Trigésimo quinto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Morreu o “Zé Pesca”, na ilha do Como
Companheiros, hoje vou falar-vos de um episódio que me anda “atravessado” já há algum tempo. Quando o começo a trazer para o papel, escrevo umas tantas linhas e ponho tudo de parte, a emoção toma conta de mim, é mais forte, o som do “catra-pum- pum-pum”, começa a zumbir nos meus ouvidos, parece que vou a fugir para o meu abrigo preferido, a que eu chamava “Olossato”, por ter visto este tipo de abrigos, pela primeira vez no aquartelamento algo improvisado, que naquela altura lá existia.
No meu pensamento aparece o “Zé Pesca”, que era um soldado pára-quedista, do mesmo grupo de combate do meu companheiro de infância, também pára-quedista, que já aqui falei por diversas vezes, cujo nome de guerra era “Zargo”, e que uma vez vim no carro dos doentes à capital da província numa sexta-feira, regressando na segunda-feira seguinte na avioneta do furriel Honório, que sempre fazia passagem, quase obrigatória em Mansoa, passando todo o fim de semana, alojado em Bissalanca, no Batalhão de Pára-quedistas, na companhia do meu amigo “Zargo”, e nesse sábado, fizemos lá uma “tremenda patuscada”, que meteu ostras, ameijoas, camarão, onde bebemos um barril de vinho, entre todos, e para não ficar “vestígios”, queimou-se o barril.
O “Zé Pesca”, amigo da farra, lutador, combatente, com a boina verde sempre de lado, corpo de atleta, cujos pais eram agricultores no Ribatejo, já “contente”, dizia que não gostava da Guiné, “porque não havia cavalos”, que tinha ido para o corpo de pára-quedistas “por causa da farda”, certo dia morreu, crivado de balas daquela perigosa arma a que nós chamávamos “costureirinha”, que era uma metralhadora ligeira que também se usava em cima de um tripé com duas rodas em ferro, era transportada para a zona de combate e usada nas emboscadas, principalmente onde havia capim. Fazia fogo muito rasteiro, com cadência de tiro e som que a identificava, e quase sempre no fim da emboscada os guerrilheiros, talvez desesperados, abandonavam- na, ou pelo menos abandonavam o tripé, preocupando-se com os feridos. Também a usavam nas mãos, como uma arma vulgar, sem as ditas rodas. Pelo menos era esta a descrição que o Cifra recebia nas mensagens desses heróis combatentes que eram os militares de acção.
Dias depois o “Zargo”, explicou ao Cifra alguns pormenores da morte do “Zé Pesca”, onde estavam já há algumas horas, esperando uma pequena operação, quase um “golpe de mão”, como era costume dizer-se, cobertos com a típica capa camuflada impermeável, já com muitos buracos, portanto molhados “até aos ossos”, por uma chuva miudinha, e se não fosse da chuva, era pela humidade que naquela altura se fazia sentir. Já era noite quando saíram do aquartelamento onde estavam acantonados, todos beberam muito café, não sabiam se estavam sobre influência, mas estavam nervosos, queriam acção, passou um grupo de guerrilheiros perto, onde não deviam intervir, pois em caso de fogo todos os movimentos que fossem desenvolvidos, no futuro seriam denunciados. O “Zé Pesca” já aí queria intervir, os companheiros seguraram-no, foram avançando, próximo do objectivo não esperou por nada, avançou quase sozinho na frente, gritando, disparando, talvez amaldiçoando a sua própria alma, onde os companheiros aterrorizados com aquele gesto suicida, talvez heróico, nunca ninguém soube, ouviram a tal “costureirinha” fazendo soar o seu amaldiçoado som, do “catra-pum-pum-pum-pum”, que crivou o “Zé Pesca”, fazendo o seu corpo rodopiar em zig-zague, caindo uns metros à frente, encolhido, crivado de balas.
A operação desenrolou-se, queimaram o pequeno acampamento inimigo que estava naquela zona, destruindo muito material de guerra. No regresso, transportaram o corpo do “Zé Pesca”, trazendo também diversas mulheres guerrilheiras, transportadoras de material de guerra, que depois de feitas prisioneiras, amarrando-as nas mãos com uma corda umas às outras, acompanharam os militares, por uma certa distância, pois serviam de escudo, e compreendia-se, pois enquanto acompanhassem os militares, os guerrilheiros não atacavam. Já a manhã ia alta, perto do local onde deviam ser recolhidos, as libertaram.
Alguns dias depois, os militares do seu grupo de combate olhavam uns para os outros e diziam:
- Morreu o “Zé Pesca”, na ilha do Como.
Enquanto o grupo de combate a que pertencia o malogrado “Zé Pesca”, esteve estacionado na província, a sua cama nunca foi utilizada, estava lá, feita com roupa limpa, ao lado dos seus companheiros, que antes de se deitarem, lhes davam as boas noites.
Oxalá que Portugal respeitasse os seus combatentes, como estes militares de acção, respeitavam o companheiro morto em combate, pois é dos livros, já muitos escreveram que:
“Nação que não respeita o passado, não pode ter bom futuro”.
Nós combatentes, defendemos a bandeira, fomos passado de um País que se chama Portugal.
Tony Borie, 2013
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Nota do editor
Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P12269: Bom ou mau tempo na bolanha (34): ...quase 50 anos (Toni Borié)