quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12287: Memórias de Mansabá (30): Um nunca acabar de recordações (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Novembro de 2013:

Olá amigo Carlos
Olá caro camarada Mansabense
Pois é tu estiveste duas semanas ausente, eu estou, ou ando a maior parte do tempo ausente!
O tempo é o grande mestre! Claro que ter deixado a minha serra e ter vindo trabalhar para Lisboa as escolhas eram muito poucas, e com aquele pequenino pormenor de o pais ignorar o que se passava no Ultramar, logo não se poder falar muito.

Entre a minha época e a tua já houve uma diferença, cada vez era mais difícil esconder as coisas. Mas quando me reformei não tive a noção das minhas limitações, e ao ter ficado com a casa que era dos meus pais soube muito bem e não me doíam os ossos, não me custava nada lá ir e ia com gosto e alegria, hoje aborrece-me muito, ou pelo menos já não tem a graça que tinha, mas não quero abandonar as coisas, e lá vou indo e isto tudo para dizer que só no principio da semana recebi o teu email que desde já agradeço, assim como agradeço, a fortificação de Cutia e o mapa da nossa área critica!
Mas antes faço um reparo a mim próprio eu esqueci-me um pouco que tu também lá estiveste em condições de “hospitalidade“ diferentes na rua, mas na prática iguais. Tenho lido muito e quando há tempos vi que andaste por Manhau, não senti como que uma necessidade de te fazer perguntas sobre aquilo, mas disse cá para os meus botões, mais um que lá andou a arriscar a pele.

Não sei se no teu tempo ainda havia uma serração a funcionar em Mansabá! Era logo à entrada à esquerda quando se ia de Cutia. O dono fez o favor de me convidar e a mais dois ou três para irmos lá almoçar, jantar! Não eram ofertas por pura simpatia, era a necessidade que ele tinha de se dar bem connosco, tendo as relações piorado muito, quando nós não trouxemos de Banjara um trator enorme de lagartas que lá tinha ficado quando ele fugiu de lá.
Esse senhor com meia dúzia de caçadores africanos, mais os lenhadores e mais uns loucos como eu que íamos à caça, cortava madeira na zona de Mansomine, não passava aquela zona sem floresta antes de Cucuto e também não se aproximava muito de Demba Só.

Imediações de Mansabá que a CART 2732 palmilhava frequentemente, não evitando mesmo assim o mau feitio da vizinhança. Vd. Carta de Farim 1:50.000
Legenda: CV

Para o lado de Morés, nada, e depois com um certo à-vontade em frente e para a direita em relação à pista de aviação. Eu falo disto com muita emoção, mas o engraçado, ultimamente quando vou ao Algarve já não levo computador, se levo não abro, até porque a banda larga é uma porcaria, eu leio e penso, tento recordar! Eu lembro-me de sair de casa, já camuflado, com uma mala numa mão e um saco ao ombro, mas não lembro emoções nenhumas nem de pessoas terem falado comigo. Só lembro uma enfermeira da terra que veio no mesmo comboio que eu, Lagos – Barreiro se preocupar muito comigo!

Depois de termos desembarcado na Madeira e nos últimos dias de viagem, eu comecei a sentir uma certa expectativa em relação a Bissau. Depois de tanto ter ouvido da história dos portugueses e seus feitos, eu ia finalmente pisar uma cidade, capital de província, deveria ter que ver. Não digo que foi uma desilusão, digo onde estás Bissau, não sei que se passa com meus olhos que te não enxergam, estou a passar por ti e não te enxergo.

Uns campos, uns montes de bagabaga e eis que estou noutra grande cidade, Mansoa!

Tiro-lhe o Man e fico com o soa!
Mas não soa
Não soa os ecos da cidade.
Soa o estrondo das armas
Não soam risos de crianças
Soam choros de criança
Não soam risos de gente feliz
Soam gritos de gente com raiva
Soa o silencio de uma cidade em guerra
Parto para Mansabá que tem algumas casas com traços de arquitetura mas com janelas e terraços tapados a tijolos de terra batida.
Mansabá com a sua rua principal chegava a ter alguma beleza, quando as acácias floriam e se enchia com o garrido das bajudas, talvez se passeando!
A Mansabá, tirando-lhe igualmente o Man fico com sabá
Sabá rainha do saber
Foste uma rainha para muitos de nós
Não pelo saber
Não pelos teus encantos
Mas pelo teu poder total
Porque nos prendeste
Porque nos acorrentaste
Porque nos escravizaste
Porque nos obrigaste a fazer coisas que não queríamos
Porque transformaste nossos cérebros
Porque transformaste nossas personalidades
Porque transformaste nossas vidas
Porque transformaste a vida dos nossos familiares
Porque dispuseste de nós como te apeteceu Incluindo deformar nossos corpos
Incluindo tirar nossas vidas
Nunca ouvindo nossos pedidos de clemência
Mas eu não te odeio
Se calhar até tenho saudades tuas

Carlos, o texto são mais umas linhas para juntares a tantas que tens recebido.
As fotos são para voltares a ver aquilo que nunca esqueces.

Um obrigada por tudo
Um abraço aqui de Mansabá
BCAÇ 1857 / CCAÇ 1421
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano

 Ernesto Duarte em Mansabá(?)

O Fur Mil Ernesto Duarte junto ao memorial da sua Companhia (CCAÇ 1421), "Os Caveiras" 


 Duas vistas aéreas de Mansabá no tempo de Ernesto Duarte

Ernesto Duarte na "avenida" de acesso à Porta de Armas do aquartelamento de Mansabá, tão bem descrita com a sua alma poética, acima, no texto

Ernesto Duarte numa das paradas do aquartelamento de Mansabá

Fotos: © Ernesto Duarte. Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: CV)


2. Comentário do editor:

Caríssimo Ernesto Duarte
As tuas palavras, quando falas de Mansabá, são apaixonadas, deixando transparecer o quanto ficaste marcado por aquela "terra onde se arde vivo", assim designada no livro "Guiné 1965 Contra Ataque", de Amândio César. Compreendo-te porque ali permaneci 22 meses e 11 dias.
A minha actividade operacional e ocupação das "horas livres", ajudando na Secretaria, não dava para grandes convívios na tabanca. Conheci meia dúzia de civis, os nossos dedicados guias e milícias e nossos camaradas do Pel Caç Nat 57. Lembro-me bem dos domingos em que nos vestíamos umas horas à civil, para arejar a roupa, e íamos passear a tabanca. Sentia-se um ar diferente nestes dias. Quase só os pelotões de piquete e serviço estavam ocupados. Com a noite voltava o sentir da guerra e os sentidos entravam todos em modo de emergência.

As horas mal dormidas em alerta permanente; os sucessivos ataques ao aquartelamento e tabanca; as sempre perigosas colunas para Mansoa e Farim; a protecção, com emboscadas quase diárias, durante meses aos trabalhos de pavimentação do troço da estrada Bironque-K3; as emboscadas nocturnas no fim da pista e no Alto de Bissorã; os patrulhamentos diurnos e nocturnos, assim como as operações, são parte da nossa memória que se apagará só no último dia das nossas vidas.

Quanto à Serração de que julgo falares, no meu tempo estava já desactivada e era um local de passagem muito perigoso.
Havia contudo um branco, não sei se é do teu tempo, o senhor José Leal que, com uns quantos colaboradores locais, abatia árvores algures nas imediações de Mansabá. Não precisava de protecção e tanto quanto me lembro nunca foi atacado. Provavelmente explorava a área que referes. Sinceramente não me lembro se ele tinha alguma serração ou se trazia os toros já limpos do local. Lembro-me que a camioneta era muito velha, que só tinha a cabina em cima do chassi onde transportava os toros.
Fica aqui a sua foto para ver se te lembras dele. Morava do lado de fora, quase encostado ao arame que cercava o quartel, por trás da casa do gerador e da mecânica, quem ia para a tabanca do lado esquerdo, quando se saía a porta de armas.

Mansabá, Abril de 1971 - Senhor José Leal segurando a sua filhota, o Cap Mil Jorge Picado, ajuda, e o Alf Mil Manuel Casal, assiste.
Foto e legenda: © Caros Vinhal. Todos os direitos reservados.

Não de Mansabá, mas de Leça da Palmeira, recebe camarada mansabense Ernesto, um fraterno abraço e os melhores votos de boa saúde.
CV
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

2 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Carlos

Apenas uma dúvida que gostaria de esclarecer, se o camarigo Ernesto Duarte pudesse.
Julgo que ele, quando refere a serração, não é a que teria existido junto da estrada, antes de MANSASUNTO para quem ia de CUTIA, mas não teria já o nosso madeiro máquinas mesmo em MANSABÁ?
Sempre fiquei com esta dúvida.

JPicado

Bispo1419 disse...

Serração em Mansabá:
Diz o meu querido amigo Ernesto que "era logo à entrada, à esquerda, quando se ia de Cutia". E eu confirmo. Passei os últimos seis meses de comissão em Mansabá ao mesmo tempo que o Ernesto (éramos do mesmo batalhão, BCaç.1857). Refere-se ele a uma serração que existia já dentro da povoação (isto em 1967), mais ou menos perto do local em que ele posa na foto da "avenida" (fot. 5). O seu proprietário de então era um homem já "de idade" e morava numa casa pegada à serração, com frente para a tal "avenida". A informação do Carlos Vinhal não condiz, nem na pessoa nem na localização da serração. Talvez o sr José Leal fosse familiar do dono e tivesse herdado a serração mas não me lembro de o ver em Mansabá.
De qualquer modo é de ter em atenção que houve um intervalo de três anos, entre a nossa saída e a chegada do C. Vinhal.

Um grande abraço aos mansabenses de corpo inteiro (toda a comissão), Carlos Vinhal e Ernesto Duarte, de este "mansabense" de título quase emprestado (seis meses).

Manuel Joaquim