sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19137: Notas de leitura (1114): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (57) (Mário Beja Santos)

Fachada principal do Cineteatro de Bolama

Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2018:

Queridos amigos,
A extensão deste texto decorre da substância que encerra uma resposta do gerente de Bissau para a Administração do BNU em Lisboa quanto à possibilidade de entendimento com um conjunto de grandes exportadores guineenses. Nada conheço da epistolografia que deixe tão claro, à época a que se reporta o documento, a natureza de uma concorrência quase demencial para garantir a compra e exportação da mancarra, é uma denúncia do que no mercado, como noutras facetas da vida, se chama o atropelamento sem regras. Era assim o negócio da mancarra, a guerra sem quartel em que as casas exportadoras pretendiam cilindrar a Filial do BNU, e a CUF não era inocente.
Outro tema, que se tornará recorrente, versava a criação de uma Dependência do BNU em Bafatá, à data de independência o BNU envidava esforços para ter uma nova sede em Bissau e criar uma Dependência em Bafatá, mas não aconteceu.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (57)

Beja Santos

No impressionante acervo avulso referente à correspondência trocada entre a Filial de Bissau e a sede do BNU há documentos de irrecusável leitura, uns são apontamentos do quotidiano, outros são narrativas bem detalhadas de negócios guineenses, a historiografia, estamos seguros, irá agradecer estes papéis que revelam dados económico-financeiros, usos e costumes, evolução de mentalidades.
Alguns exemplos.

Em 29 de janeiro de 1948, o gerente Virgolino Pimenta escreve para o Conselho Administrativo:
“Na Filial de Bissau há uma geleira do tipo antigo que tem muitos anos de serviço e não satisfaz, mesmo usando-se nela gelo.
Além disso, tem frestas por onde entram baratas que, diariamente, inutilizam os alimentos guardados e terá que ser posta fora de uso.
À semelhança do que tem sido utilizado para outras Dependências, pedia a V. Exªs. o favor de ser autorizada a compra de uma geleira, tipo médio, funcionando a petróleo”. E nada como reproduzir o Frigidaire Refrigerator Model DI-7. Alguém na Administração escreveu, a lápis e com muita elegância: “A verba aprovada para a aquisição de móveis e utensílios no exercício de 1948 é de Esc.
20.000. Ainda não foi gasta qualquer importância”.


Retomemos os móveis e utensílios. A empresa Meiolândia, com escritórios na Rua do Telhal e com exposição na Av. Duque d’Ávila, 30, tudo em Lisboa, envia em 2 de janeiro de 1950 uma carta com proposta para o fornecimento de mobílias, tudo destinado a Bissau: uma mobília de casa de jantar, em castanho, tipo holandês, toda maciça, composta de dois móveis, uma cristaleira, uma mesa, dez cadeiras e dois fauteuils, observando que é igual à que se forneceu anteriormente para a Filial da Praia, leva o mesmo esmerado acabamento; uma mobília de casa de jantar, tipo moderno, em mogno brasileiro, toda maciça, polida, composta de dois móveis, uma cristaleira, uma mesa, seis cadeiras e dois fauteuils; um outro conjunto de mobília semelhante ao anterior, em vez de onze peças este tem doze.
E faz-se a seguinte observação:
“Apesar das mobílias em mogno brasileiro serem de boa construção, aconselhamos a do tipo holandês por ser de um tipo de fabricação mais forte e por conseguinte de maior duração”.

Em 1952 surge a primeira referência ao anseio de haver uma delegação do BNU em Bafatá. É o que podemos inferir de um documento dirigido ao gerente do BNU em Bissau proveniente da Junta Local de Bafatá, estamos em 16 de junho:
“I – A Vila de Bafatá, depois de a cidade de Bissau, é um dos centros da Província com maior movimento comercial, computando-se em muitos milhares de contos o valor de mercadorias importadas pela Alfândega e encomendas postais para sortimento dos estabelecimentos comerciais das áreas de Bafatá e Gabu.
II – Daí o grande movimento de letras que obriga os comerciantes interessados a deslocarem-se grandes distâncias para ir a Bissau satisfazer os seus compromissos com o BNU, com prejuízos resultantes da sua demora nessa cidade, havendo comerciantes que chegam até a fechar os seus estabelecimentos durante esta ausência.
III – Pelas razões acima apontadas, na sessão ordinária desta Junta Local, reunida no dia 7 do corrente mês, se deliberou oficiar a V. Exª. pedindo os bons ofícios no sentido de ser estabelecido em Bafatá um correspondente desse Banco.
IV – Esta medida, uma vez tomada, representará um grande melhoramento na vida económica de Bafatá – vila hoje mais do que nunca em franco progresso – e resolverá as justas aspirações dos comerciantes desta área e da do Gabu.”

Resta esclarecer que à volta de 25 de abril tudo se encaminhava para construir uma dependência do BNU em Bafatá.

Terá havido exposições de algumas das principais firmas guineenses para a sede do BNU que mereceu do gerente da Filial uma peça de indiscutível interesse, com data de 18 de janeiro de 1952, conforme se pode ler:
“Quanto à sugestão feita pelos epigrafados de procurarmos um entendimento com as grandes firmas exportadoras desta Província de modo a fazerem uma boa parte das suas operações através do nosso Banco, é providência que só V. Ex.ª poderia tomar, pois todas elas têm aí as sedes ou as suas administrações ou donos, mas estamos de antemão convencidos de que se isso se diligenciasse, todas essas casas procurariam pôr-se à margem tão airosamente como aquela (refere-se a Barbosas & Ct.ª) o fez, porque todas elas têm mais ou menos essas íntimas ligações com bancos da Metrópole, pois António Silva Gouveia, Lda. trabalha com o Banco José Henriques Totta, Lda., Ed. Guedes, Lda., com o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa e a Nosoco com o último também, restando apenas a Sociedade Comercial Ultramarina que opera connosco, porque é nossa, mas também nenhuma intervenção tendo nós na sua importação, pois tudo aí é pago com a parte livre das suas exportações.
Nem acreditamos que estejam essas casas dispostas a isso e o que talvez pretendem é tirar-nos mais do que já têm tirado com a ilegal concorrência que nos têm feito na transferência de fundos para a Metrópole, como largamente o poderíamos demonstrar se nos fosse dado examinarmos as suas escritas.
Cremos mesmo que seja esse o seu único objectivo, porque há três anos que eles certamente vêm sentido a nossa acção, pois não deixariam de anotar desde que nenhuma transferência nestes três anos a Filial recusou e que consequentemente eles deixaram de fazer, mas é que, ao contrário do que supõe, não é desse financiamento que temos feito ao pequeno comércio exportador que nos têm advindo as coberturas que nos permitem dar todas essas transferências para que ninguém tenha de recorrer aos nossos concorrentes.

Se assim não é, como se explica então nunca terem feito tal sugestão anteriormente, se é certo nos anos 1947 a 1949 o financiamento feito a esses pequenos exportadores foi muito maior que de 1950 a 1952, pois só Aly Souleiman & Cª. levantava 4.000 contos anualmente?
É que até 1949 as coberturas estavam sempre a escassear e eles todos eram mais Bancos do que nós pois davam todo o dinheiro necessário e desnecessário para as campanhas dos produtos, faziam todas as transferências, gratuitamente ou não, conforme as necessidades de ocasião, etc.
A ganância impede-os de ver bem, pois se se limitassem a compulsar exportação, logo verificariam também que verdadeiramente desses pequenos comerciantes só um se pode classificar de exportador, que é Aly Souleiman & Cª, pois Mário Lima e A. V. d’Oliveira e Cª. têm vendido a sua mancarra à União Fabril ou à Casa Gouveia, que é a mesma coisa, e MAmud Elawar & Cª. Lda vende-a à Sociedade Comercial Ultramarina.
E que mancarra pôde Aly Souleiman & Cª. comprar com os 2.500 contos com que os financiámos no corrente ano?
Apenas 1000 toneladas, que nem chegam a 3% das 34.000 que os cinco grandes exportadores compraram e já exportaram!
E no ano anterior, como V. Exª. sabe, o financiamento a Aly Souleiman & Cª. foi apenas de 1.500 contos, que apesar do preço baixo de então para mais não chegou.

A concorrência séria de que se queixam, se existe, não lhes é feita por nós e sim pelos seus próprios clientes, os aqui chamados ‘intermediários’ e a que os Srs. Barbosas classificam agora de ‘agentes’, os tais a quem o grande comércio abona dinheiro para a compra da mancarra.
Concorrência, sim, estão os Srs. Barbosas agora a fazer aos seus colegas grandes exportadores como aos pequenos comerciantes, com os postos de compra que estão a abrir por toda a Província, não para terem agentes de compras como dizem, mas sim para comprarem directamente ao indígena, pagando a estes preços que vão até aos fixados para os intermediários.
Nós temos procurado neutralizar, em tudo ao nosso alcance, a concorrência que esses grandes comerciantes fazem ao nosso Banco, mas com o financiamento de Aly Souleiman & Cª. só temos tido em vista a cobrança do nosso avultado crédito.
Ora, como V.Ex.ª vê, para se chegar ao entendimento de que os Srs. Barbosas & Ctª. se fizeram porta-voz, ter-se-ia também de ponderar a situação que nos adviria se aqueles clientes, deixando de ser financiados, não nos pudessem pagar a dívida e sem considerar que ganhamos algumas centenas de contos, anualmente, com eles.
E os Srs. Barbosas, como todos os outros grandes exportadores, sabem disso perfeitamente, mas fingem não compreendê-lo e querem talvez, se a um entendimento se chegasse, cumpri-lo como o têm feito com os seus colegas no chamado ‘acordo da mancarra’, em que todos os anos se acusam mutuamente e não obstante por vezes ser possível obter a prova das infracções cometidas, foge-se a isso porque convém que o acordo se mantenha…

Para que melhor se possa compreender a mentalidade e moralidade destes senhores grandes exportadores, permita-me V. Ex.ª relembrar o que o nosso antecessor, que tendo aqui vivido cerca de doze anos, os pôde conhecer bem, pensava e dizia a respeito deles a páginas 1 e 2 da sua informação de 4 de abril de 1949 para a Repartição de Estudos Económicos:
‘A vida da colónia está circunscrita a dois círculos principais:
Tempo de ‘campanha’ cuja actividade maior vai de fins de Dezembro a fins de Abril. Em fins de Dezembro, perdoe V. Ex.ª a classificação, tudo perde a cabeça com o início da campanha da mancarra. Conhecem-se as cotações por que será paga e são essas as cotações que servem de base para a cotação local. Mas ninguém quer saber delas e todos os intermediários só querem que se lhes pague a mancarra por preços desproporcionados face aquela cotação-base.
E assim perturbam os mercados, não hesitando mesmo em perturbar o indígena que para as suas vendas aos grandes compradores, na esperança de ter o ‘Tercio gaudet’ nesta luta por maiores preços. Em face disto, que se pode julgar?
Julga-se que o intermediário tem capital próprio para fazer vingar a sua intenção de elevar preços, brincando, por assim dizer, com as grandes casas que o têm.
Mas não, salvo poucas excepções, o intermediário não tem capital.
Mal chega a ‘abertura da campanha’, vai às grandes casas e pede dinheiro emprestado para comprar a mancarra e dá, como garantia, regra geral, um ‘vale’.

Munido de dinheiro alheio, por vezes estabelecido ao lado ou em frente de quem lho emprestou, mas sempre agindo na área da acção deste, entra logo a fazer-lhe concorrência e a procurar elevar preços na compra directa ao indígena!
Não sei se, em qualquer outra parte do mundo, haverá maneira semelhante de negociar pois não há inteligência que compreenda que os que têm capital o dêem aos que o não têm para estes lhes fazerem temida concorrência e estragar preços e negócios!
Tem sido assim.
No ano de 1948 e no corrente, já houve uma certa reacção dos capitalistas mas ainda não é suficiente para terminar tão extraordinário estado de coisas. Mas não é ainda a suficiente e a razão de não o ser está em que cada um deles ainda não viu inteligentemente que estará na união leal e honesta de todos a inutilização do velho e mau sistema do qual se lhe tem resultado e resultam prejuízos de ordem vária.
Tem sido a Sociedade Comercial Ultramarina o maior campeão para a moralização de hábitos de bem comerciar. Algo se tem conseguido, a Sociedade põe nos acordos feitos lealdade e honestidade, não se sabe bem se os outros assim actuam.
Está-lhes na massa do sangue furar todos os acordos."

O sucessor de Virgolino Pimenta termina o seu documento dizendo:
“V. Ex.ª resolverá como o seu superior quiser e entender, mas em nossa opinião não há que fazer entendimentos com essa gente, antes nos devemos manter firmes até que, já que se sentem prejudicados, se vejam forçados a vir pedir esse entendimento mas em bases leais e seguras e sem que pretendam com os seus manejos obstar-nos à realização de operações legais, que estão dentro da nossa esfera de acção e são necessárias à defesa dos nossos legítimos interesses.
Aqui, os nossos concorrentes são muito poderosos mas também vamos vencendo porque a razão continua a nosso lado e a atestá-lo também a curva ascendente dos nossos resultados.
Felizmente que também temos um grande aliado que é a lei que obriga à entrega ao Estado de 50% das suas cambiais da exportação, porque se não fora isso não sabemos a que proporções a concorrência desses senhores grandes exportadores não nos teria já reduzido!”

(Continua)

Imagem extraída do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
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Notas do editor

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