quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

1. Quinto episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU



A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

5 - O DIA SEGUINTE NO XITOLE COM AS PESSOAS

Após uma noite bem dormida e todos manifestamente bem dispostos, voltamos à estrada para mais um dia “fora de casa”, novamente a caminho do Xitole.
Aqui chegados, a motivação eram agora as pessoas. Sabiam que viríamos.

Os Homens e as Mulheres Grandes eram hoje em maior número. De muito poucos me lembrava. Uma Mulher Grande, de quem não recordava o nome, mas que reconheci sem grande dificuldade, era uma das esposas do proprietário dum camião civil que quase sempre integrava as colunas de reabastecimento ao Xitole. Ela e o Saido Baldé, eram os nossos principais interlocutores, talvez porque falando um Português, aqui e ali mesclado com o crioulo, facilmente se faziam entender.

Com uma mistura de sobriedade e de altivez, trajavam de vestes tradicionais e tinham uma memória soberba. Comecei a sacudir a poeira do baú das memórias. Ouvi falar de quem conhecera e dos que já haviam desaparecido. Ouvi falar de quem já não lembrava e daqueles que me foram mais próximos. Ouvi falar de quem esperava encontrar e que, por razões várias, não o consegui. Ouvi falar do antes e do agora das suas vidas. Ouvi os lamentos de uma vida dura e sem esperança e, ouvi falar com nostalgia dos tempos da nossa presença.

Saltavam os nomes do Capitão... do Alfero... do Furriel... que até tocava viola, do Formeiro... etc. etc. etc..
Era patente a alegria com que falavam desses tempos. Foi com alguma dificuldade que consegui disfarçar a emoção, sempre que faziam essas referências. Paternalismo ou outro qualquer “ismo”?

Naquele momento, eu tinha uma certeza. Era somente um ser humano, tocado pelos afectos forjados há muitos anos em circunstâncias particulares e que os deixava fluir sem mais “embrulhos”, na presença daqueles que a vida colocara no seu caminho. Estava feliz entre “a minha gente”.

O Saido Baldé era difícil esquecer. Com uma fisionomia muito peculiar, em que sobressaíam uns olhos que pareciam querer saltar a qualquer momento das órbitas, era um homem feliz. Não nos largava um minuto. Mas não tinha as notícias do Galé Djaló que eu esperava ouvir. Impunha-se uma nova ida a Quebo (Aldeia Formosa) na companhia do Saido. Voltaríamos a fazer o nosso almoço piquenique junto dos rápidos de Cussilinta, com nova paragem para um cafezinho no Saltinho. Quebo, era a derradeira tentativa para encontrar o camarada de “profissão” com quem privei, de forma quase fraternal, durante a minha permanência no Xitole. Um bom Camarada e Amigo, que a “sorte” não permitiu rever.

Se dúvidas houvesse, logo ali ficaram desfeitas. Eu tinha que voltar à Guiné. São tantos os motivos que nos “puxam” para aquela terra que, somados à necessidade de rever Galé, tornaram firme essa ideia. Eu sabia que iria voltar e, disso fiz promessa e anúncio em Quebo e o repeti no Xitole, para onde nos dirigimos novamente. Eram os nossos últimos momentos no Xitole.
Aproveitamos para dar mais uma vista de olhos, principalmente pelas redondezas do quartel. Sempre na companhia do Saido, aventuramo-nos ali para os lados da antiga picada, no sentido de quem vinha da “Ponte dos Fulas”, do antigo poço de que se abastecia o quartel e da casa do comerciante libanês Jamil. Ali por perto, a picada tinha virado trilho, o poço, que já fora substituído, estava abandonado e meio escondido e o alpendre da casa do Jamil ameaçava cair, apesar do interior estar em razoável estado de conservação. Ao que parece, esta casa teria sido utilizada para alojamento do pessoal da empresa que construiu a estrada alcatroada.

Não fora o novo posto de saúde e uma outra construção nova, e aquele local mais parecia uma cidade fantasma. Foi o último olhar sobre o Xitole. A despedida foi difícil. Algumas lágrimas envergonhadas caíram pelo meu rosto. Eram o tributo do meu carácter à reconciliação com as memórias do passado e, a expressão dos meus afectos pelas gentes do Xitole. Estava a despedir-me e já sentia saudades.

Desisti de procurar as explicações para o meu estado de alma. Era o “eu” de agora. Aquela mistura do “eu” com vinte e três anos e o “eu” com cinquenta e um anos de idade. Tantos e tantos anos a sonhar em voltar ao Xitole e já estava de partida. Emocionado, deixei aquelas gentes e aquela terra. Eu sabia que iria voltar, porque há mais mundo no nosso coração para além da nossa vida, neste cantinho à beira mar plantado. Os que me acompanhavam nesta viagem, estavam tão longe, ou não, de entenderem a guerra das emoções que estava a travar e que, com dificuldade, me esforçava por controlar.

Regressamos ao Capé para um resto de tarde na piscina e para dois dedos de conversa com os gestores do empreendimento turístico, senhor Fernando e D. Margarida. O senhor Fernando, para além de ter sido funcionário da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa, era também um ex-combatente na Guiné. Gente simpática e com talento na arte de bem receber, e que decidira tentar a “sorte” na Guiné. O número de hóspedes tinha aumentado substancialmente. Contamos mais sete casais. Segundo o senhor Fernando, estes casais integravam médicos oriundos da Cidade do Porto e teriam vindo de avião até Dakar, prosseguindo depois de Jipe até Bafatá e, segundo nos confidenciou depois, estariam ali a expensas de um conhecido laboratório farmacêutico.

Talvez pelos muitos hóspedes, ou por ser a nossa última noite no Capé, fomos brindados durante o jantar e ao redor da piscina, com a exibição de um grupo de danças tradicionais da etnia Mandinga. Batuque forte e ritmado, jovens de ambos os sexos vestindo trajes tradicionais e dançando coreografias ancestrais. Espectáculo soberbo. No final, os hóspedes acabaram misturados com os “artistas”, na vã tentativa de os acompanharem.
Era a noite de despedida da região centro da Guiné-Bissau e dos locais que mais me marcaram. Fomos dormir. Amanhã, é o regresso a Bissau para a descoberta de uma “outra” Guiné.

Xitole - Antigo e atual enfermeiros

Xitole - Conversando, no local que era a entrada do quartel

Xitole - Reencontro com Saido Baldé

Xitole - Na escola, deixando material escolar

A minha primeira viagem à Guiné -1998 (3) - De Cussilinta, Saltinho, Ponte dos Fulas, até ao Cais do Xime

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

2 comentários:

Anónimo disse...

Joaquim L. Fernandes

Caro Camarigo José Rodrigues

Começo por agradecer a partilha que fazes das imagens e dos teus sentimentos, desta tua viagem de regresso à Guiné.

Creio que foi bom para ti esta partilha e também o será para nós, que como tu, fizemos esta experiência na nossa verde juventude: descobrir uma terra e suas gentes, que apesar dos muitos sofrimentos a que fomos submetidos, forjou em nós afetos que perduraram no tempo.

E porquê? Por muitas razões decerto. Uma delas porque encontramos pessoas como nós, com sentimentos, necessitadas em muita coisa mas também ricas em reconhecimento e gratidão, que nos ajudaram a crescer, na compreensão e aceitação das suas diferenças e na amizade recíproca.

Quero realçar como digno de louvor, a tua humanidade com que te fazes próximo e te compadeces dos povos a que chamas "a minha gente" e que bem se revela na tua sensibilidade, nas tuas emoções.
Esse "inexplicável estado de alma" não será simplesmente o teu grande coração capaz de amar?

É nesta forma de estar e de nos relacionarmos, que nós Portugueses nos engrandecemos como Povo. Tivesse sido sempre esse o padrão de comportamento da Nação com as suas Colónas e dos Colonos com os seus Povos, e essa guerra inútil que fomos forçados a travar, não teria acontecido e atingido as proporções e consequências dramáticas que lamentamos.

E fico-me por aqui que o assunto é muito longo.

Um forte abraço, José Rodrigues

Joaquim L. Fernandes

Hélder Valério disse...

Caríssimo amigo JMRodrigues

Também acompanho interessadamente estes teus relatos das viagens, das visitas e das emoções associadas.

E gosto do que leio.
E identifico-mo com o comentário do JLFernandes. Diz tudo.

Abraço
Hélder S.