domingo, 10 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

1. Em mensagem do dia 8 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o primeiro episódio da sua nova série Fragmentos de Memórias:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

1 - Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

24 de Agosto de 1965

Chegado a Bissau, levado pelo Niassa, despejaram-me na Amura.
A viagem foi pior que má, fui sempre deitado, enjoado e só m'alevantava nas horas das refeições, qu'eram cinco diárias. Gostei particularmente dos almoços e jantares, porque aí davam "buída tinta", para o mal estar... e "pescada au meuniére".

Abandonado em terra... amanha-te... e isso fiz embora antes e da Metrópole tenham partido de avião, os oficiais, milicianos e tudo, bem como os sargentos do Quadro (Secção de Quartéis lhes chamaram) com a incumbência também de me prepararem a recepção e instalações tão condignas qb, próprias de quem como eu, se julgou com direito a pelo menos uma cama para dormir, à semelhança de todos os outros que a tal privilégio tiveram acesso.

Depois... um ou outro pelotão lá ia sendo destacado para aqui e para ali e o meu (o 1.º) foi-se passeando e com a prestimosa ajuda dos guias turísticos (CART "ÁGUIAS NEGRAS") por Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo (apenas a minha Secção), Jolmete e por fim reunimo-nos de novo (a CCAÇ 1422) em data que não posso precisar, mas julgo que nos finais de 1965.

Mas em Bissau e porque ali permaneci oito dias, acabei por e em companhia doutro amigo furriel miliciano acabei por, repito, conhecer a cidade e todas as malandrices que escondia. Nada me parecia ser perigoso e inquiria-me mesmo se haveria guerra, apesar do tiroteio que lá longe se ouvia.

No aeroporto vi os T6, que partiam com bombas agarradas e chegavam sem elas... vi a chegada dos aviões a hélice com o regresso de férias dos militares, conheci um ou outro civil residente, notei que mulheres brancas Portuguesas haviam poucas e miradas como se duma espécie rara fossem.

Impressionava-me ter de dormir com mosquiteiro, inútil que a bicharada entrava mesmo, embora em mim picassem só que morriam de seguida ao absorverem o meu venenoso sangue azul de "Marquês da Pedreira", que fora e que um dia conto como lá cheguei, à nobreza entenda-se.

Pedreira, no rio Sôr, aonde ia pescar barbos de meio quilo... e menos.

************

Setembro de 1965

Dizia-se que o baptismo de fogo era sempre e também, uma das situações que nos tornaria finalmente combatentes a sério.

Comigo aconteceu logo no início de Setembro de 1965, quando convidado, que fui, para ir tomar conta dos pertences militares usados por uma Companhia, que iria regressar a casa.

Foi ali um pouco antes de Mansabá, junto a umas ruínas ainda fumegantes do que tinha sido uma serração, que nos receberam com uma fogaracha de todo o tamanho. Tinham antes destruído também a ponte que atravessava um riacho não muito caudaloso, mas que nos obrigou depois a colocar cibes e tábuas, para que a coluna de veículos pudesse atravessar.

Localização da Serração. Vd. carta de Farim 1:50.000

Um dos vários pontões existentes ao longo da estrada Cutia-Mansabá.
Foto © José Barros (2011). Direitos reservados

Tudo ajudado por aqueles valentes que nos vieram socorrer em menos tempo do que leva a contar e após terem ouvido os primeiros tiros com que nos emboscaram.

Nada de grave aconteceu... do cagaço não nos livrámos, mas medo que logo passou quando começámos a corrê-los à pedrada. Daí que eles (os turras) se tenham escafedido com o rabinho entre as pernas e de tal forma que nesse dia, nunca mais os vimos. E foi assim que fui baptizado e tal como quando mo fizeram na igreja, nunca vim a conhecer quem foram os padrinhos. Chegados ao aquartelamento fomos recebidos que nem heróis, pelos restantes que ali haviam ficado contrariados e diziam estes "velhinhos" últimos de farda amarela (e eles sim com feitos dignos de registo), que nos houvéramos portado muito bem. Sem que eu imaginasse, apareceu-me um camarada d'armas, amigo já antes e lá da minha terra, o "Manel de Mora" e nem sei se vos diga se vos conte, a tamanha alegria com que nos abraçámos. Depois vieram as suas recomendações, os avisos, as indicações úteis sobre o IN e os locais onde mais costumavam actuar, tudo isto enquanto jantávamos que até nisso, nos recepcionaram melhor que bem.

No dia seguinte dei início à tarefa de que fora incumbido e lá vieram as contagens de viaturas, a observação dos edifícios, a comida que ficava e também a bebida claro, mas o que me deu mais gozo ver em pormenor, foram os dois obuses enormes com grandes rodas e que ao que me foi dito estavam apontados para Morés, onde já tinham feito enormes estragos nos poilões que circundavam aquela base, pois que, ao que se sabia, as bojardas eram de muito difícil penetração onde se pretendia que fossem.

Era fácil mudá-los para outras posições e na verdade recordo que depois um dia até nos ajudaram no K3, quando as bestas quadradas nos visitaram com alguma pretensa agressividade. Quis saber se na verdade trabalhavam e prometeram-me mostrar que sim.
A demonstração chegou logo quase de imediato, quando nesse mesmo dia atacaram a própria Mansabá.
Repelidos foram e a seguir fomos desopilar para o bar e... que bem aprovisionado estava !!!

Ele havia de tudo desde Vat 69, vinhos tintos e brancos, águas Perrier e Tónica, Gin's.... enfim uma parafernália capaz de engrossar a sério e até aliviar aquelas tantas gargantas secas. E foi nessa noite que comecei a tomar aquele especial remédio feito à base de lúpulo, cevada, milho e centeio.

Comecei e hoje passados 48 anos ainda não acabei.

Ao fim de 3 ou 4 dias e já com os bens mudados para o nome dos novos donos e tivéssemos tomado também posse das suites e instalações militares, veio a ordem de que afinal não íríamos ficar por ali, mas sim trocar com a CCAÇ 1421, que tanto estava empenhada em construir e de raiz, um hotel subterrâneo de cinco ou mais estrelas, em Saliquinhedim.

Para lá fomos passados que foram mais dois ou três meses, se me não engano que esse tempo é dos que não me veio ainda há memória.

Tal como me acontecera com o remédio de que atrás falo, sim aquele de grãos de cereais, foi também aqui na zona, mais propriamente em Manhau, que conheci aquele coisa horrível que se chama ódio. Os motivos para o passar a trazer comigo, foram óbvios e ainda hoje quando leio os que lançam lérias elogiosas ao terrorista Amílcar, fico pi-urso e decerto que não se lembram que ele foi o causador de tantas desgraças que aconteceram.

É que combater frente a frente e dando tiros de cá para lá... ainda vá que não vá, mas mandar implantar minas no terreno que ele sabia ir ser pisado porque quem para a Guiné tinha ido, não para atacar, mas mais para defender... era selvajaria... e foi dramático.

Julgo que (aqueles que leio, repito... aqueles que lançam lérias etc, etc.) não pensariam da mesma forma se tivessem estado presentes quando os infortúnios aconteceram... se tivessem que andar a limpar sangue... a juntar pedaços.

MAS CADA UM É COMO CADA QUAL

E mai'nada.

(continuará)

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo Veríssimo

Aqui está mais uma das tuas histórias, agora intituladas "fragmentos de memórias".

Muito bem, é assim mesmo, 'fragmentos', porque eu próprio sinto isso já que também tenho muitas coisas de que não me consigo recordar, não visualizo, estão em vazio.
Por exemplo, quando fui para Piche no início de Dezembro de 70 lembro-me de ter voado até Nova Lamego num avião grande, com vários militares, muita população civil (que regressava a casa depois de ter sido convidada a assistir ao 'congresso do povo), muita carga e recordo-me particularmente de irem uns caixotes abertos com carcaças de reses. De Nova Lamego a Piche fui integrado numa coluna do BCAV2922. Quando vim a Bissau tratar de receber o equipamento para instalar no Posto do STM que entretanto consegui que fosse edificado, lembro-me de ter vindo na coluna de Piche a Nova Lamego e depois segui por Bafatá até Bambadinca. Neste último percurso seguiram só dois Unimogs e sendo eu o mais graduado presente deram-me a responsabilidade pela entrega de 3 ou 4 urnas(isso agora não sei o número exacto) em Bambadinca que, salvo erro deveriam seguir depois 'para mais longe'. Fiquei em Bambadinca até apanhar a "Bor" no Xime com uma viagem inesquecível.

Mas depois, quando fiz o que tinha a fazer em Bissau e voltei a Piche para a montagem dos novos equipamentos e fazer a 'passagem' ao meu substituto (que por sinal também se chamava Valério), não tenho nenhuma recordação dessa viagem. O mesmo sucede com a viagem de regresso final a Bissau.

Outro exemplo é a da minha ida a Porto Gole. Fui lá numa missão rápida de radiolocalização mas não tenho nenhum registo de memória. Quase o mesmo sucede com uma ida a Mansoa. Para Porto Gole ainda tenho a guia de requisição de transporte, sei dizer o dia, mas a Mansoa, nada!

Portanto, quanto a 'fragmentos', estamos entendidos. Vamos agora aos fragmentos de hoje.

--isto vai ter que ser 'partido'--

Por isso seguirá o resto em comentário a seguir.

Hélder S.

Hélder Valério disse...

-- continuação--

Como de costume podem ser repartidos 'em vários tempos'.

A chegada a Bissau (por sinal, fiz ontem, dia 9 de Novembro, 43 anos que lá cheguei e hoje, dia 10, são 41 anos de regresso...), com a aprendizagem e reconhecimento do que se julgava ser o local de destino. Em Bissau fizeste a descoberta dos meandros que mais tarde te serviriam para te deslocares com todo o à-vontade, dando até para mostrares os teus dotes futebolísticos, pelo que já vi numa foto.
Em Mansabá, foi a aprendizagem da 'guerra em directo', o sabor amargo da morte, a aprendizagem do 'irremediável', e também saborear o 'repouso do guerreiro'.

E, dizes, adquiriste um gosto novo, o da cerveja. Coisa boa!
E, dizes, adquiriste um sentimento novo, o ódio. Coisa feia e ruim!

Mas quem sou eu, meu amigo, para interferir nos sentimentos dos outros, principalmente dos amigos?

Posso apenas socorrer-me dos conhecimentos aprendidos de que "as minas são uma arma dos pobres". Concordo que são traiçoeiras, que não têm o cavalheirismo romântico das imagens que nos foram dadas pelas recriações cinematográficas das batalhas em que o Marquês "fulano de tal" dizia ao homónimo inimigo para disparar primeiro (as tropas, entenda-se) e só depois de os homens sofrerem o embate da primeira descarga é que autorizava 'os dele' a fazerem a sua descarga. Outros tempos.

Recordo que minas, cobardes, traiçoeiras, cegas, foram também colocadas pelas NT. Recordo aqui o saudoso Luís Faria e o aniversariante de ontem, o António Garcia de Matos, entre outros, que nos deram relatos impressionantes de actuações e até de um louco trabalho de desmontagem de um campo. Minas boas? Pois se eram nossas....

Não estou em condições, nem quero, nem posso, nem devo, alterar ou tentar interferir nos teus sentimentos. São teus e devo respeitar. Por amizade, por compreensão, por solidariedade. Mas, ser amigo é dizer, frontal e francamente, quando e em quê se discorda, quando é caso disso.

E discordo do teu entendimento sobre Amílcar Cabral e do tratamento dado aqui.
Primeiro, porque não há, que eu saiba, uma "posição", aqui (e por aqui entenda-se o Blogue) que cole a imagem de A. Cabral a 'patriota', ou a 'terrorista'.

Aliás, essa do 'patriota' tem muito que se lhe diga. Tem, isso sim, de facto sido por aqui abordada a ideia de que Cabral não tem na sua terra a distinção que seria legítimo esperar para quem se empenhou a criar uma "Pátria". Isso tem aparecido em muitos e vários comentários, sobretudo por parte do 'mais velho' Rosinha.

Não havendo posição 'oficial' sobre a figura, sobressaem o que chamas 'lérias elogiosas'. De facto, aqui e ali, surgem textos em que dizem que Cabral procurou obter dos poderes de Lisboa a abertura e compreensão para uma solução para a Guiné, na via da portugalidade. Lérias? Talvez!

Quanto ao "terrorismo", prefiro não desenvolver, embora refira que a palavra aplica-se muito bem ao início das acções em Angola, com a actuação da UPA, e que depois se foi popularizando a corruptela de "turra", mas acho que isso agora não se enquadra nesta âmbito.

Um abraço
Hélder S.

Henrique Cerqueira disse...

Caro Veríssimo
O Hélder é que tem razão.Mas tu também a tens.Por isso o meu comentário vai no sentido das famosas deslocações a Bissau e de Bissau.
É, na verdade as deslocações á capital revestiam-se sempre de peripécias,só que uma das vezes correu-me mal porque tive de me apresentar nos adidos e para além daquilo ser um autêntico depósito de carne Humana eu fui obrigado a fazer um serviço de piquete,ou seja o serviço foi fazer uma guarda com cinco homens num posto que o principal era guardar os Porcos(eram mesmo porcos,suinos).Bom escusado será dizer que mal pude fugir daquele chiqueiro (os adidos e seus sargentos)eu dei o "pira" (baldei-me)dali para fora e lá arranjei um lugar para ficar no quartel general,mas um pouco clandestinamente (naquele tempo os turras eram mesmo nabos era tão fácil penetrar por lá...)Bom mas resumindo, quando regressava á base também não me lembrava de quase nada e porquê?Perguntam vocês??? É simples, pois que a cerveja, as tónicas e outros afins alcoólicos davam uma ajudinha daí ainda hoje eu não me lembro de muita coisa...É a vida ...Ai..ai...como foi difícil aqueles momentos em Bissau.O pior foi quando chamei para junto de mim a dona Ni. Prontos ficou o caldo entornado e a partir dali, deslocações a Bissau só ao choping ...casa Gouveia e outras do género.
Quanto ao Cabral e companhia...hum...já lá vai camaradas...
Um bom dia e um abraço a todos.
Henrique Cerqueira
PS:Hoje aqui pela Foz do Douro está um belo dia de Sol

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
...abandonado em terra...amanha-te!
Olha, tu andas-te por Mansabá, pelos "Águias Negras", em 1965, devia-mos de nos ter "cruzado", foi pena, pois gostava de te ter cumprimentado, devias de ser, "cá um dos gajos porreiros", que por lá havia.
As tuas memórias, são as tantas, de tantos combatentes, mas a região do Oio, "tóca-me"!.
Um abraço.
Tony Borie.

Chapouto disse...

Companheiro quando falas do OIO ainda hoje me arrepio todo pois foi no OIO mais concretamente em Banjar onde passei as passa da Guiné.
Pois é tudo como tu dizes Niassa 24 Agosto tu para a Amura eu para Sta Luzia ainda tive tempo de conhecer Bissau por dentro e por fora, fazer umas patrulhas em redor de Bissau uma escolta a Farim com géneros e em Outubro para o setor leste Camamudo (Bafatá)e depois Banjara.
foi assim a vida dos primeiros piriquitos na Guiné
Um farto Abraço
Fernando Chapouto