quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19134: Historiografia da presença portuguesa em África (134): Relatório referente ao uso e costumes dos indígenas da Região de Farim (Mário Beja Santos)

Farim
Imagem extraída do site Trip Suggest, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
A governação de Vellez Caroço está relativamente bem documentada, desde a atividade de operações militares, às ideias de desenvolvimento e fomento, mandou abrir estradas, criar bairros, escolas, etc.

Armando Tavares da Silva refere no seu livro, a páginas 795, que a área da justiça mereceu a atenção do governador, dizendo “Para proporcionar a sua regular aplicação no meio indígena, são criados, nas sedes de circunscrição, Tribunais Indígenas, presididos pelo respetivo administrador, assistido por dois assessores indígenas com voto consultivo” e em nota de rodapé refere que "a Junta Consultiva de Justiça Indígena funcionava em Bolama, composta pelos secretários dos negócios indígenas, pelos dois inspetores de Circunscrição Civil e pelo Delegado do Procurador da República na Comarca da capital.”.

Assim sendo, ganha claridade este relatório do administrador da circunscrição de Farim quanto aos intentos e argumentos utilizados nas respostas.

Um abraço do
Mário


Relatório referente ao uso e costumes dos indígenas da região de Farim

Beja Santos

Este relatório é assinado por Caetano Barbosa, Administrador da Circunscrição Civil de Farim e tem a data de 20 de dezembro de 1924. Está nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa. Diz responder à Circular n.º 6 desse ano, procurei no Boletim Oficial, nada encontrei, seguramente, e tendo em consideração o teor da resposta, Bolama insistia em saber as formas de aplicação da justiça e para isso solicitava ao Administrador elementos sobre organização familiar, poder paternal, entre outros elementos, centrando-se nas práticas da justiça.

Começa por dizer que a população de Farim é constituída pelas raças Fula, Mandinga e Balanta, havendo ainda um pequeno número de Brames e Futa-Fulas, imigrantes. Os homens são polígamos. O casamento consiste em um ajuste ou contrato entre o grande (pai, tio ou outro membro da família, reconhecido como venerável) da mulher e o grande do homem. O Mandinga contrata o casamento da sua filha ainda criança de peito, e quando o faz já em idade casadoira ela não é consultada. O nubente tem que trabalhar e dar pequenos presentes até que a rapariga tenha idade, e só então dá o verdadeiro presente de casamento para receber a sua mulher, que muitas vezes leva filhos. O tio, irmão do pai da nubente, tem sempre conhecimento do ajuste, é ele que trata do casamento.

O Fula e o Futa-Fula imitam hoje o Mandinga, o contrato de casamento é muito semelhante ao do Mandinga. Os Balantas e Brames nunca impõem às filhas determinado marido, podendo contudo dar indicações, mas elas podem recusar.

Falando do poder paternal, direitos sobre filhos legítimos ou legitimados, no caso dos Mandingas e Fulas, o relator observa que só o pai tem direito sobre os filhos, a mãe não tem direito mesmo pela morte do seu marido. São legitimados os filhos de mãe solteira cuja mãe venha a casar com o pai dos seus filhos ou com outro qualquer e os filhos de pais que não tenham até então pago os presentes mas que sejam os seus grandes a fazê-lo.

Filhos ilegítimos são aqueles de mãe solteira ou de pais casados e de viúva que a família não tenha recebido os presentes.

Entre o Balanta e o Brame, as mulheres solteiras que tenham filhos deixam-nos em casa dos pais delas quando vão casar e o marido nunca terá direitos sobre estes filhos anteriores.

Abordando a questão da propriedade, o Administrador afirma não haver verdadeiro regime de propriedade entre os Mandingas, mas nas povoações onde vivem é-lhes reconhecido, sobre os lugares de lavor, direitos que passam para os herdeiros. Perdem esses direitos quando se mudam para outra povoação. Consideram as mulheres e os filhos como propriedade.

Todo este vasto introito precede a análise da justiça nativa e uma possível adequação do Código Penal então em vigor. Diz o relator que quase todos os delitos entre indígenas eram castigados pelos régulos, chefes e grandes, e por meio de pesadas multas ou confiscação dos bens. De acordo com as observações do Administrador, as penalidades dos factos criminosos revertiam para o bolso dos régulos e dos gerentes, era frequente o confisco dos bens. Diz mesmo que o indígena prefere pagar grandes multas que ir para a prisão, aceita fazer trabalho e não pagar nada. E escreve:  

“O código que se pretende fazer é de uma necessidade única para a boa administração da justiça, uniformizando as resoluções das questões indígenas em todas as circunscrições. Vou enumerando pelos artigos do nosso Código Penal os delitos devido ao seu grau de civilização e indicando a pena que se deve ser aplicada. Nem todos os crimes que entre nós correspondam a pena maior podem ser classificados assim para com os indígenas. A todos os crimes não enumerados a seguir, devem ser aplicadas as penas do nosso código penal”.

E fala nos casos de prisão correcional que se pode saldar não em prisão propriamente dita mas em trabalho para o Governo. É um documento que concita uma enorme curiosidade pois vai referindo sucessivos artigos e parágrafos do Código Penal exemplificando situações de pena de prisão para grandes ou chefes de morança que prendam ou mandem prender sem ter poderes para o fazer, régulos que tenham retido alguém preso empregando violência ou ameaças, as autoridades indígenas que tenham cometido suborno e corrupção, os particulares que tenham sujeito a cativeiro algum homem livre, espraia-se por três longas e espessas páginas e termina dizendo que “para resolução de questões entre indígenas deve haver um tribunal composto de três membros que serão escolhidos entre os grandes de cada raça, isto é, para uma questão entre maometanos serão nomeados os membros da mesma seita, e assim com as outras raças. As audiências devem ser quinzenais e com assistência do administrador. As nomeações ou escolha de membros pode ser feita por cada questão, para evitar corrupções. Julgada uma causa, se no fim de trinta dias não for contestada, é considerada definitiva. Para questões contestadas deverá haver um tribunal composto de régulos ou chefes. As questões serão registadas em livro próprio. Os crimes devem ser julgados sumariamente pelo Administrador, havendo apenas um livro para registo. A questão mais difícil será quanto aos grumetes ou indígenas que se dizem civilizados e que querem ser tratados hoje como civilizados, mas para isso creio que há só uma forma de os qualificar que é considerar a todos que não sabem ler nem escrever a nossa língua como indígenas. É tudo quanto me oferece informar sobre o assunto”.

Documento curioso, devia merecer a atenção de um historiador, tratar-se-á possivelmente do propósito de um governador em querer ouvir os seus administradores para que fossem adotados critérios de aplicação de justiça, à luz do código penal existente.


Comércio de Farim
Imagem extraída do site Trip Suggest, com a devida vénia 
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19067: Historiografia da presença portuguesa em África (132): Um administrador de Fulacunda reticente às ordens do Governador Carvalho Viegas, 1935 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Essa de os simples administradores fazerem de juizes, de advogados, ter de inventar manhas para punir os crimes, desde a palmatória até trabalhos e serviços para o Estado...devia ser uma seca, que só mesmo para quem não tinha mais nada em que pensar.