segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19126: Notas de leitura (1113): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,

O tempo passa e cada vez mais me convenço que estamos perante um segredo de polichinelo que se intenta manter com vivíssima matéria de investigação. Um complô, está demonstrado, única e exclusivamente constituído por guineenses. Há informações de que aqueles últimos meses que precedem o assassínio decorrem numa atmosfera irrespirável em Conacri, os guineenses já não se sentam à mesa com os cabo-verdianos. Pôs-se em andamento o complô, são presos todos os cabo-verdianos e ameaçados de fuzilamento. 

Uma testemunha privilegiada, Oscar Oramas, embaixador de Cuba na Guiné Conacri, assiste à conversa dos sublevados com Sékou Touré, poucas horas depois do assassínio, justificam-se porque não querem continuar a ser mandados por cabo-verdianos. Todos os fuzilados serão guineenses, sem exceção. Desapareceram comodamente todos os documentos das comissões de inquérito. 

Anos depois, diferentes dirigentes de topo do PAIGC queixavam-se dos excessos cometidos. Deu jeito, nos tempos subsequentes, atribuir-se o assassínio a Spínola e à PIDE/DGS, como a história se faz de provas factuais e da consulta de fontes, jamais se encontrou qualquer documento comprometedor. Mas nos tempos que corre, e em nome dos mitos, todos estes acontecimentos aparecem atravessados por fantasmas para contornar habilmente irmãos desavindos, de duas parcelas de África com coisas em comum e muitíssimas outras em atrito.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1)

Beja Santos

O nome do jornalista José Pedro Castanheira está associado a dois trabalhos de reportagem de excecional valor para o período da guerra da Guiné e do fim do Estado Novo. Tendo dado conta que se aproximavam os 20 anos da efeméride do assassinato de Amílcar Cabral, obteve meios para uma investigação aprofundada, falou com alguns protagonistas de maior peso, a viúva de Cabral, Ana Maria de Sá Cabral, António de Spínola, Luís Cabral, entre outros, visitou o local do crime, debruçou-se sobre a documentação existente nos arquivos da PIDE sobre tentativas de eliminar Amílcar Cabral.
Esta reportagem será a catapulta de um livro que foi acolhido muitíssimo bem em Portugal e vários países.

A outra grande reportagem que revela o talento jornalístico de José Pedro Castanheira foi a reunião de diferentes protagonistas em Londres que participaram no encontro secreto de Março de 1974, do lado português estava o então cônsul em Milão, o futuro embaixador José Manuel Vilas Boas.

Para surpresa de muita boa gente, em 1994, ficava-se a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros, de Marcello Caetano, Rui Patrício, diligenciava negociações que levassem ao acordo de paz e ao reconhecimento da República da Guiné-Bissau, estava já imparável o processo de reconhecimento na ONU, o que tornaria ainda mais calamitosa a situação portuguesa, adensava-se a hipótese de uma intervenção militar da Organização da Unidade Africana.

António de Spínola

A reportagem de Castanheira aprofunda quatro pistas para a compreensão do atentado:

(i) um golpe de Estado de uma fação guineense;

(ii) a cumplicidade de Sékou Touré;

(iii) uma operação desencadeada por Spínola;

(iv) ou uma iniciativa da PIDE.

Inicia-se a reportagem com os acontecimentos que terão ocorrido cerca das 23,00h de 20 de Janeiro de 1973, quando Cabral e a mulher regressavam de uma receção em Conacri na embaixada da Polónia. Interpelado por um grupo onde a figura proeminente era Inocêncio Kani, um ex-comandante da Marinha do PAIGC, Cabral não deixa que o amarrem, Kani disparou um tiro à queima-roupa, Cabral pretende ainda conversar com os sublevados, alguém de nome Bacar assesta-lhe uma curta rajada que o atinge na cabeça, Cabral morre.

Um segundo grupo liderado pelo chefe dos guardas, Mamadu N’Diaye, aprisiona Aristides Pereira, que trabalhava numa casa próxima, e metem-no numa vedeta, barbaramente amarrado.

Um terceiro e último grupo, chefiado por João Tomás, apodera-se da prisão do partido, conhecida por Montanha, e libertam detidos que faziam parte do complô. Contam com a conivência dos guardas, e detêm um número elevadíssimo de dirigentes que metem na prisão, advertindo-os que iam ser fuzilados no dia seguinte.

Os revoltosos vão dar conhecimento a Sékou Touré, este não dá cobertura ao assassínio, manda prender os conspiradores, mais adiante ouviremos as recordações de um participante privilegiado, Oscar Oramas, embaixador de Cuba em Conacri, será o primeiro diplomata a ver o corpo de Cabral abatido, telefonará a Sékou Touré, assistirá à reunião deste com os sublevados.


Ana Maria Cabral na Função Amílcar Cabral na Cidade da Praia 


Seguem-se dois processos misteriosos, duas comissões de inquérito de que jamais conheceremos os resultados.

Uma comissão de inquérito internacional de que farão parte, entre outros, Agostinho Neto e Joaquim Chissano. As autoridades guineenses nunca deixaram vir à luz os resultados do inquérito. Do lado do PAIGC, na medida em que Sékou Touré entregou os revoltosos à nova direção do partido, forma-se uma comissão de inquérito que seria presidida por Fidélis Almada e onde estariam nomes como Otto Schacht, António Buscardini e José Araújo. Também não se virá a conhecer a documentação constante às inquirições, os sublevados, em número que nunca se pôde quantificar com rigor, foram divididos em grupos, e executados. Pedro Pires garantiu ter assistido aos fuzilamentos na região Sul. Castanheira fez perguntas a vários dirigentes. Disse-lhes Aristides Pereira:

“Nunca consegui ter uma ideia exata dos fuzilados. Pedi ao Fidélis uma lista, mas nunca me chegou às mãos”.

Fidélis confirma que o relatório da comissão não fornece números:

“Creio que se provou a culpa de 71, mas nem todos foram executados". 

Fernando Baginha fala em 110. Luís Cabral confessa que não houve um interrogatório sereno, Carlos Correia admite que “tenha havido maldade em algumas denúncias”.

A cumplicidade de Sékou Touré é outro mistério. Vários investigadores avaliam um elevado grau de indecisão quando se dá o assassínio, outros admitem que ele recebeu prontamente os sublevados temendo que se tratava de algo parecido com a invasão de Conacri, de 22 de Novembro de 1970. Não são de fiar as declarações de Senghor de que a morte de Cabral foi instigada por Sékou Touré, eram adversários figadais. Senghor afirmava ter provas de que a morte de Cabral fora apoiado por Touré, mas nunca mostrou tais provas.

Aristides Pereira foi sempre reservado sobre a participação guineense no complô, mas na longa e importante entrevista que concedeu ao jornalista José Vicente Lopes, deixou bem claro que Osvaldo estaria envolvido na trama e não excluiu o apoio expetante de Nino Vieira. Morto Cabral, era preciso camuflar a querela multisecular entre cabo-verdianos e guineenses.

O alibi foi o de que por detrás do complô exclusivamente guineense estava a manipulação de um braço longo, a DGS, dentro de um plano maquinado por Spínola. Todas as investigações nesta direção encontram prateleiras vazias, nem um só papel no arquivo da DGS, todas as maquinações para matar Cabral precedem Spínola na Guiné e Fragoso Allas na direção da PIDE em Bissau. Spínola adiantará a Castanheira argumentos de uma tremenda ingenuidade. Esperava que a invasão de Conacri, desenhada por Alpoim Calvão, trouxesse um Amílcar Cabral sequestrado que aceitaria de bom grado fazer parte do governo da Guiné.

Também sem exibir provas, Spínola diz ter recebido um convite de Amílcar Cabral para se encontrar com ele em Bissau, em Outubro de 1972. Alega que esta proposta lhe chegou por via de Fragoso Allas, Marcello Caetano disse-lhe redondamente que não. Na sua entrevista com o Castanheira diz igualmente que não se lembra do nome de quem era o delegado de confiança de Amílcar Cabral. Enfim, há muita gente a abusar do diz-se e consta.

(Continua)
____________

Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Uma nota de leitura oportuna...

Dizem e escrevem-se tantas "asneiras, enormidades e falsidades" nas redes sociais: "fake news", notícias falsas deliberadamente fabricadas, "bocas", provocações, mentiras, etc.... As pessoas não são intelectualemente honestas, não se preocupam com a verdade, importa-lhes apenas "lever a água ao seu moinho", confirmar as suas "teses", reforçar as suas "opiniões", contabilizar os "likes", conhexer os "amigos" e os "inimigos"...

É por isso que o trabalho de investigação independente, de jornalistas como o José Pedro Castanheira (, da grande escola de jornalismo do "Expresso", que já não existe mais), é "incómodo"...

Neste caso, e conforme as nossas "simpatias", "cumplicidades", "pré-conceitos" e "vieses político-ideológicos", é muito mais fácil, cómodo, confortável... arranjar bodes expiatórios ou apontar os "maus da fita": Spínola, os tugas, a PIDE/DGS; Sékou Touré, o KGB; o 'Nino' Vieira e o Osvaldo Vieira; os "tarrafalistas", etc., etc.

Nunca saberemos a verdade, pelo menos tão cedo (, nas nossas vidas...), nem sequer a resposta à pergunta do jornalista: Quem mandou matar Amílcar Cabral ?... Sabemos quem foram os miseráveis carrascos, mas não os "mandantes"... De resto, como tem acontecido em muitos crimes políticos ou religiosos na história...

Na minha opinião, Amílcar Cabral criou, metaforicamente falando, um ninho de víboras, e algumas delas viraram-se contra o criador... Amílcar Cabral, afinal, não conhecai assim tão bem os guineenses, os cabo-verdianos e os "tugas"...

Confesso que lamento ter que chegar a esta conclusão, eu que até admirava Amílcar Cabral quando tive que ir combatê-lo de armas na mão.... Toda a violência gera violência, e a violência absoluta gera violência absolutamente... Amílcar Cabral podia ter sido o nosso Nelson Mandela lusófono... Infelizmente preferiu a abrir a "caixinha de Pandora"... Leu ou escutou os gurus errados... Mas quantos crimes não se têm cometido em nome dos nossos gurus ? Jesus Cristo, Maomé, Buda, Lutero, Marx, Lenine...

PS - Conheci o Oscar Oramas em 2008... Era um homem afável, mas que sabia demais... Formatado pelo castrismo, nunca se iria abriu com os "tugas"... E se a ocasião era histórica!... Àss vezes tenho a sensação de que estes homens, poderosos, dirigentes políticos, generais, embaixadores, etc., até sabem de menos... e não passam de uns "pobres diabos"... Diz-se que toda a gente, em Conacrim sabia da "traição" em curso, no seio do PAIGC. Só o Amílca Cabral, tal com os maridos cornudos, é que não sabia de nada... As "brancas" do Spínola também são patéticas...A falta de lucidez e de coragem de Marcelo Caetano, idem, aspas... É nos grandes momentos de viragem, históricos, que confiamos nos líderes... Demais, confiamos demais, esperamos demais...A culpa não é tanto deles, é sobretudo nossa que temos necessidade de nos projetar neles... Não são os cães que são cães, somos nós, seres humanos, capazes da mais infamante "fidelidade canina" a par da maior "heroicidade gratuita", desde que sintamos impunidade pelos nossos atos, como aconteceu aos "carrascos" de Amílcar Cabral...

antonio graça de abreu disse...

Às vezes, muito raramente, gosto destas abordagens obtusas do Mário Beja Santos.
Explica agora, por vias sinuosas, como as NT, após o assassínio de Amílcar Cabral, iam ser "derrotadas" militarmente pelo incipiente exército do PAIGC, que tinha acabado de abater o seu chefe.
Abraço,

António Graça de Abreu

Manuel Luís Lomba disse...

Este tema tem muita relação com os bissau-guineenses e a sua historiografia nacional e muito pouco respeita a nós,sobretudo aos ex-combatentes da sua guerra, que culminou com a anunciada transferência do poder de uma ditadura "ocidentalista" para uma ditadura marxista-leninista, à moda terceiromundista. Meto Salazar e Cabral no mesmo saco, como responsáveis pelas minhas (nossas) tormentas de sangue suor e lágrimas, passadas nessa terra verde e vermelha - tão bela e de tão boa gente!
Alguém sentenciou que os revolucionários acabavam devorados pelas suas revoluções. Tem sido regra - demonstrar que a Sociedade é um ecosistema natural e que as revoluções e as guerras são atentados à Natureza. "Não precisa de matar ninguém, natureza faz" - proclamava o cherno de Buruntuma...
A quimera da união política da Guiné e Cabo Verde, da autoria de Cabral, representa um retrocesso histórico,à sua cessação em 1879, da autoria do progressista Fontes Pereira de Melo.
Amílcar Cabral já não tinha mão na sua revolução - já não era nem a sua "alma" nem o seu comandante em chefe; era o seu diplomata, junto das chancelarias e dos fóruns internacionais. A sua revolução estava nas mãos da troika Luís Cabral, Aristides Pereira e Pedro Pires, controlada pelo "italiano" Buscardini e pelo "alemão" Otto Schacht.
Há três inquéritos à sua morte no segredo dos deuses: o da Guiné-Conacri, o internacional e o do PAIGC.
A factura da sua morte foi paga por guineenses, exclusivamente - diz-se que pelo preço de 200 fuzilamentos!
Osvaldo Vieira era o seu Delfim no Conselho Superior de Luta, era o seu "herdeiro político" e foi aniquilado no Boé.
O seu primo Nino Vieira só não foi apanhado na primeira onda das represálias, porque o Ansumane Mané o protegeu com o seu bigrupo.
Pedro Pires, um dinossauro desses acontecimentos (que se notabilizou como estadista) saberá coisas, que talvez não possa dizer.
Era o comissário político (controleiro) de Nino Vieira - e assistiu à maioria dos fuzilamentos...
Manuel Luís Lomba