Inocêncio Kani e que alguém de nome Bacar deu o tiro de misericórdia; sabe-se como atuaram várias equipas a fazer prisões dos quadros cabo-verdianos; sabe-se que Sékou Touré foi abordado pelos sublevados, mandou fazer prisões e institui uma comissão de inquérito, cujos resultados nunca foram divulgados; sabe-se que houve inquirições de todos os presumivelmente sublevados, foram tomadas decisões de execução e desapareceram todas as provas materiais do processo; e sabe-se que alguns dos observadores de toda esta situação à volta do assassinato ainda não disseram a última palavra – é o caso de Joaquim Chissano. Há muita penumbra, muito fogo-fátuo, muita presunção, com ou sem água benta. Por isso, todo o envolvimento sobre os mandantes é um grande mistério. E à volta desse mistério escreveram-se acusações sem provas, sobretudo a seguir ao assassinato era de bom-tom apontar o dedo a criminosos longínquos: Spínola, a PIDE, Rafael Barbosa, por exemplo. Há que juntar metódica e incansavelmente tudo quanto se escreveu e perceber que está quase tudo por esclarecer.


Numa edição de Janeiro de 1976, o semanário O Jornal publicava um documento inédito: páginas de um livro branco do PAIGC. O jornalista achou por bem encontrar uma relação causa-efeito entre a invasão de Conacri, de Novembro de 1970, com o assassinato de Cabral. Chega-se ao cúmulo de dizer que as infiltrações nas fileiras do PAIGC teriam começado em 1966 e com o maior à vontade escreve-se: “Foi essa máquina, montada minuciosamente ao longo de alguns anos, que os governantes de Lisboa e o seu representante em Bissau, Spínola, decidiram pôr em funcionamento no dia 20 de Janeiro de 1973. A morte de Cabral, o rapto de Aristides Pereira e a prisão dos principais dirigentes do PAIGC constituíam a parte operacional de um plano que tinha por objetivo último a sobrevivência dos interesses colonialistas na Guiné e a manutenção das ilhas de Cabo Verde”. O jornalista cola-se ao tal livro branco preparado pela comissão de inquérito do PAIGC que, resumidamente, defende tais teses, que se passam a sintetizar.

Primeiro, os colonialistas elaboraram um plano que desembocaria na independência da Guiné ao mesmo tempo que recusariam qualquer abertura à autodeterminação de Cabo Verde. Segundo, Spínola criara secretamente um partido formado exclusivamente de guineenses, a FUL (Frente Unida da Libertação) constituída entre outros por Rafael Barbosa e Momo Turé, havendo mesmo uma ramificação no Senegal. Em dada altura, libertaram-se antigos quadros do PAIGC como Momo Turé e Aristides Barbosa para serem preparados e enviados para Conacri. Terceiro, conseguido o descontentamento e a franca adesão dos guineenses do PAIGC contra os cabo-verdianos, punha-se em marcha o golpe, que seria apresentado como uma revolta dos guineenses contra a direção cabo-verdiana, havendo êxito Sékou Touré primeiro e a Organização da Unidade Africana depois iriam apoiar as novas autoridades.

O documento da comissão de inquérito excede-se na imaginação: “Portugal não pode falar da independência da Guiné sob pena de ser obrigado a falar também da independência de Angola e Moçambique. Se conseguissem todos os objetivos almejados com o complô, os colonialistas portugueses começavam por desarmar os combatentes do PAIGC, em seguida desarmavam os seus comandos africanos, evocando o fim da guerra: reforçavam a sua guarnição militar em toda a Guiné e finalmente prendiam todos os dirigentes da FUL em Bissau”.

É esta a única referência que eu conheço à comissão de inquérito do PAIGC liderada por Fidelis Cabral de Almada, o mesmo que, após o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, veio no Congresso do PAIGC pedir desculpa pelas barbaridades que tinham sido cometidas, nomeadamente as torturas praticadas durante os interrogatórios. Quando hoje se conhecem as profundas limitações intelectuais e políticas de Momo Turé (até desaparecer para Conacri, em 1972, era empregado de mesa no restaurante “Pelicano”), fica-se estarrecido como foi possível tentar fazer convencer que ele foi um dos autores da conspiração que envolveu largas e largas dezenas de quadros, muitos deles com elevadíssima preparação. Como foi possível ter criado tanta mistificação à volta de um processo de que hoje não há um só documento?

“Jeune Afrique”, num número de Novembro de 1983, volta ao assassinato de Cabral, trata-se de um inquérito de Sophie Bessis em Bissau, na Praia, em Lisboa e Paris. Pouco ou nada adianta. Refere o documento de Março de 1972, consagrado aos problemas de segurança, denunciado que está em curso um plano para a sua liquidação. Cabral diz que recebera estas informações através do Partido Comunista Português. A repórter não esconde a surpresa quanto ao silêncio à volta de dossiê que parece incomodar o poder político instalado. Não há prova determinante, passados dez anos do assassinato, para infirmar ou reforçar as suspeitas que pesam sobre uma série de personagens da época. Cabral tinha uma enorme relutância em fazer-se acompanhar de guarda-costas. Ana Maria, a sua mulher, revela que naquela noite, antes de partirem para o jantar na embaixada da Polónia em Conacri, ela viu Cabral inquieto. Durante a manhã desse dia, Cabral tinha recebido uma visita inopinada, a do embaixador da Guiné em Dakar, portador de uma mensagem de Sékou Touré, informando que havia qualquer coisa em preparação. Cabral chamou o responsável pela segurança, Mamadu Indjai, ao que parece um dos conspiradores, ao revelar-lhe que corria o rumor de um golpe pode ter dado azo a que os conspiradores acelerassem as movimentações.

A repórter descreve o que se passou nos momentos do assassinato e depois. A comissão de inquérito de Sékou Touré fez passar que a responsabilidade era dos portugueses, Spínola e a PIDE, mas que havia também africanos infiltrados. Lidas as sentenças, depois do processo organizado pelo PAIGC, um conjunto de sublevados foram executados, a repórter diz que morreram linchados. E volta a desenvolver a tese de que Spínola criara a FUL, sob a direção de Rafael Barbosa, que dera luz verde para a operação dos infiltrados guineenses em Conacri, etc. E citando “algumas fontes” diz que Spínola tinha projetado aproveitar-se dos guineenses para capturar Cabral e mantê-lo como reserva. Também releva o papel de Momo Turé, mas não deixa de insinuar que a morte de Cabral podia ter constituído um alívio para Sékou Touré que mantinha relações muito tensas com o pai fundador do PAIGC, a africanização do PAIGC permitiria a Sékou Touré ter um maior controlo sobre a futura nação independente.

Era dentro desta bruma e deste nevoeiro que se falava em 1976 e 1983 do assassinato de Cabral. Ninguém pediu provas, ninguém apresentou provas, acusava-se na base da especulação e das hipóteses. E aqui estamos, a aguardar que apareçam declarações ou depoimentos que tragam um verdadeiro esclarecimento a um dos imbróglios mais intrigantes da história da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12964: Notas de leitura (580): "Os Portugueses Descobriram a Austrália? 100 Perguntas Sobre Factos, Dúvidas e Curiosidade dos Descobrimentos”, por Paulo Jorge de Sousa Pinto (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11001: Notas de leitura (452): Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2013:

Queridos amigos,
Os artigos de Fernando Baginha são necessários como peças do incomensurável puzzle das motivações profundas sobre o assassinato de Cabral. 40 anos depois, a penumbra continua densa, apesar da muita especulação gratuita em que sem provas se continua a apontar o dedo para a PIDE em Bissau, Rafael Barbosa, Spínola.
Ninguém acredita que numa conspiração em que estiveram envolvidas centenas de pessoas não se encontrasse um só documento, um conjunto de depoimentos articulados da ligação dos executores de Cabral com Spínola. Há uma carta nos arquivos da PIDE em que Fragoso Allas, diretor da delegação de Bissau, dá uma versão para Lisboa em que é impensável que estivesse a fingir nada saber ou a haver conivência com os altos dirigentes guineenses.
Deve doer muito ter que reconhecer que os guineenses não queriam ser dirigidos por cabo-verdianos.

Um abraço do
Mário


Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral

Beja Santos

Fernando Baginha viveu na Suécia, onde trabalhou, durante alguns anos, com o PAIGC. Em 1972 e 1973, foi professor da Escola-Piloto do Partido, na República da Guiné-Conacri, de que chegou a ser diretor. Foi, também, o autor e responsável pelos programas de propaganda dirigidos aos militares portugueses, através das emissões da Rádio Libertação do PAIGC.

Em 4 e 18 de Dezembro de 1980, Baginha escreve no jornal O Ponto acerca do assassinato de Cabral e as repercussões que este teatro teve na vida do PAIGC, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Diz ter assistido à morte de Cabral e a todo o processo que lhe seguiu, resolveu então tornar públicos factos que calou durante aqueles anos. Em 19 de Janeiro de 1973, os serviços de segurança checos em Conacri avisaram Cabral de que teriam sido detetados indícios de conspiração dentro do PAIGC. Cabral avisou o então responsável pela sua segurança para que tomasse precauções. Tratava-se de Mamadu N’Djai, herói nacional, comandante da frente Norte, três vezes ferido em combate e naquele momento em Conacri em convalescença do seu último ferimento. N’Djai teria feito saber diretamente aos outros conspiradores que o golpe era conhecido. Assim, tudo foi antecipado e a ação decorreu em plena visita oficial a Conacri de Samora Machel e a Joaquim Chissano.

Nessa noite, decorria na Escola Piloto do PAIGC, em Retoma, arredores de Conacri, uma reunião de informações sobre o desenrolar da guerra em Moçambique, presidia Chissano. Cabral e Machel estavam ausentes. À hora em que terminou a reunião, cerca das 23 horas, Cabral já estava morto. O grupo de viaturas que voltava para Conacri ou para outros campos do PAIGC, foi intercetado pelo grupo de revoltosos, sendo presos todos os elementos cabo-verdianos ou com ele conotados. Pela meia-noite, toda a direção política do PAIGC, de momento em Conacri, estava presa. Segue-se a reviravolta, o exército de Sékou Touré intervém em força e prende todos os elementos do PAIGC, revoltosos e vítimas, o golpe parou.

O que se passara, entretanto? O grupo diretamente encarregue de prender Cabral, comandado por Inocêncio Kani, acaba por abater o líder do PAIGC enquanto outro grupo, comandado por Mamadu N’Djai, prende e rapta Aristides Pereira que é levado para um barco de guerra do PAIGC, fortemente amarrado e com ele é levado Buscardini, um dos carrascos dos comandos africanos e morto em 14 de Novembro de 1980.

O grupo que abatera Cabral apresentou-se no Palácio de Sékou Touré, informando que acabara de matar o secretário-geral do PAIGC. Sékou Touré dá-lhes ordem de prisão. Para Baginha, o envolvimento da Guiné-Conacri na tentativa de afastamento da direção cabo-verdiana era por de mais evidente: toda a conspiração ocorreu em Conacri e foi detetada pela segurança checa que obviamente terá avisado Sékou Touré; os executores de Cabral, cumprida a sua nefanda missão, dirigiram-se ao palácio da Presidência para que houvesse reconhecimento do golpe; os revoltosos atravessaram toda a Conacri e saíram do porto, apesar das rigorosas medidas de segurança que existiam. Numa reunião que teve lugar no palácio da Presidência, Sékou Touré informou todos os quadros do PAIGC dos resultados provisórios do inquérito à morte de Cabral: no momento da morte de Cabral encontravam-se em Conacri 429 elementos do PAIGC e 336 estavam a par da conspiração.

Baginha refere os desentendimentos profundos entre Cabral e Osvaldo Vieira, prendiam-se sobretudo com a condução militar das operações. Cabral permitia-se, por vezes depois de longas ausências no estrangeiro alterar completamente planos já estabelecidos. Para mais, Cabral já não entrava nas zonas libertadas da Guiné havia cerca de 3 anos. No dia do assassinato, Osvaldo Vieira estava em Conacri, a tudo assistiu, todos o viram, ele viu tudo e não teve um gesto para evitar o que se passou (recorde-se o que Bobo Keitá escreve no seu livro, já aqui referenciado: foi visto Osvaldo Vieira durante todo o dia na companhia de Inocêncio Kani). Continua Baginha a referir que tendo ficado preso na companhia de guineenses, estes não disfarçavam a sua preocupação e falavam abertamente: Osvaldo era o nome mais citado. Nos interrogatórios perguntaram a todos os inquiridos se teriam ouvido algo sobre o envolvimento de Osvaldo Vieira e em consequência dos inquéritos ele foi suspenso de todas as funções diretivas no partido. Osvaldo Vieira foi conduzido para a zona de Madina de Boé sob prisão. Depois disse-se que teria morrido de doença do estômago. Mas Baginha não tem dúvidas, ele foi executado. No primeiro dia de execuções, foram executados nas três frentes de guerra 69 homens. Sékou Turé não autorizou fuzilamentos em território da República da Guiné. E Baginha diz sem rebuço que o golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Com este golpe não restava qualquer dúvida: pretendia-se levar Nino Vieira ao poder.

No segundo artigo, Baginha volta-se para Rafael Barbosa, uma das figuras mais assombrosas e enigmáticas de todo o processo: peça fundamental da subversão dos anos 50 até 1962, foi preso, foi visto como um herói durante uma boa parte da luta armada, classificado como traidor depois da sua confissão pública ao lado de Spínola, preso com a independência, condenado à morte, pena comutada, libertado, de novo herói e logo desmentido. Cabral sempre o considerou o pilar da primeira fase da luta de libertação, tratou-o, até à sua confissão pública, como o presidente do PAIGC. Para Baginha, é com a libertação de Rafael Barbosa, autorizada por Spínola, que irá começar a clivagem entre guineenses e cabo-verdianos. Segundo Baginha a direção política do PAIGC não insistiu muito na condenação de Barbosa devido a dois factos importantes: primeiro, a adesão de cabo-verdianos ao PAIGC ter estagnado; segundo as adesões cresciam exponencialmente a partir de fugas da Guiné, quem chegava a Conacri não escondia a sua admiração por Rafael Barbosa.

Baginha nunca acreditou nas implicações da PIDE no assassinato de Cabral, diz saber que a PIDE não tinha, diretamente, nada a ver com o assassinato, considera que Spínola terá jogado na agudização da contradição que ele sabia existir: quantos mais guineenses do PAIGC e mais rápida seria a desagregação do partido. Spínola, com a sua “Guiné melhor”, conseguiu insinuar a ideia, ao nível dos quadros de guerra, de que sem a unidade Guiné-Cabo Verde algo seria possível. E inúmera alguns “atrasos de percurso” até à chegada definitiva de Nino ao poder: o falhanço do golpe de 1973; o 25 de Abril, que obrigou todos os intervenientes a estarem de acordo; a confirmação do poder de Luís Cabral, beneficiando do processo de descolonização e do apoio dos outros países saídos das ex-colónias; o apoio que Luís Cabral sempre teve de Francisco Mendes (Chico Té) primeiro-ministro até ao acidente que o vitimou.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10977: Notas de leitura (451): Guiné-Bissau: A Destruição de um País, por Julião Soares da Silva (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10971: Recortes de imprensa (64): Morte de Cabral interessava a todos (Carlos Lopes, em declarações à Agência Lusa, reproduzidas na página da Angop - Angola Press, 19/1/2013)

1.  Excerto da página da Angop - Angência Angola Press, aqui reproduzido com a devida vénia:

19-01-2013 16:52
Guiné-Bissau/Cabo Verde

Morte de Cabral interessava a todos - secretário executivo de Comissão da ONU

Cidade da Praia - A morte de Amílcar Cabral, há 40 anos, interessava a todas as partes envolvidas nas independências das então províncias portuguesas da Guiné e Cabo Verde, disse hoje à agência Lusa um dirigente guineense das Nações Unidas.

O secretário-geral adjunto das Nações Unidas e secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) da ONU, Carlos Lopes, lembrou que são conhecidos os autores materiais do assassínio de Cabral - Inocêncio Kani e outros guerrilheiros do PAIGC -, não interessando analisar pormenorizadamente a sua morte.

"Os autores físicos do assassínio são conhecidos e as várias justificações que podem estar por trás dos autores físicos têm a sua validade. Não vale a pena estarmos a fazer uma análise mais detalhada para saber a quem interessava a morte de Cabral.  "Interessava a todas as conglomerações de interesses que estão por trás da sua morte", sustentou.


Segundo Carlos Lopes [, foto à direita, arquivo das  Nações Unidas, Cabo Verde ], após o assassínio de Cabral, abatido a tiro em Conacri a 20 de Janeiro de 1973 e cujos contornos nunca foram devidamente apurados, todos os dirigentes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) pensavam que tinha morrido apenas "a personagem" e que muitos outros poderiam continuar o trabalho.

"Isso foi, de certa forma, verdade, porque conseguiu-se atingir as independências. Mas já não é verdade porque a profundidade do pensamento de Cabral não foi substituída até hoje. Não se deve deixar que se responsabilize Cabral pelo que se passou (na Guiné-Bissau e em Cabo Verde) após a sua morte", frisou. "São as pessoas que utilizam o seu pensamento da forma que mais lhes interessa: uns para dizer algo negativo e outros para dizer algo positivo. Todas as grandes personagens são sujeitas a um escrutínio muito mais apurado", sustentou.

Questionado pela Lusa sobre se Cabral foi "ingénuo" ao acreditar ser possível a unidade entre Cabo Verde e Guiné-Bissau, Carlos Lopes lembrou o então muito em voga pan-africanismo, cujo conceito foi expressado de várias formas pelo líder do PAIGC.  "No fundo, se acreditarmos no pan-africanismo como utopia mobilizadora, pode-se concluir que valeu a pena, pois levou os dois países à independência. Mas tudo o que se passou após a sua morte é da responsabilidade dos protagonistas pós-Cabral", frisou, aludindo ao corte de relações entre os dois países após o golpe de Estado guineense de 14 de Novembro de 1980. 

No entanto, para Carlos Lopes, há o facto de Cabral ter sido capaz de vislumbrar que a luta de interesses e entre elites dentro do próprio PAIGC ia ser o grande problema depois das independências.  "Era preciso construir o Estado e os princípios da igualdade como os principais motores que poderiam evitar certas contradições. E Cabral, na forma como analisou os factores, previu que seria uma luta muito difícil ou mesmo inglória", concluiu. 
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Nota do editor;

Guiné 63/74 - P10969: Bibliografia de uma guerra (66): A morte de Amílcar Cabral no livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 19 de Janeiro de 2013, subordinada ao tema execução/assassinato de Amílcar Cabral ocorrida há precisamente 40 anos:

Olá, camarada e amigo Carlos Vinhal,
Na oportunidade da efeméride, submeto-te o texto que, se merecer alojamento no blogue, poderá complementar com a reprodução da narrativa Anatomia do crime político do assassinato de Amílcar Cabral, uma extensa nota de rodapé, iniciada na página 259 do livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", que confesso não “saber como colar e cortar”, para a incluir aqui.

Aproveito para explicitar a minha autorização para fazer eco no blogue do que entender desse livro.

Um grande abraço,
Manuel L. Lomba


Nos 40 anos pós assassinato de Amílcar Cabral, o fundador das nacionalidades bissau-guineense e cabo-verdeense, que foi morto a tiro, por compatriotas e seus companheiros de caminho, no logradouro da sua residência em Conakri, na madrugada de 20 de Janeiro de 1973, num contexto de guerra surda intestina.

O acontecimento e suas sequelas deram azo a que o partido-Estado PAIGC aumentasse exponencialmente as suas potencialidades de “máquina de matar” compatriotas, por motivos políticos - cerca de 11 mil, contados de Janeiro de 1963 a Janeiro de 2013, segundo o cálculo de alguns historiadores.

O povo da Guiné, heróico e maravilhoso, tornou-se credor da estima e da amizade da generalidade dos portugueses ex-combatentes, nos 12 anos de duração da guerra “antidescolonialista”, por honra e dever para com o nosso país.
E a História veio presentear-nos com a penosa realidade de que os mesmos barões e as mesmas armas que serviram para expulsar o colonialismo português têm servido para tornar o povo bissau-guineense refém do desassossego e do subdesenvolvimento.

OBS: - Segue-se a digitalização da nota de rodapé Anatomia do crime político do assassinato de Amílcar Cabral que podem ser lida nas páginas 259; 260 e 261 do livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" do nosso camarada Manuel Luís Lomba

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10564: Bibliografia de uma guerra (65): As nossas Enfermeiras Pára-quedistas vão editar um livro, precisando de depoimentos daqueles que com elas tenham trabalhado (Miguel Pessoa)

Guiné 63/74 - P10968: Amílcar Cabral, um agrónomo antes do seu tempo (Carlos Schwarz, Pepito, eng agr) (II e Última Parte)

AMILCAR CABRAL, UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO (II e última parte)


Por Carlos Schwarz
(engenheiro agrónomo)
Novembro
2012

Publicado originalmente no sítio oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento, 11 de janeiro de 2013. Cortesia do autor, que é membro do nosso blogue.

(Continuação) (*) 

O PENSAMENTO AGRONÓMICO DE CABRAL  

A primeira grande e decisiva rutura com os conceitos estabelecidos, dá-a Cabral desde o início, já quando estava a realizar a sua tese no Alentejo. Na altura, vigorava o princípio de que o avanço da agricultura se faria exclusivamente através da introdução de novas técnicas agrícolas. Mais tarde viriam a designar esta opção como “pacote tecnológico”. Cabral, embora reconhecendo a necessidade de se fazer uso de técnicas alternativas, centra no Homem o desafio de toda a evolução agrícola. Basta ver que a agricultura colonial se fazia baseada exclusivamente no trabalho de especialistas das doenças do cafeeiro, de solos, etc., sem que a agricultura fosse vista como um conjunto de componentes em que o ator principal era o agricultor, sujeito ativo e interessado na sua evolução.

Cabral rompe com essa visão e integra o elemento humano, o agricultor, como o elemento determinante da modernização agrícola, desempenhando a introdução de novas técnicas agrícolas como uma resposta aos problemas sentidos pelos agricultores. Nesses tempos, fruto desta visão, culpabilizava-se facilmente os agricultores pelo falhanço da não ou má-utilização dessas técnicas, sem se perceber que o nó do problema residia na não compreensão por parte dos técnicos das reais prioridades dos agricultores. É curioso notar que, hoje em dia, aparecem técnicos na Guiné-Bissau, com uma visão ridiculamente oposta, afirmando que não são necessárias inovações técnicas, devendo-se deixar os agricultores entregues a si próprios, uma vez que eles praticam milenarmente a agricultura e já sabem tudo. 

[Foto à direita: Amílcar Cabral. Foto do arquivo de Clara Schwarz, Lisboa, 2012]

Para Cabral, a modernização da agricultura devia partir do conhecimento dos sistemas agrários e não da sua compartimentação em disciplinas agrícolas, em que se corria o permanente risco de se ter uma visão e ação parcelar dos desafios locais. Cabral, já nessa altura, perfilhava a tese de que se devia ter simultaneamente um conceito global dos desafios da agricultura e o sentido realista de intervir pontualmente, com respostas práticas às necessidades dos agricultores. Por outras palavras, eram estes que deviam determinar a agenda agrícola da pesquisa e vulgarização e não as estratégias da metrópole colonial a definir a mancarra, o algodão, o café, o cacau, etc., como as espécies a incrementar nas diferentes colónias. 

Foi o primeiro a questionar o sistema de agricultura baseado na monocultura, naquela altura o da mancarra, o que representava um perigo para a economia com as flutuações anuais dos preços nos mercados externos, o que colocava o agricultor numa situação de dependência, risco e incerteza. Também a monocultura sujeitava-o à possibilidade de, num mau ano agrícola, não dispor de nenhuma alternativa financeira para fazer frente às suas necessidades alimentares. Acresce que, no caso da mancarra, provocava uma irreversível degradação dos solos, em especial através da sua erosão. Este alerta não só não foi ouvido na altura, como não foi compreendido no pós-independência, estando a Guiné-Bissau a viver hoje o drama do cajueiro. Para Cabral, era preciso “diversificar a produção para não depender só de um produto”.

A importância da implantação de um “sistema de pesquisa-vulgarização” foi assumido desde o início da sua atividade como agrónomo. A transformação do estatuto da Granja de Pessubé em centro de experimentação agrícola, assim como a criação de uma rede de postos dispersos no país para a realização de ensaios de adaptação varietal, evidencia a importância da dinâmica “experimentação-divulgação” na modernização da agricultura guineense. De tal forma que os primeiros resultados dos ensaios realizados, começaram logo a serem difundidos e utilizados.

Os perigos e limites da mecanização agrícola (Cabral refere-se apenas à motorização, não incluindo a tração animal) são exaustivamente abordados num texto de 1953, uma vez que ele é confrontado, logo à sua chegada a Bissau, com uma tese muito em voga, que atribuía o atraso da agricultura guineense ao não uso de tratores agrícolas.

Chama a atenção para vários aspetos, sejam eles de ordem técnica ou socioeconómica, entre os quais o da maioria dos solos agrícolas (encosta e planalto) ser de pequena profundidade útil e “vocacionados” para a erosão, pelo que a mobilização do solo por tratores podia revelar-se prejudicial quando ultrapassa os horizontes aráveis. Existia a ideia errada de que, com a mecanização, se iria aumentar os rendimentos unitários das culturas, quando o máximo que aconteceria, era o aumento da produção. A motorização começa por ser uma questão cultural que exige do agricultor um relacionamento com o motor nos domínios da manutenção, funcionamento correto, planificação, programação, compra de peças sobressalentes, tratoristas, mecânicos, sendo que tudo isso necessita de levar o seu tempo e consolidar-se de forma gradual e lenta. Finalmente, a sustentabilidade financeira do trator prende-se com a sua utilização em culturas comerciais, podendo penalizar a segurança alimentar da unidade familiar de produção e, consequentemente, do país. 

A indiscriminada “recuperação de bolanhas”, feita a eito e sem critério, com o único objetivo de aumentar a superfície cultivada e de ganhar dividendos políticos, foi posta em causa por Cabral, que defendia que o grande desafio que se deparava à agricultura guineense era o do aumento dos rendimentos unitários para ter maiores produções e não o de apostar apenas em aumentar as áreas cultivadas. Na recuperação de bolanhas o caso é ainda mais pertinente, uma vez que são solos com características bem específicas, em que os níveis de salinidade e de acidez são determinantes para inviabilizar os solos ou deles obter rendimentos tão baixos que não justificam o investimento. De nada serve recuperar bolanhas onde se obtenham reduzidas produções de arroz. Curiosamente, esta questão ainda hoje está na ordem do dia, aparecendo decisores e financiadores a investirem em recuperações de bolanhas de produção duvidosa e discutível, politique oblige…

A luta contra a degradação dos solos devido às praticas culturais que favoreciam a sua erosão, a escolha de espécies que acentuavam a diminuição da sua fertilidade, o aumento das queimadas e a redução do período de pousio que limitava a regeneração dos solos mais frágeis, foi outra tónica dominante do pensamento agronómico de Cabral. Procedeu a vários estudos locais e à redação de textos sobre estudos realizados em Fulacunda, insistindo na necessidade da modificação de técnicas culturais que contribuíssem para diminuir os riscos de erosão e para o reforço da sua fertilização, como o do uso da prática da consociação de culturas, o prolongamento do período de pousio e o da preocupação com a cultura de espécies penalizadoras, como a mancarra.

É interessante notar as preocupações ambientais de Cabral, numa época em que elas não existiam e, sobretudo, defendendo um conceito mais avançado, que ainda hoje não é compreendido nem aceite por alguns ecologistas fundamentalistas. Para Cabral, “o Homem também é natureza” e este tanto era percebido como alguém que contribuía para desregular os recursos ambientais, como era visto como o incontornável promotor da sua preservação, em função dos diferentes sistemas de produção das diversas etnias (a que ele chamava “povos”) e a sua atitude perante o uso que cada um fazia dos ecossistemas. Cabral “ambientalista” fazia-se notar sobretudo nas suas reservas à mecanização, à erosão dos solos, às queimadas incontroladas, aos curtos pousios, ao pouco uso da consociação de culturas e à reduzida prática da fertilização natural dos solos. Não considerava o agricultor como um anti-ambientalista que precisasse de ser “educado”, como muitos ainda hoje defendem, mas como o elemento determinante para que, gerindo bem os recursos, os pudesse vir a utilizar em proveito próprio.

Este conjunto de pensamentos que Amílcar Cabral defendia de forma pragmática, mostra até que ponto foi um agrónomo antes do seu tempo, não nos custando a aceitar que, com ele, o pós-independência teria sido muito diferente.

A LUTA PELA INDEPENDÊNCIA ENQUANTO  PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO

A forma como Cabral abordou a execução do censo agrícola, acaba por ter os mesmos princípios norteadores que o levam a encarar a preparação da luta pela independência. No recenseamento ele foi confrontado com a exiguidade de recursos humanos, a falta de meios logísticos e poucos recursos financeiros, mas isso não o impediu de levar a tarefa por diante, com enorme sucesso, de tal forma que ainda hoje, 60 anos depois, ele é a base de qualquer informação séria de que se necessite. Também a Luta é começada a preparar com reduzidos recursos, mas é igualmente um sucesso, porque assenta na vontade, determinação, convicção e competência daqueles que nela se envolvem. Contrariamente à tendência “habitual”, que ainda hoje persiste, de nos escusarmos na falta de meios para justificar a nossa incapacidade ou desinteresse, Cabral concebeu uma estratégia a partir da valorização dos poucos recursos que existiam, condicionando o ritmo de avanço e de progresso ao seu aumento e ao maior domínio que deles se ia conseguindo. Durante todo o período da Luta, este foi um princípio sagrado de Cabral, consubstanciado na palavra de ordem: “não dar um passo maior que a perna”. 

Cabral optou pelo envolvimento gradual dos camponeses nas ações, por fases, à medida que os protagonistas iam adquirindo competências e saberes, sem nunca ter pressa em acelerar o ritmo de execução e acabar por “descolar” dos militantes rurais. Nunca imprimiu uma dinâmica que queimasse etapas e exigisse dos camponeses, o maior viveiro de combatentes, atividades para as quais ainda não estavam preparados, apostando tudo na sua organização e capacitação. Tal como se passa na agricultura, a Luta começa com ações simples e de resultados imediatos, que entusiasmam e mobilizam os seus participantes, os quais vão compreendendo e apropriando-se dos mecanismos de conceção e decisão, ganhando maturidade organizativa que lhes permite assumir novas responsabilidades.

Tal como se passa no associativismo agrícola, é importante ter grupos de liderança pequenos, dinâmicos e consequentes, de nada valendo pensar que ter direções pletóricas de militantes é uma boa forma de fazer todos participar. Quando o grupo é grande, começa a verificar-se uma demissão de responsabilidades, empurrando para os outros as suas próprias funções e atribuições e acabando por ficar reduzido à sua expressão mínima, com o inconveniente de se tornarem lideres descrentes e inconsequentes. Privilegiando-se a criação descentralizada de vários grupos de ação em função das atividades e em que os lideres irão sendo envolvidos pelo seu engajamento, capacidade de trabalho em grupo, mobilização dos recursos humanos e pragmatismo criativo na condução das ações, a ocupação territorial é mais consequente. 

À partida, um processo de desenvolvimento inovador é sempre minoritário, pelo que, para Cabral se impôs começar pequeno e evoluir gradualmente para um final com grande número de iniciativas simultâneas, coordenadas e reciprocamente potenciadoras. De nada serviria começar a toda a velocidade, gerindo muitas iniciativas ao mesmo tempo para, em pouco tempo e sem a experiência dos quadros locais, se perder o rumo e cair no descrédito. A descentralização dos grupos de ação favoreceu que os melhores militantes sobressaíssem mais rapidamente, que adquirissem maior poder de iniciativa sem ficarem amarrados a uma estrutura centralizada e pesada.

Um processo de desenvolvimento para ser independente devia envolver parceiros estrangeiros o mais diversos possível, pelo que nunca se limitou aos países de leste (China, URSS e os outros do Pacto de Varsóvia), sensibilizando países ocidentais, como a Suécia, e organizações militantes dos EUA, Alemanha, França, etc. Cabral, tal como se opôs à monocultura, apostou forte na diversificação que lhe permitiu garantir a independência de pensamento e ação do PAIGC e ultrapassar sem problemas de maior o conflito sino-soviético, o qual chegou a ser ocasionalmente condicionante. 

Amílcar Cabral [, foto `esquerda, Livro de Leitura de 2ª Classe, do PAIGC], embora tenha dedicado, por razões óbvias, uma particular atenção à frente armada, concebeu a Luta pela Independência como um processo onde todas as componentes da vida humana assumiam uma igual importância: saúde, educação, justiça, comércio, cultura, conhecimentos locais, sensibilização internacional, infraestruturas e a agricultura. A sua formação e prática de agrónomo contribuiu certamente para esta perceção, defendendo desde o princípio que não desejava militares mas sim “militantes armados”, isto é, lembrando a todos que as armas eram apenas um momento circunstancial e que o mais importante era o desenvolvimento integral do país. O futuro veio a mostrar, de forma dramática, que Cabral perdeu esta sua aposta. Se durante a Luta era o Comissário Político que dirigia o comandante militar, já poucos anos depois da independência o militar considerou ser o único responsável pelo sucesso da Luta.

Tanto mais dramáticas são as consequências que se registaram, quanto Cabral sempre se assumiu como uma pessoa profundamente antimilitarista:

(i) desde o início tenta persuadir o poder colonial para que a Independência se faça de forma pacífica, sem recorrer a uma guerra, posição não aceite por Salazar, líder de uma das mais retrógradas ditaduras da Europa;

(ii) ao longo dos 11 anos de guerra reafirmou sempre a sua disponibilidade em negociar, tanto mais que, como ele sempre dizia, “ambas as partes falam a mesma língua, o português, e podem entender-se rapidamente”;

(iii) chegou ao ponto de, durante a Luta, dar ordem rigorosa para que a ponte do Saltinho, no rio Corubal, não fosse destruída, apesar dos benefícios militares que daí poderiam ter advindo para a guerrilha, ao impedir a ligação norte-sul da tropa colonial; fundamentava esta decisão perguntando, “e depois da independência, onde vamos nós buscar fundos para a reconstruir?”

OUTROS TRABALHOS AGRONÓMICOS

Para além dos trabalhos realizados na Guiné-Bissau, Amílcar Cabral exerceu atividade agronómica em Portugal, Angola e Alemanha, a partir de Março de 1955, quando ele e Maria Helena são “expulsos” do país, depois de dois anos e meio de intenso trabalho.

São numerosos os documentos técnicos então produzidos por Amílcar Cabral, referentes àqueles países, tendo por objetivo:

(i) obter recursos financeiros que lhe permitissem viver com dignidade;

(ii) praticar a sua profissão ganhando novos conhecimentos e experiência;

(iii) aguardar a altura de dar o “salto” para o interior da Guiné-Bissau para prosseguir a luta pela independência que começara a organizar logo que, acabado o curso, foi para Bissau

Não nos iremos pronunciar sobre estes estudos e documentos, uma vez que eles não dizem respeito à Guiné-Bissau e serão menos relevantes para a agricultura guineense.

NOTA FINAL

Depois da libertação total da Guiné-Bissau, em 1974, apenas uma pessoa, Luís Cabral, irmão de Amílcar e primeiro Presidente da Republica, vi ter compreendido o seu pensamento agronómico, investindo seriamente na agricultura, lançando numerosos projetos e acompanhando-os permanentemente no terreno com entusiasmo e encorajando os seus técnicos protagonistas. As frequentes visitas ao Centro Orizícola de Contuboel, onde para além da pesquisa se introduziu, pela primeira vez na Guiné-Bissau, a cultura de arroz na época seca, assim como à ENAVI, empresa pública de produção de galinhas e ovos, são disso exemplo.

Depois dele, nenhum outro Presidente se interessou ou se dedicou à promoção e modernização da agricultura guineense.


BIBLIOGRAFIA

- Estudos Agrários de Amílcar Cabral, INEP, 1988

- Juvenal Cabral, Memórias e Reflexões, Instituto da Biblioteca Nacional, Cabo Verde, 2002

- Luís Cabral, Crónica da Libertação, O Jornal, 1984


AGRADECIMENTOS

Para a elaboração destas breves notas recorremos a informações e opiniões de pessoas que nos ajudaram e a quem muito devemos e agradecemos.

Em primeiro lugar os numerosos combatentes da luta pela independência das Matas de Cantanhez, primeira zona libertada, e que nos foram contando, ao longo de anos, a sua vida durante a Luta, das suas tabancas e dirigentes que lá estabeleceram os seus acampamentos de guerrilha.

A Bacar Cassamá, monitor da Granja de Pessubé e antigo combatente de primeira hora, com quem lamento não ter conversado mais tempo.

A José Araújo, dirigente do PAIGC que nos contou, quando estávamos na direção da JAAC (Juventude do Partido) muitos dos pensamentos de Amílcar Cabral, em especial o que ele estava a conceber para o pós-independência. 

A João da Costa, extraordinário intelectual, combatente da independência, que me foi relatando de forma analítica e crítica a história da Luta, dos seus protagonistas e das diferentes frentes, incluindo “a das louras”, o que me permitiu perceber as razões de fundo das sinuosidades do percurso do PAIGC.

A Flora Gomes, cineasta e antigo aluno da Escola Piloto de Conakry, que conviveu de perto com Cabral e que tanto insistiu, apoiou e contribuiu para que elaborássemos estas notas, tendo nós a esperança que elas possam ser úteis para o “filme da sua vida” a que recentemente se abalançou: “Amílcar Cabral”. 

A Clara Schwarz da Silva [, foto à esquerda, S. Martinho do Porto, 21 de agosto de 2010], amiga de primeira hora de Amílcar e Maria Helena, e que procedeu à tradução dos textos “Feux de Brousse et Jachères dans le Cycle Culturel Arachid-Mils” e “À Propôs du Cycle Culturel Arachide-Mils en Guinée Portuguaise” por ele apresentados na Conferência Arachide-Mil, em Bambey, Senegal em 1954 e que gentilmente cedeu as fotografias inéditas em que Amílcar Cabral está presente e que fazem parte da sua coleção pessoal.

Texto: Carlos Schwarz
Novembro de 2012


[ Ver, no sítio do Público, o trabalho de multimédia (7' 35''), da autoria de Joana Bourgard, “Amílcar queria de facto fazer bem àquele povo”, que inclui diversos depoimentos de pessoas que conheceram Cabral, e que ainda estão hoje estão vivas. como a nossa amiga Clara Schwarz, mãe do Pepito e decana do nosso blogue]
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Nota do editor:

sábado, 19 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10966: Amílcar Cabral, um agrónomo antes do seu tempo (Carlos Schwarz, Pepito, eng agr) (Parte I)


Amílcar e Maria Helena recentemente chegados a Bissau


1. Em 11 do corrente, o sítio oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento publicou um notável texto do nosso amigo Pepito sobre o eng agr Amílcar Cabral e o seu pensamento pioneiro, no domínio da agronomia. A meu pedido, ele de imediato me mandou esse texto, para publicação no nosso blogue.  Dividimo-lo em duas partes, a publicar por ocasião dos 40 anos do seu bárbaro e cobarde assassinato em Conacri, em 20 de janeiro de 1973. Cabral e a mulher, Maria Helena, portuguesa, silvicultora,  sua colega do ISA - Instituto Superior de Agronomia, eram amigos da família Silva (Artur Augusto Silva e Clara Schwarz Silva). Há um texto introdutório na página da AD. Aqui vai:  representa o ponto de vista dos nossos amigos, guineenses,  da AD,  não vinculando naturalmente o nosso blogue e os seus editores (LG).



Página oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento


AD - Acção para o Desenvolvimento > Pensar Amílcar Cabral
11 jan112013

Este ano, no dia 20 de Janeiro, assinala-se o 40º aniversário do primeiro assassinato de Cabral, em Conakry.

Depois destes anos todos, os dados são mais claros, conhecendo-se muito melhor os organizadores, os mandantes e os coniventes, já que os executores nunca houve dúvidas sobre eles.

Embora haja quem persista em considerar, ao mesmo nível, a eventualidade da implicação de três organizadores: Spínola, Sekou Touré e alguns dirigentes do PAIGC, cada vez fica mais evidente que o principal organizador foi Spínola, que obteve aí a sua única vitória na vida.

Não foi uma vitória militar, porque ele nunca a teve, mas sim política. O ponto mais forte e simultaneamente mais fraco da Luta, era o da “unidade Guiné-Cabo Verde”. Ele conseguiu jogar essa cartada e mobilizar para a sua causa, militantes politica e mentalmente pouco preparados, predispostos para a traição e com uma ambição desmedida.

No 14 de Novembro, Cabral volta a ser assassinado no golpe de estado dirigido por Nino Vieira. Se durante 3 dias não se falou de PAIGC, já de Cabral então foi o silêncio completo durante longos anos.

Hoje, golpistas e seus mentores, voltam a agitar a bandeira de Amílcar Cabral, dizendo-se seus verdadeiros continuadores. Mas, porque nunca perceberam nem entenderam o pensamento de Cabral, falam do Cabral morto, não das suas ideias, posições políticas e opções ideológicas.

Saberão eles que Cabral recusou, no início da luta, deslocar-se à Argélia após o golpe de estado que derrubou Bem Bela, porque não pactuava com estes métodos?

Conta o jornalista-cronista francês, Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação da Guiné-Bissau, no seu livro de memórias “A ponta da navalha” que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, este respondeu com toda a simplicidade “não, o maior é Cabral”.

Quarenta anos depois, a AD partilha com todos um ensaio sobre o pensamento agronómico de Amílcar Cabral, “Um agrónomo antes do seu tempo”.

É o nosso pequeno contributo. 


2. AMILCAR CABRAL: UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO


Por Carlos Schwarz
(agrónomo)
Novembro
2012






À memória de meu pai Artur [Augusto Silva] que, desde criança
me incentivou, sem que eu me apercebesse,
a seguir os caminhos da agronomia;


À minha mãe Clara [Schwarz] que sempre esteve solidária 
com as minhas opções e nas mãos de quem vi, 
pela primeira vez e ainda nos tempos da ditadura, 
os símbolos do PAIGC; 

À Isabel [Levy Ribeiro] , minha forte e decidida companheira de sempre
nesta caminhada difícil mas extraordinária;


Aos meus filhos Cristina, Ivan e Catarina 
que partilham corajosamente e sem hesitações 
os sobressaltos políticos da vida dos seus pais;

Às minhas netas Sara e Clara com a esperança
de um dia poderem viver tranquilamente
na terra adiada com que Cabral sonhou.



AMILCAR CABRAL, 
UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO [, foto à direita,]


Aos 28 anos de idade, em Setembro de 1952, poucos meses após ter terminado o curso, regressava à terra que o viu nascer, o agrónomo Amílcar Cabral.

No pensamento trazia certamente as palavras que seu pai, Juvenal Cabral, escrevera no livro “Memórias e Reflexões”, quando se instalara em Bissau em 1911, após “ter deixado as rochas nuas da Paria Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo misterioso parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão”. “Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com otimismo a vida neste país.”

Esta visão de seu pai terá influenciado Amílcar Cabral a optar por exercer a sua profissão na Guiné, para além de que, naquela época, a agricultura em Cabo Verde estar votada ao abandono e onde a maior parte dos homens emigrava para o norte (EUA, Portugal e Holanda) à procura da sobrevivência e da vida, tanto mais que outros, desde o final do século XIX, demandavam a Guiné para se dedicarem à agricultura, especialmente cana-de-açúcar, quase sempre associada ao fabrico de aguardente de cana.

Um agrónomo que quisesse de facto exercer a sua profissão, teria de optar pela Guiné, onde tudo podia ser feito, onde tudo estava por fazer e onde a quase totalidade dos habitantes eram pequenos agricultores “indígenas”.

Acompanhava-o a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, que chegando 3 meses depois dele, ia conhecer pela primeira vez a cidade de Bissau, nessa altura uma pequena urbe com muito poucos habitantes, espalhados por duas zonas distintas: de um lado a cidade colonial, dita “civilizada”, que incluía a Fortaleza da Amura, o agora chamado “Bissau Velho”, o porto de Pindjiguiti e a avenida da Republica, hoje Amílcar Cabral. Esta parte estendia-se até ao monumento “Esforço da Raça” e Palácio do Governo, nessa altura ainda em construção; do outro, à volta do centro, localizava-se a parte popular, dita dos “indígenas”, onde vivia maioritariamente a etnia pepel.

Era na parte colonial que moravam os poucos intelectuais presentes no país e se encontravam localizadas as grandes firmas estrangeiras como a NOSOCO e a SCOA, às quais se juntavam as portuguesas (A.C. Gouveia, Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho e Sociedade Comercial Ultramarina, entre outras) e uma enorme plêiade de pequenos comerciantes libaneses como Mamud ElAwar, Aly Souleiman, Michel Ajouz, etc.

No resto do país o comércio de produtos e bens elementares era fundamentalmente assegurado pelos “djilas”, comerciantes ambulantes que percorriam de bicicleta e canoa todo o território.



Fotografia atual da casa onde Cabral e Maria Helena viveram na Granja de Pessubé


A agricultura, então chamada de “indígena”, assentava na produção de arroz para o autoconsumo das comunidades rurais, a qual era praticada há cerca de 3.000 anos e na produção de uma cultura de exportação, a mancarra (amendoim) incentivada pelas empresas estrangeiras que se revezam na sua exportação para a Europa (em bruto ou em óleo). O ciclo da mancarra começa na zona de Buba, incentivada por alemães e percorre um itinerário fácil de identificar pela erosão e degradação dos solos que provoca na Guiné e que passa por Bolama, norte do Oio, Bafatá e Gabú.

Os serviços oficiais de apoio aos agricultores eram praticamente inexistentes ou inoperacionais, confinando-se dentro das infraestruturas técnicas e administrativas que construíam. Não existia nenhum centro de experimentação, de formação de quadros ou de vulgarização.

Este foi o contexto global que se deparou a Cabral à sua chegada a Bissau, ele que vinha para como dizia, “viver o seu tempo e a sua época”, iniciar os desafios políticos da luta pela conquista da independência, defender um desenvolvimento centrado na agricultura e promover a dignidade da população guineense.

Ele e Maria Helena instalam-se na casa da Granja Experimental do Pessubé, atribuída ao seu diretor, na altura situada muito longe do centro de Bissau, num bairro popular da periferia e numa zona isolada e de difícil acesso. A Granja dispunha de cerca de 400 ha onde existia grande número de essências florestais e um pequeno número avulso de algumas espécies frutícolas, como por exemplo cacaueiros.

Nesta altura, quando começa a exercer a sua profissão, Amílcar está convencido de que o processo de independência decorrerá de forma pacífica, nos moldes como se virá a processar nos outros países africanos, pelo que decide começar a construção do novo edifício conceptual agrícola que iria substituir gradualmente o modelo colonial existente.

A Granja de Pessubé vai ser o ponto de partida, para começar a pôr em prática uma estratégia, em três vertentes principais, que ele considera importantes para o desenvolvimento da agricultura guineense:


A primeira, foi a de transformar a Granja de mera unidade de produção de legumes destinados às autoridades politicas e administrativas coloniais da praça e num local de piqueniques e passeios recreativos, num centro de pesquisa agrícola, enquanto instrumento para melhorar e modernizar a produção dos agricultores. 

Cabral concebe e põe em aplicação um programa de experimentação baseado na identificação de técnicas culturais para diferentes espécies agrícolas (compasso, armação do terreno, adubação e época de sementeira), de ensaios de adaptação varietal (arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana, algodão e hortícolas), identificação de pragas e doenças, valorização de variedades locais de certas espécies, como a “juta”, e a introdução de novas espécies como o gergelim (sésamo), soja e girassol.

Começa um trabalho de aproveitamento dos terrenos agrícolas da Granja, utilizando critérios inovadores, em função da natureza dos solos e da sua aptidão, apostando na sua fertilização orgânica com base nas camas dos animais da Granja da Pecuária, na consociação de culturas (mandioca-bananeiras), identificação de pragas e doenças, caracterização das diferentes variedades de cada espécie.

Dá início, pela primeira vez, à publicação de resultados da experimentação e de reflexões sobre a agricultura guineense, criando para isso o “Boletim Informativo” trimestral da Granja Experimental de Pessubé onde, para além da descrição das atividades, propunha a reflexão sobre temas importantes, como a “cultura mecanizada”, o “vírus da roseta da mancarra” e a “cultura da juta”.


Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz [, decana do nosso blogue, à beira dos 98 anos,]na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954. 

[As presentes fotos do arquivo pessoal de Clara Schwarz. O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949.] [LG]


Com uma regularidade notável, foram publicados, desde Novembro de 1952, cinco “Boletins Informativos”. 

A  segunda, foi o de romper os muros internos em que se confinavam os serviços agrícolas, para os aproximar dos agricultores, que deviam ser os seus principais beneficiários.


Para Cabral, mais do que o refrão da época, “a agricultura é a base da economia”, ele defendia claramente que “a agricultura era a própria economia da Guiné” pelo que era importante os serviços aproximarem-se dos pequenos agricultores.

É assim que a Granja de Pessubé passa a executar ensaios e experiências agrícolas nos postos de Bula, Safim, Bigene, Nhacra e Prábis, fazendo aquilo a que hoje em dia se chama de “ensaios em meio camponês”, como forma de testar a sua adaptabilidade às diferentes condições ecológicas e sistemas de cultura dos agricultores.

O projeto FAO de recenseamento agrícola aprovado pelo governo português em 1947 e logo metido na gaveta, onde pernoitou mais de 4 anos, é rapidamente retomado por Cabral, poucos meses depois da sua chegada a Pessubé, o qual estuda, planeia e executa. Para ele, o censo não era apenas um conjunto de quadros e números, mas também a possibilidade de ler, compreender e agir sobre a dinâmica agrícola prevalecente. 

Este trabalho permitiu-lhe definir de forma precisa a contribuição dos diferentes grupos étnicos guineenses para a produção agrícola, servindo ainda hoje, passados 60 anos, para compreender os sistemas de produção e de cultura por eles praticados.

Por outras palavras, o censo fez sair os serviços agrícolas da sua torre de marfim em direção aos campos dos agricultores, confrontando-os com a realidade que deviam servir e possibilitando a procura de soluções para os seus problemas fundamentais e para a modernização agrícola.


A  terceira, foi a da interação da agricultura guineense com as dos países vizinhos da sub-região


Consciente que o reduzido número de quadros técnicos e a constante falta de recursos impediriam que a pesquisa agrícola fosse realizada e trouxesse resultados úteis e práticos aos agricultores, Cabral fomentou a vinda a Pessubé de diversos técnicos, como a missão pedológica francesa de Dakar, especialistas em cana-de-açúcar, entomologistas, etc. 

A participação de Amílcar Cabral na “Conferência internacional Mancarra-Milheto”, realizada em Bembey, Senegal em 1954, onde apresenta a comunicação “Queimadas e pousios no ciclo cultural Mancarra-Milheto”, é uma prova eloquente da sua estratégia de conhecer os resultados experimentais de estações estrangeiras mais antigas, com maior número de técnicos e para marcar a presença e capacidade dos técnicos guineenses nos circuitos científicos da sub-região, aspeto que ele considerava determinante para o período pós-independência.

Internamente, vai começando a criar um núcleo de quadros técnicos que possa garantir a continuidade e reforço destes programas. Deles, realçam-se dois:

(i) Bacar Cassamá, monitor agrícola da Granja, é a primeira pessoa de quem se aproxima e com quem criará relações de amizade e confiança até ao final da sua vida; alto, forte, sério, de riso difícil, com quem terá repetidamente discussões sempre ultrapassadas, porque na sua maneira de ser, a melhor forma de ser honesto era dizer claramente ao “engenheiro” a sua posição e o que pensava; homem que nunca dobrou a coluna, continuou seu amigo e fiel ao PAIGC, mesmo depois do Golpe de Estado de Nino Vieira, quando houve a tentativa de apagar Cabral da história da Guiné-Bissau; acaba por falecer em 2012, esquecido e abandonado por muitos companheiros, com algumas exceções como a de Pedro Pires, ele que foi quem mais tempo acompanhou Cabral; 

(ii) Júlio Mota Almeida, prático agrícola na Granja, que acaba por estar presente na fundação do PAIGC em Bissau, em Setembro de 1956. Morre em Portugal em 1982.


Durante dois anos e meio, Cabral percorre a Guiné de lés-a-lés, observando, estudando e escrevendo sobre o fácies da agricultura guineense. Cite-se o caso do estudo local das queimadas e pousios em Fulacunda. Determinante foi a realização do recenseamento agrícola onde, à frente de uma equipa técnica, contactou agricultores, lideres comunitários, jovens e mulheres, apercebendo-se das diferentes lógicas de pensamento e ação de cada grupo étnico, as suas potencialidades e as fraquezas e, sobretudo, as prioridades mais sentidas na promoção da sua forma de vida. 

Em Março de 1955 sai de Bissau num avião da Air France, por imposição das autoridades políticas governamentais coloniais, que o acusam de exercer atividades conspiratórias pela independência da Guiné, o que efetivamente correspondia à verdade, mas não lhes dava esse direito. Autorizam-no a vir anualmente a Bissau, o que ele aproveita em 1956, para colaborar com outros nacionalistas na fundação do PAIGC, num dia de Setembro que mais tarde acaba por ser arbitrariamente fixado como sendo o dia 19. Também em 1959, já com 35 anos de idade, vem a Bissau no ano do Massacre do porto de Pindjiguiti, momento determinante para Cabral perceber que a conquista da independência teria de ser obtida pela luta armada de longa duração e não da forma pacífica pela qual ele sempre pugnou.

Desde que foi expulso da Guiné, Cabral continuou a desenvolver a sua atividade agronómica em Portugal e Angola, dedicando-se sempre à reflexão sobre a agricultura guineense, salientando-se a publicação na revista AGROS, da Associação de Estudantes de Agronomia, do seu texto: “A agricultura na Guiné, algumas notas sobre as suas características e problemas fundamentais”.

Em 1960, estimulado pela independência da Guiné-Conakry e do NÃO à França dado em 1958, decide estabelecer-se definitivamente em Conakry, certo que era o local ideal tendo em consideração a forma como o Senegal tinha decidido aceder à independência. As vicissitudes que a guerrilha passou neste país durante os 11 anos de Luta, veio mostrar que a sua visão estava correta.

Poucos anos antes do seu assassinato, em 1972, consciente de que a vitória militar era um dado adquirido e surgiria a curto prazo, começa a dedicar mais do seu tempo à conceção do futuro Estado da Guiné-Bissau e aí volta a agricultura a estar presente no futuro programa. A vivência em Conakry permitira-lhe identificar os reais perigos com que o novo país se iria confrontar no pós-independência. Um deles são os “atrativos” que a cidade de Bissau iria exercer na cúpula dirigente dos guerrilheiros, a tendência para a intriga e complot político e, finalmente, o descanso do guerreiro. O outro, era o do inevitável esquecimento e afastamento gradual dos dirigentes em relação às populações que haviam participado na Luta. 

Uma das ideias que Cabral estava a desenvolver quando é assassinado, era o da criação dos diferentes Ministérios governamentais, um em cada uma das capitais regionais do país. Mantinha os dirigentes perto dos cidadãos, empurrava-os para resolverem os problemas concretos das populações e diminuía o risco do “diz que diz”, da conflitualidade estéril e da intriga política. É o retomar da tese de agrónomo de que os técnicos e decisores não se devem fechar entre portas, mas estar perto dos beneficiários do seu trabalho.

(Continua)

Texto e fotos;  © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados