Dois antigos alferes da CART 1690: Alfredo Reis (à esquerda) e Domingos Maçariço (à direita). 24 de julho de 2010: recordando, 42 anos depois, o ataque ao destacamento de
Banjara.
Foto (e legenda): © Alfredo Reis (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira , à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita. Todos eles feridos em combate, com exceção do Moreira. No livro "Cabra cega" são respetivamente Zé Pedro, Aprígio, Castro e Aiveca.
Com os quatro agora juntos na Tabanca Grande, a CART 1690 fez o pleno em matéria de alferes milicianos... Profissionalmente, o Moreira é advogado; o Maçarico engenheiro agrónomo; e o Reis, veterinário. Presumo que estejam todos reformados. E, de boa saúde, espero eu.
Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mais um excerto das melhores partes do livro de memórias A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (*).
Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 16 de outubro de 2022.
Aqui a narrativa já feita na 1ª pessoa do singular, quando o autor passou a assumir que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego". No entanto, os colegas alferes ainda são identificados ppr nomes fictícios (pp. 471/473).
Nesse dia fiz antes o que fazia habitualmente quando ia ao tratamento [no Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa]. Procurei o enfermeiro-chefe para lhe perguntar se tinha vindo alguém evacuado da Guiné. Ia sempre ver os que tinham chegado. Ele disse-me que sim e onde estavam. Vi vários mas houve um que me fez saltar os olhos. Numa cama estava o Zé Pedro [Domingos Maçarico]
− Também tu!? Como é que foi isso?
− Fui ao ar com uma mina mas não tive a sorte que tu tiveste. Estou todo partido. É... Cheguei ontem e vão-me operar não sei se já hoje ou amanhã.
Disse isto com semblante carregado e apreensivo. Depreendi que aquilo era mesmo mau.
− E o resto do pessoal? Como é que está?
Ele ficou pior.
− O Aprígio [Alfredo Reis] e o Castro [António Moreira] estão bem.
Fez uma pausa e acrescentou com voz entrecortada:
− Mas o gajo que te foi substituir morreu.
− Como é que foi?
Pela voz pareceu estar recomposto.
− Foi numa operação àquele sítio onde passaste a noite [, em Sinchã Jobel ] . Com ele morreram lá o Carmo e o Cosme. Antes tinha havido lá outras operações. Numa delas ficou o Fragata.
− Não. Tentámos sempre por onde tu foste mas só levámos porrada. Eu também ia para lá quando fui ferido. Como vês nem consegui lá chegar. Quero contar-te mais. Vão-me mexer e eu sei lá o que vai acontecer − parecia mesmo receoso. − Houve um ataque ao destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] quando ele, por acaso, não estava lá. Tinha ido a uma consulta ao médico do batalhão. Entraram lá e levaram metade da malta. A outra metade conseguiu fugir para a mata. Mataram o Aguiar porque tentou resistir.
− O Lucas, o Carmo, o Cosme e o Gabriel eram do meu grupo de combate. Coitados − fiquei pesaroso.
− E a mina foi sorte para ti por outro motivo. Se lá tivesses continuado tinhas lerpado de certeza porque andarias metido naquilo, nas operações àquela base.
− Pelo que me contas estou a ver que sim. Não fui eu mas foi o meu substituto, coitado.
Acreditei, porque sabia que andaria sempre na berlinda, tal como andara.
− E sabes que mais? Os gajos que entraram no destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] foram os gajos da base que tu e o Lindolfo [cap Maia, da CART 1689] destruíram.
Fez uma pausa e acrescentou:
− Eles revivem depois de mortos e estão por todo o lado.
Lembrei-me da conversa que tivera com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] , aquela em que ele acabou por me chamar comunista.
− O quê?! − espantei-me em voz alta. − Donde é que vem essa ideia, pá?
− Tu estiveste aquela noite sozinho na zona deles e apareceste calmamente no dia seguinte, primeiro. Depois, estiveste ao pé da mina e afastaste-te antes de ela rebentar. Situações que nos deixaram intrigados.
− Ó pá, foram casos de sorte e mais nada.
− Mas, sabes?, aquela conversa que tiveste com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] no destacamento do Castro [alf António Moreira] e que o Mendonça me contou, levou-nos também a pensar isso.
Fiquei zangado e mostrei-o na cara mas moderei-me em atenção ao estado do amigo.
−Não sei como é que lhes pôde passar pela cabeça que eu ia provocar a morte de camaradas e amigos meus. Eu, que podia ter morrido naquela mina ou nas operações em que participei.
Houve um enfermeiro que se chegou perto deles.
- O meu alferes, desculpe, mas não pode estar aqui mais tempo a falar. A situação do ferido é tão crítica que não permite isso. Tem de ir fazer uma operação complicada e isto pode estar a perturbá-lo para isso.
− Claro, percebo. Vou-me já embora.
− Espera só um momento − disse o Zé Pedro [alf Domingos Maçarico].
Pensei logo que tinha de ir ter com o Fragata para ouvir o que ele tinha para contar. Desejei que tudo corresse bem ao Zé Pedro [alf Domingos Maçarico] e despedi-me dele.
Aqui a narrativa já feita na 1ª pessoa do singular, quando o autor passou a assumir que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego". No entanto, os colegas alferes ainda são identificados ppr nomes fictícios (pp. 471/473).
Quando os meus camaradas desconfiaram de mim...
por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)
Nesse dia fiz antes o que fazia habitualmente quando ia ao tratamento [no Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa]. Procurei o enfermeiro-chefe para lhe perguntar se tinha vindo alguém evacuado da Guiné. Ia sempre ver os que tinham chegado. Ele disse-me que sim e onde estavam. Vi vários mas houve um que me fez saltar os olhos. Numa cama estava o Zé Pedro [Domingos Maçarico]
− Também tu!? Como é que foi isso?
− Fui ao ar com uma mina mas não tive a sorte que tu tiveste. Estou todo partido. É... Cheguei ontem e vão-me operar não sei se já hoje ou amanhã.
Disse isto com semblante carregado e apreensivo. Depreendi que aquilo era mesmo mau.
− E o resto do pessoal? Como é que está?
Ele ficou pior.
− O Aprígio [Alfredo Reis] e o Castro [António Moreira] estão bem.
Fez uma pausa e acrescentou com voz entrecortada:
− Mas o gajo que te foi substituir morreu.
− Como é que foi?
Pela voz pareceu estar recomposto.
− Foi numa operação àquele sítio onde passaste a noite [, em Sinchã Jobel ] . Com ele morreram lá o Carmo e o Cosme. Antes tinha havido lá outras operações. Numa delas ficou o Fragata.
− E não deram cabo da base deles?
− Não. Tentámos sempre por onde tu foste mas só levámos porrada. Eu também ia para lá quando fui ferido. Como vês nem consegui lá chegar. Quero contar-te mais. Vão-me mexer e eu sei lá o que vai acontecer − parecia mesmo receoso. − Houve um ataque ao destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] quando ele, por acaso, não estava lá. Tinha ido a uma consulta ao médico do batalhão. Entraram lá e levaram metade da malta. A outra metade conseguiu fugir para a mata. Mataram o Aguiar porque tentou resistir.
− O Lucas, o Carmo, o Cosme e o Gabriel eram do meu grupo de combate. Coitados − fiquei pesaroso.
− E a mina foi sorte para ti por outro motivo. Se lá tivesses continuado tinhas lerpado de certeza porque andarias metido naquilo, nas operações àquela base.
− Pelo que me contas estou a ver que sim. Não fui eu mas foi o meu substituto, coitado.
Acreditei, porque sabia que andaria sempre na berlinda, tal como andara.
− E sabes que mais? Os gajos que entraram no destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] foram os gajos da base que tu e o Lindolfo [cap Maia, da CART 1689] destruíram.
Fez uma pausa e acrescentou:
− Eles revivem depois de mortos e estão por todo o lado.
Lembrei-me da conversa que tivera com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] , aquela em que ele acabou por me chamar comunista.
− Acabaste por chegar a essa conclusão, estou a ver. Eu bem disse que eles a iam reconstruir mas não me acreditaram. Tu sabes da conversa que eu tive com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] . E tu também tiveste dúvidas.
− É verdade, mas agora já não tenho. Já vi muito para não as ter.
Parou um bocado, parecendo cansado.
− Agora outra coisa – continuou. − Sabes que eu e o Castro [António Moreira] chegámos a pensar que tu estavas feito com os do PAIGC?
− É verdade, mas agora já não tenho. Já vi muito para não as ter.
Parou um bocado, parecendo cansado.
− Agora outra coisa – continuou. − Sabes que eu e o Castro [António Moreira] chegámos a pensar que tu estavas feito com os do PAIGC?
− O quê?! − espantei-me em voz alta. − Donde é que vem essa ideia, pá?
− Tu estiveste aquela noite sozinho na zona deles e apareceste calmamente no dia seguinte, primeiro. Depois, estiveste ao pé da mina e afastaste-te antes de ela rebentar. Situações que nos deixaram intrigados.
− Ó pá, foram casos de sorte e mais nada.
− Mas, sabes?, aquela conversa que tiveste com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] no destacamento do Castro [alf António Moreira] e que o Mendonça me contou, levou-nos também a pensar isso.
Fiquei zangado e mostrei-o na cara mas moderei-me em atenção ao estado do amigo.
−Não sei como é que lhes pôde passar pela cabeça que eu ia provocar a morte de camaradas e amigos meus. Eu, que podia ter morrido naquela mina ou nas operações em que participei.
Houve um enfermeiro que se chegou perto deles.
- O meu alferes, desculpe, mas não pode estar aqui mais tempo a falar. A situação do ferido é tão crítica que não permite isso. Tem de ir fazer uma operação complicada e isto pode estar a perturbá-lo para isso.
− Claro, percebo. Vou-me já embora.
− Espera só um momento − disse o Zé Pedro [alf Domingos Maçarico].
− Estava-me a esquecer de te dizer que o Fragata, o do teu grupo de combate, afinal não morreu. Isto andou tudo encoberto, tu sabes, há coisas que são segredo e não são para divulgar. Os manda-chuvas é que não querem divulgar. Mas correu por lá. Ele foi ferido e os do PAIGC apanharam-no e levaram-no para um hospital deles no Senegal [em Ziguinchor] . E, segundo constou também, a Cruz Vermelha Internacional conseguiu repatriá-lo e ele está agora no Anexo de Campolide.
Pensei logo que tinha de ir ter com o Fragata para ouvir o que ele tinha para contar. Desejei que tudo corresse bem ao Zé Pedro [alf Domingos Maçarico] e despedi-me dele.
(Seleção, revisão/fixação de texto, parênteses retos, título: LG)
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 28 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25989: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (10): evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto...
Último poste da série > 28 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25989: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (10): evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto...