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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26365 Notas de leitura (1762): "Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação": apresentação do prof Joop de Song, Simpósio Internacional "Amílcar Cabral: Um Património Nacional e Universal", Praia, Cabo Verde, 9 de setembro de 2024


PAIGC > Foto nº 1 > Soldado com arma (LGFog RPG-7)



PAIGC > Foto nº 2 >  Guiné-Bissaiu, zona norte: evacuação com maca para o Senegal




PAIGC > Foto nº 3 > Exames médicos: uso do microscópico



PAIGC > Foto nº 4 > Intervenção cirúrgica ao ar livre, no mato: médicos cubanos, enfermeiro guineens



PAIGC > Foto nº 5 > Ambulância de Zinguichor, Senegal



PAIGC > Foto nº 6 >  O dr. Roel Coutinho usando a pistola de vacinação


PAIGC > Foto nº 7 > Loja do Povo, em Sara, na região do Oio



PAIGC > Foto nº 8 > Mulher, em escola para adultos


PAIGC > Foto nº 9 > Guerrilheiro, em escola para adultos



PAIGC > Foto nº 10 > Cabo Verde, ilha de Santiago, Praia>  Mural: o juramento de Amílcar Cabral (1969): "Eu jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e em Cabo-Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho".

As fotografias, com exceção da última, são do médico Roel Coutinho. Existe uma série para uso livre de fotografias do Dr. Coutinho no Wikimedia Commons .

https://commons.wikimedia.org/wiki/Commons:Guinea-Bissau_and_Senegal_1973-
1974_(Coutinho_Collection)



Roel Coutinho, 2016, foto de Patrick Sternfeld / capa 
da revista "Benjamin", junho 2016, ano 28, nº 104.
Com a devida vénia...


É hoje um prestigiado médico, epidemiologista e professor,jubilado, de epidemiologia e prevenção de doenças transmissíveis. Esteve no Senegal e na Guiné-Bissau, em missão sanitária que não excluia a simpatia política pelo PAIGC, entre março de 1973 e abril de 1974. (O seu álbum fotográfico, com cerca de 700 documentos, é o mais completo que conhecemos sobre o PAIGC na zona norte; tem 16 referências no nosso blogue.)

Tinha acabado de se licenciar em medicina (em 1972). Especializar-se-ia depois em microbiologia médica. Doutorou-se em 1984, em doenças sexualmente transmissíveis. É um especialista mundial em HIV/Sida, com mais de 600 artigos publicados em revistas científicas.

Roel Coutinho nasceu em 1946, nos Países Baixos, em Laren, perto de Amesterdão, província da Holanda do Norte. Tem ascendência luso-judaica, sefardita: os antepassados, marranos ou cristãos-novos, devem ter saído de Portugal para a Holanda no séc. XVII. Os portugueses, cristãos novos, e de novo reconvertidos ao judaísmo, constituíam uma comunidade prestigiada e influente, pela cultura, o dinheiro e o poder. Sempre usaram os seus apelidos portugueses até à II Guerra Mundial.

Prova da importância da comunidade luso-judaica de Amesterdão (onde nasceu o grande filósofo Espinosa, 1632-1677), é a "Esnoga", a monumental Sinagoga Portuguesa, inaugurada em 1675, e chegou a ter 3 a 4 mil fiéis. Hoje a comunidade está reduzida a umas escassas centenas de pessoas: espantosamente o edifício da "Esnoga Portuguesa", monumento nacional, escapou à destruição da II Guerra Mundial e à ocupação nazi; é visita obrigatória para os portugueses que forem a Amesterdão
. (LG)





Médico, doutorado, psiquiatra e psicoterapeuta: (i) professor emérito de Psiquiatria Cultural e Saúde Mental Global na Amsterdam University Medical Centre;  (ii) professor ajunto emérito de Psiquiatria na Escola de Medicina da Universidade de Boston e professor visitante emérito de Psicologia na Universidade de Rhodes, África do Sul; (iii) fundador e diretor da Organização Psicossocial Transcultural (TPO), que presta serviços de saúde mental e psicossociais, especialmente em áreas de pós-guerra e pós-desastre, em mais de 20 países em África, Ásia e Europa; (iv)  trabalhou  a meio tempo como psicoterapeuta e psiquiatra com imigrantes e refugiados na Holanda: (v)  tem integrado os contributos  da saúde mental pública e global, psicoterapia, psiquiatria, antropologia e epidemiologia em intervenções comunitárias; (vi)  e autor e coautor de 335 artigos, capítulos e livros.
 
(Nota curricular e foto, reproduzidos, com a devida vénia, de: World Association of Cultural Psychiatry)
 


Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação

Por Prof. Joop de Jong


Texto enviado para publicação no nosso blogue, em 7 de setembro último,  pelo nosso leitor,  o Dr. Henk Eggens, de nacionalidade neerlandesa, especialista em saúde pública e medicina tropical, que vive em Portugal (Santa Comba Dão):

"Texto da apresentação que o meu amigo e colega Dr. Joop de Jong (neerlandês) fará na Praia, Cabo Verde, no simpósio Amílcar Cabral no dia 9 de setembro 2024. https://www.100amilcar.com/agenda/event-five-la65y-9xatt (Simpósio Internacional > Amílcar Cabral: Um Património Nacional e Universal | Cabo Verde e Guiné-Bissau, 9-12 de setembro de 2024).

"Trata-se de uma exposição sobre o  sistema de saúde desenvolvido pelo PAIGC na zona norte da Guiné durante a guerra."


__________

O Prof. Joop de Jong foi trabalhar como  jovem médico  nas zonas libertadas no Norte da Guiné en 1973. Voltou como psiquiatra para Bissau em 1981 para desenvolver a psiquiatria no país. Ajudou construir um hospital de psiquiatria no bairro de Brá, Bissau. Publicou sobre "Jangue na Guiné-Bissau: uma síndrome cultural entre as mulheres Balantas".

 De Jong é professor emérito de Psiquiatria Cultural e Saúde Mental Global.


Introdução

O desejo de independência é muitas vezes impulsionado pela indignação moral e pela falta de perspetiva social. Antes da luta pela independência e desde a fundação do PAIGC em 1956, Amílcar Cabral desenvolveu uma visão para reduzir as desigualdades em que os guineenses nascem, vivem e envelhecem. Ele tentou libertar a população guineense do seu atraso em quase todos os domínios da vida: desigualdade social, pobreza, desnutrição, falta de educação e cuidados de saúde. 

Para dar uma ideia dessa tarefa hercúlea: a mortalidade infantil na Guiné Portuguesa era de sessenta por cento em 1954, a doença do sono prevalecia em dois quintos das aldeias, e os hospitais ofereciam um mínimo de cuidados nas cidades (cf. Teixeira da Mota em Cabral 1961). Portugal gastava muito pouco dinheiro em cuidados de saúde em comparação com os países vizinhos (1). 

E os portugueses, ao contrário de outros colonizadores, não se consideravam racistas. Eles não tinham nada contra os asiáticos ou os negros, apenas contra os “nativos incivilizados” que tentavam elevar a assimilados. Nos anos 50 do século XX, 0,39% da população guineense estava registada como “assimilada” (2 ). (Foto nº 1: Soldado do PAIGC com arma. Roel Coutinho). 

A desigualdade social foi causada por uma diferença de poder e recursos. Quando Amílcar e um punhado de camaradas começaram a luta em 1963, eles não tinham poder, dinheiro ou
conhecimento. Como eles lidaram com isso?

Nesta apresentação, descrevemos as iniciativas do PAIGC para melhorar os cuidados de saúde da população e dos combatentes pela liberdade. Mostramos em linhas gerais que o PAIGC - muito antes da reunião da OMS em Alma Ata em 1976 - tentou combater a desigualdade social melhorando a agricultura, a educação e os cuidados de saúde. 

Isso aconteceu em parte como uma reação ao regime português que, ao longo da luta, tornou-se mais severo e aumentou a repressão da população local. E quando a luta pela libertação teve sucesso. De Spínola tentou igualar os sucessos do Partido com o seu programa “Guiné melhor”. Ele até falou sobre “realizar uma verdadeira revolução social para aumentar a autoestima e a dignidade da população” (O Século, 7 de agosto de 1970). 

A dinâmica entre libertador e opressor, entre cuidados curativos e preventivos e entre cultura indígena e moderna, determinou o desenvolvimento dos cuidados de saúde. Esboçamos esses desenvolvimentos desde o início da luta.

O início da guerra

Durante a primeira fase da luta, o objetivo era “cuidar dos feridos com os meios disponíveis”. “Meios disponíveis” como eufemismo para os quatro enfermeiros que se formaram em Bissau e se tornaram membros do Partido. Esses enfermeiros treinavam socorristas que eram selecionados entre os guerrilheiros (3). Uma dessas socorristas é a heroína nacional Titina Silá (4). 

Os socorristas eram integrados nas unidades de combate para salvar o máximo possível de soldados e outras vidas com alguns curativos, líquido desinfetante e soro antitetânico. Os gravemente feridos eram transportados em macas feitas de galhos até a fronteira. E,  de lá, evacuados a uma grande distância para as capitais dos países vizinhos, Conacri ou Dakar. (Foto nº 2: Evacuação com maca para Senegal. Roel Coutinho).

O auge da luta

Entre 1965 e 1970, o PAIGC conquistou cada vez mais áreas libertadas. Os portugueses responderam com "a cenoura e o pau”. Por um lado, deslocaram a população local para as
“aldeias protegidas”
["reordenamentos"].

Esta abordagem foi copiada dos franceses na Argélia e dos americanos no Vietname. O objetivo era “proteger” as guarnições militares contra-ataques dos “terroristas” com a ajuda de uma camada de habitantes locais. Por outro lado, o mato foi bombardeado com mais frequência. O PAIGC adaptou-se organizando o máximo possível de cuidados acessíveis nas zonas libertadas para militares e moradores das aldeias . Nesse período, foi criada uma rede de mais de cem postos de saúde (5) . 

Enfermeiros auxiliares formaram a espinha dorsal do serviço médico e ofereceram cuidados básicos. Os pacientes podiam ser internados temporariamente enquanto aguardavam a visita de um médico do hospital mais próximo. Casos de emergência eram transportados para lá em macas. (Foto nº 3 : exames médicos mo, com uso do microscópico. Roel Coutinho).

Num nível de atendimento superior, foi criada uma rede de hospitais setoriais e regionais (6) . Aqui, os pacientes encaminhados eram tratados e os enfermeiros auxiliares eram treinados.

Os hospitais foram construídos com materiais locais. Tudo era feito de ramos e palha e ficava bem escondido entre as árvores. Duas cabanas alongadas com vinte camas cada para
os doentes. Uma cabana como consultório, uma como sala de operações e algumas cabanas para o pessoal. Muito era feito ao ar livre. (Foto nº 4: Operação no ar livre. Médicos cubanos, enfermeiro guineense. Roel Coutinho).

Devido à construção simples, tudo podia ser facilmente deslocado. Quando os bombardeamentos  aumentaram, o PAIGC decidiu que cada hospital deveria ser deslocado anualmente (7) . Incluindo doentes e pessoal, isso levava cerca de três dias.

Cabral (1975, II: 216) percebeu a importância dos cuidados autónomos nas áreas libertadas. penas casos muito graves eram evacuados para um dos três hospitais nos países vizinhos (8) .

A liderança do Partido também percebeu que os cuidados eram muito curativos e distantes da população para fazer algo sobre a terrível condição de saúde dos moradores rurais (9). Essa péssima saúde estava relacionada à desnutrição, que por sua vez estava relacionada com a imposição colonial de cultivar culturas comerciais em detrimento das culturas alimentares. A má condição de saúde também era resultado da falta de higiene, baixa taxa de vacinação e alta taxa de analfabetismo. 

Duas iniciativas deveriam melhorar essa situação. Cada setor recebeu uma brigada de saúde composta por três assistentes. Eles tentaram ensinar aos aldeões os princípios de higiene, nutrição e cuidados materno-infantis. E encaminhavam os doentes para os postos de saúde. Com sucesso variável. Cabral lamentou que os “camaradas não prestassem atenção suficiente às brigadas de saúde” (Cabral 1971: 13) (10). 

A segunda iniciativa preventiva consistia em campanhas de vacinação e na prevenção da malária com redes mosquiteiras e profilaxia da malária. (Foto nº 5. Ambulância, Ziguinchor, Senegal.Roel Coutinho).

Vacinação

O médico holandês Roel Coutinho trabalhou em 1973 nas áreas libertadas. Ele descreve uma viagem pela floresta para ir fazer vacinação  num acampamento:

"Com a velha ambulância, dirigimo-nos de Ziguinchor, no Senegal, até a fronteira com a Guiné-Bissau.

"Em ritmo acelerado e em silêncio mortal, caminhámos por 1,5 horas por um caminho estreito através de uma floresta escura. Com uma 'canoa', atravessámos o rio. Esperámos na borda densamente arborizada da floresta ao longo do rio. Alguns soldados surgiram entre as árvores. Quando entrámos na floresta, vi que o acampamento estava ali. Espalhados entre as árvores estavam camas com redes mosquiteiras penduradas acima. Alguns soldados desapareceram entre as árvores para avisar que haveria vacinação e consulta. (Foto nº 6:  O Dr. Roel Coutinho vacinando com pistola de vacinação.  Roel Coutinho):

"Revezávamo-nos para vacinar com a pistola de vacinação. Quando a pistola de vacinação ficava bloqueada por poeira, os enfermeiros mudavam rotineiramente para seringas e agulhas. Durante as consultas, verificou-se que um dos pacientes estava em tão mau estado que teve de ser levado de maca e ambulância de volta para o hospital em Ziguinchor# (De Jong & Buijtenhuijs 1979).

O Partido investiu muito tempo na melhoria e diversificação da agricultura e na criação de lojas comunitárias onde os agricultores podiam trocar seus produtos por itens de primeira
necessidade. (Foto nº 7: Loja do Povo, Sara. Roel Coutinho).

E o Partido incentivava o que hoje chamamos de atividades geradoras de rendimento.

Outra prioridade foi a emancipação das mulheres, por exemplo, através da educação. (Foto nº 8: Escola para adultos, mulher; foto nº 9: Escola para adultos, guerrilheiros).

Cultura

E o PAIGC descobriu, através de tentativa e erro, que a cultura era uma espada de dois gumes.

A atitude de Cabral em relação à cultura pode ser melhor descrita nestes termos: “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Assim, os curandeiros guineenses, como em inúmeras outras culturas da África Subsaariana, oferecem proteção contra balas e, naturalmente, contra a feitiçaria e bruxaria. 

Cabral sabia que alguns combatentes se sentiam invulneráveis por causa disso. Por isso, ele às vezes enviava um ajudante para evitar que um comandante se levantasse e avançasse no meio de uma chuva de balas (11). 

A cultura e os modelos de explicação cultural também desempenham um papel nas consultas médicas, tanto no tratamento individual quanto nas iniciativas de saúde pública.

É difícil aceitar que pacientes com tuberculose interrompam seu tratamento médico assim que a tosse com sangue pára. Curandeiros respondem a esse enigma após uma longa série de entrevistas: 

“Claro que sabemos que vamos morrer se tossirmos sangue e, por isso, vamos ao hospital com seus medicamentos poderosos. Mas o que vocês não entendem é que a hemorragia é causada por uma flecha ou bala invisível para vocês, de uma arma de feitiçaria que atinge o peito por dentro. E o curandeiro ou curandeira é o único que pode curar essa ferida. Por isso, os pacientes vêm até nós o mais rápido possível após suas injeções e pílulas para uma verdadeira cura”.

Mas Cabral e a liderança do Partido também testemunharam as terríveis consequências do poder da cultura durante o primeiro congresso do Partido em Cassaca em 1964. Um grupo
de mulheres Balantas nómadas fez acusações de feitiçaria. As mulheres diziam que as bruxas eram responsáveis pela morte de aldeões, enviando aviões e helicópteros portugueses para
atacá-los. 

Os anais do Partido não são claros sobre esse período, mas provavelmente algumas centenas de bruxas foram torturadas e mortas por comandantes do PAIGC. Esses comandantes tiveram que responder durante o congresso do Partido e cerca de uma dezena deles foram condenados à morte (De Jong, 1987; De Jong & Reis, 2010: 313; 2013). 

Vinte e cinco anos depois, os Balantas foram tomados por um culto de possessão em massa, o Ki-yang-yang. O culto de cura emancipa a posição das mulheres entre os Balantas, bem como
a posição dos Balantas dentro do Estado guineense.

 O culto também ajuda os Balantas a lidar com o trauma da luta pela libertação (De Jong & Reis, 2010; 2013). Os seguidores estão convencidos de que os líderes um dia tirarão uma motocicleta do chão para todos. A semente dessa esperança mítica foi plantada por Amílcar, que prometeu prosperidade material à população após a independência.

Discussão

Um sistema de saúde é composto por todos os atores que tentam melhorar a saúde e os cuidados. O sistema é construído sobre serviços, trabalhadores da saúde, medicamentos essenciais, financiamento, liderança e sistemas de informação. Vimos que esses componentes estavam ausentes no início da luta pela independência e que o PAIGC operava num vácuo.

O movimento de libertação construiu, num período de aproximadamente 15 anos, um sistema de saúde simples. O sistema de saúde fornecia cuidados curativos consistindo em diferentes escalões de postos e hospitais nas áreas libertadas e nos países vizinhos. Com o objetivo de organizar cuidados acessíveis, próximos e acessíveis para os combatentes e a população local. Numa fase posterior, o Partido focou-se na descentralização e na prevenção.

Quanto à escassez de trabalhadores da saúde, o Partido organizou uma cascata de níveis de formação e treino. Médicos estrangeiros e médicos guineenses que retornaram do exterior, 
treinavam e supervisionavam várias categorias de trabalhadores da saúde locais. 

É uma forma de educação continuada que gradualmente resulta em competência crescente. Mas, na independência, o nível dos enfermeiros era insuficiente, tanto do lado do PAIGC quanto do lado colonial. Isso também se aplicava aos médicos que estudaram na Universidade Lumumba em Moscovo.

O Partido também estabeleceu um sistema de distribuição de medicamentos. A maioria desses medicamentos foi doada por países comunistas e comitês de solidariedade. (Foto nº: Praia, Cabo Verde, mural: Retrato e juramento de Cabral).

Cabral conheceu bem o país e as pessoas durante o Recenseamento Agrícola de 1953, anos antes da fundação do PAIGC. Ele percebeu a importância do que hoje chamamos de desenvolvimento intersetorial. Agricultura, economia, desenvolvimento rural, educação, saúde e emancipação das mulheres estão interligados. E a sinergia só pode ser alcançada através da colaboração com outros domínios e setores.

A Organização Mundial da Saúde afirmou em 2008 que a saúde da população mundial só pode melhorar trabalhando nos determinantes sociais da saúde. 

Algumas décadas antes, o PAIGC e Amílcar Cabral já se concentravam em fatores que reduzem a desigualdade social entre as pessoas. Dentro das suas possibilidades limitadas, fizeram tudo o que podiam para melhorar as condições precárias em que os guineenses nasciam, cresciam e envelheciam.

___________

Notas do autor:

(1) Em 1959, per capita, 1,1 US$. Libéria 1,6. Mauritânia 4,2. Serra Leoa 19,1 (Rudebeck 1974:39; De Jong & Buijtenhuijs 1979: 115).

(2) Para obter mais ou menos os direitos de um cidadão português, o assimilado tinha que cumprir requisitos como: ter mais de 18 anos, falar bem português, sustentar-se, ter um modo de vida civilizado e não ser recusador de serviço ou desertor (Rudebeck 1974: 22).

(3) E que muitas vezes perderam um membro na luta ou sofrem de uma doença grave como a lepra.

(4) Em 1963, ela foi escolhida para ir à União Soviética para uma formação em guerra de guerrilha, junto com Teodora Inácia Gomes. Após o seu regresso, ela treinou outros guerrilheiros. Em 1964, ela fez um curso de primeiros socorros na União Soviética. Em 30 de janeiro de 1973, ela foi morta em uma emboscada pelo exército português. Ela se afogou no rio Farim, a caminho do funeral de Amílcar Cabral, que foi assassinado uma semana antes.

(5) 117 postos de saúde. Na frente sul, 42; na frente norte, 64; e na frente leste, 11 (De Jong &; Buijtenhuijs, 1979).

(6) No total, 13. Em 1973, havia sete hospitais setoriais (3 no Norte, 3 no Sul e 1 no Leste) e seis hospitais regionais (2 no Norte, 3 no Sul e 1 no Leste). Os hospitais regionais começaram a ser estabelecidos a partir de 1966 e eram dirigidos por um cirurgião, e os hospitais setoriais a partir de 1971, sob a direção de um assistente médico.

(7) Assim, o hospital de Sara foi deslocado dezassete vezes em um ano devido a bombardeamentos e ataques por tropas transportadas por helicópteros. Ninguém ficou ferido. Desde então, os hospitais eram regularmente deslocados.

(8) Para três hospitais no exterior. O bem equipado Hospital de Solidariedade, em Boké, com 123 leitos, onde os feridos evacuados da frente sul foram tratados. Em 1972, 136 feridos de guerra, 72 fraturas e 9 amputações foram realizadas aqui. Isso explica por que Cabral disse a um jornalista que "temos tão poucos feridos que mal vale a pena mencionar#".  Os doentes e feridos da frente leste também iamj para a Guiné Conacri, ou seja, para o hospital em Kundara, com 50 leitos. E os da frente norte para o hospital em Ziguinchor, também com 50
leitos. Havia laboratórios simples e dois dos três hospitais tinham uma sala de operações e uma seção de raios-X.

(9) As doenças mais comuns em 1975 foram: infeção por ancilostomíase (66%); desnutrição proteica e energética (48%); tracoma (42%); anemia (34%); malária (34%); hérnia abdominal (27%); filariose (21%); infeções respiratórias (15%); vermes intestinais (10%); infeções cutâneas (%); ceratite (9%); bócio (8%); catarata (5%). 64% precisavam de cuidados odontológicos (A Saúde em Oio 1975: 49-53).

(10) Na frente norte, as brigadas nunca foram realmente ativas. Alguns comissários políticos, como Carmen Pereira, incentivaram as brigadas. E, ao contrário dos cuidados básicos de saúde na China, o Partido exerceu pouca pressão, como também é evidente no diário de Roel Coutinho (2022).
 
(11) Nino Vieira, que mais tarde liderou o golpe contra Luís Cabral, é um exemplo do que os companheiros de luta consideravam um caso de invencibilidade ou invulnerabilidade.

Bibliografia:

A. Cabral (1961) Report to the United Nations.

A. Cabral (1971) Sobre alguns problemas práticos da nossa vida e da nossa luta.

A. Cabral (1975) Unité et lutte I et II. François Maspéro. Paris.

Roel Coutinho (2022) De vrijheidsstrijd van Guinee-Bissau door de ogen van een jonge
dokter. Afrika Studie Centrum. Leiden.

Joop de Jong & Rob Buijtenhuijs (1979) Een bevrijdingsbeweging aan de macht [A liberation
movement in power]. De Uitbuyt. Wageningen.

Jong de, J.T.V.M. (1987) A descent into African psychiatry. Royal Tropical Institute.
Amsterdam. ISBN 90 6832 018 1.

Jong de, J.T.V.M. (1987) Jangue in Guinee Bissau: een cultuurgebonden syndroom onder
Balanta vrouwen [Jangue in Guinea Bissau: a culture bound syndrome among Balanta
women]. Ned Tijdschrift v Psychiatrie 2, 5886.

Joop T. de Jong & Ria Reis (2010) Kiyang-yang, a West-African post-war idiom of distress.
Culture, Medicine and Psychiatry, 34, 2, 301-321.

De Jong, J.T.V.M., Reis, R. (2013) Collective trauma píprocessing: Dissociation as a way of
processing postwar traumatic stress in Guinea Bissau. Transcultural Psychiatry, 50 (5) 644-
661.

Rudebeck, L. (1974) Guinea Bissau: A Study of Political Mobilization. The Scandinavian
Institute of African Studies. Uppsala.

Saúde em Oio (1975). Minsas. Bissau.

(Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: HE / LG)

_________________

Nota do editor LG:

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)


1. A escolha é do nosso amigo, camarada e grão-tabanqueiro Alberto Branquinho (n. 1944, Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69); tem cerca de 150 referências no nosso blogue: é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo".

Comentário ao poste P26331 (*): "Aí vai um, do poeta Daniel Filipe, que é uma referência à diáspora caboverdiana. quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 às 18:45:00 WET(*)

[ Poeta e jornalista, de origem cabo-verdiana, Daniel Damásio Ascensão Filipe, ou simplesmente Daniel Filipe, nasceu em 1925, na Ilha da Boavista, em Cabo Verde (donde saiu aos 2 anos, para nunca mais lá voltar. mas sem nunca ter cortado o cordão umbilical  que o ligará para sempre à sua terra ), e morreu em 1964, em Lisboa, muito precomente,aos 39 anos. Era filho de uma senhora da Ilha da Boavista e de um coronel médico, deportado. Na poesia destacou-se pela de denúncia e contestação, aliada a uma fina sensibilidade lírica. Foi perseguido e preso pela PIDE. Pelo menos dois dos seus livros foram proibidos pela censura: "O Manuscrito na Garrafa" (romance, 1960); e "Pátria, lugar de exílio" (poesia, 1963)... "A Invenção do Amor" (1961) é uma das suas obras mais conhecidas. Esperemos que em 2025 Portugal e Cabo-Verde decidam comemorar condignamente o 1º centenário deste grande poeta lusófono que tem hoje duas pátrias. LG]


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA

Farto de sol e de areia
que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará.

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta.
Deixou para sempre a horta
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-feia
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

- E nunca mais voltará.


In: Daniel Filipe - Pátria Lugar de Exílio. Poesia em Tempo de Guerra. Lisboa:
 Presença, 1963.
__________

Nota de AB: A palavra "nha" em crioulo se bem que signifique "minha" em relação a pessoa, é "senhora".

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Nota do editor LG:

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26331: A Nossa Poemateca (4): Força de Crecheu, de Eugénio Tavares (1861 - 1930) (escolha de Luís Graça)


Cabo Verde > Ilha da Brava > 6 de novembro de 2012 > Estátua do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930)...

["Brava é uma ilha e concelho do Sotavento de Cabo Verde. A sua maior povoação é a vila de Nova Sintra. O único concelho da ilha tem cerca de sete mil habitantes. Com 67 km², Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde, e tem uma densidade populacional de 101,49/km². A ilha tem uma escola, um liceu, uma igreja e uma praça, a Praça Eugénio Tavares". Fonte: Wikipédia]


Foto (e legenda): © João Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Escolha do nosso editor Luís Graça, em homenagem ao país da morna e ao seu grande poeta (vd. no poste P20651 uma tradução para português de Portugal). É considerado também um protonacionalista, tendo sido obrigado a exilar-se, em 1900, nos EUA, donde regressa com a República (1910). Além de poeta, foi também um notável jornalista,  contista e até dramaturgo. Escreveu em português e em crioulo cabo-verdiano. Popularizou a morna e a poesia em crioulo (foi ele que lhe deu estatuto de língua literária).

Força de Crecheu

por Eugénio Tavares (1861-1930)



Ca tem nada na es bida
Mas grande que amor.
Se Deus ca tem medida,
Amor inda é maior...
Amor ainda é maior,
Maior que mar, que céu:

Mas, entre otos crecheu,
De meu inda é maior

Cretcheu más sabe,
É quel que é di meu.
Ele é que é chabe
Que abrim nha céu...
Crecheu mas sabe
É quel 
Qui q'rem
Se ja' n  perdel,
Morte ja bem

Ó força de crecheu,
Abri'n  nha asa em flor!
Dixa'n  alcança ceu
Pa'n bá oja Nós Senhor,
Pa'n bá pedil semente
De amor coma es de meu
Pa'n bem da todo gente
Pa todo bá conché ceu!

Eugénio Tavares


Fonte: Eugénio Tavares: poesia, contos, teatro. Recolha, org. e pref. Félix Monteiro; org. e introd. Isabel Lobo. Praia : Instituto Caboverdiano do Livro e doo Disco, 1996, pp. 111/112.
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26328: A Nossa Poemateca (3): Adeus, irmão branco!, de Geraldo Bessa Victor (Luanda, 1917 - Lisboa, 1985) (escolha de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26224: Recortes de imprensa (141): Morreu aos 80 anos o comandante do PAIGC, Júlio de Carvalho ("Julinho"), e também primeiro cmdt das Forças Armadas de Cabo Verde ("A Semana", de 26nov2024)


Júlio de Carvalho (1943 - 2024).
Foto. Cortesia de ACOLP / A Semana,
 26nov2024

1. Recorte de imprensa que nos chega através do nosso amigo e camarada Zeca Macedo
 (ex-2º tenente fuzileiro especial, RN, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74; nasceu na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951; vive nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 13/2/2008):


Data . terça, 26/11, 14:06


Luis, junto te envio anoticia publicada hoje, dia 26 de Novembro, sobre o falecimento do Comandante Júlio Carvalho, um dos heróis da Luta pela Independência de Cabo Verde (e da Guiné)

 Ab, Ze Macedo

2. Recortes de imprensa  > Óbito: Faleceu Júlio de Carvalho o primeiro comandante das Forças Armadas de Cabo Verde

A Semana, 26 nov 2024


Faleceu na madrugada de hoje, na cidade da Praia, o primeiro comandante das Forças Armadas de Cabo Verde, Júlio de Carvalho, também combatente da liberdade da Pátria, comunicou a Associação dos Combatentes da liberdade da Pátria (ACOLP).

Julinho Carvalho, como era conhecido, de acordo com a ACOLP, nasceu no Mindelo a 27 de Janeiro de 1943, estudou no Liceu Gil Eanes, onde se destacou pela sua “participação apaixonada” pelas atividades desportivas, tendo inclusive integrado a seleção de voleibol do referido liceu.

Nessa altura, refere um comunicado da ACOLP, com Abílio Duarte, toma conhecimento dos ideais da luta pela independência de Cabo Verde desenvolvida pelo PAIGC, com as quais ele logo se simpatizou, tendo em 1961 viajado para Portugal onde se inscreve como estudante de Engenharia Química,  juntamente com Amaro da Luz, Tito Ramos, e outros estudantes nacionalistas.

“Decidido a exercer um papel activo na luta encabeçada pelo PAIGC, nos finais de 1964, Julinho foge para Paris onde se junta a Manecas Santos, Manuel Delgado, Joaquim Pedro Silva e Olívio Pires. Sob a orientação de Pedro Pires, ele participa na mobilização de um grupo de cabo-verdianos emigrantes na região de Moselle, na França”, lê-se no comunicado da ACOLP.

Júlio de Carvalho, segundo explica ACOLP, integrou a luta armada em Kandjafara, como comandante de artilharia da Frente Sul e, em Maio de 1973, participou na operação que culminou com a tomada do quartel fortificado de Guiledge, prenunciando o fim da ocupação portuguesa na Guiné.

Após o 25 de Abril de 1974, participou nas primeiras negociações com militares portugueses realizados a 15 de Julho, em Cantanhez, no sul da Guiné, visando o estabelecimento de um cessar fogo na Guiné, tendo em fins de 1974, depois da Independência da Guiné, permanecido em Bissau onde, durante cinco anos, exerceu as funções de comissário político das Forças Armadas.

Depois do golpe de Estado de 1980,  estabeleceu-se em Cabo Verde onde exerceu funções de ministro do Interior, primeiro e, de seguida, ministro da Defesa e Segurança, no último mandato de Pedro Pires como primeiro-ministro.

Com a derrota eleitoral do PAICV, fixou residência no Sal onde viveu nos últimos tempos como empresário.

Júlio de Carvalho foi membro da Comissão Política do PAICV e durante toda a sua vida de luta evidenciou, conforme a ACOLP, um “grande patriotismo” como “um elevado espírito de sacrifício e dedicação” em prol de Cabo Verde.
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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26215: Fotos à procura de... uma legenda (189): quem ainda chegou a conhecer o Portugal do Minho... a Timor ?



Foto nº 1 > Moçambique > Lourenço Marques > 1951 > Vista aérea


Foto nº 1A > Moçambique > Lourenço Marques > 1951 > Vista aérea


Foto nº 1B > Moçambique > Lourenço Marques > 1951 > Vista aérea


Foto nº 1C > Moçambique > Lourenço Marques > 1951 > Vista aérea

Foto nº 2 > ?

Foto nº 3 > ?


Foto nº 4 > ?


Foto nº 5 > ?

Foto nº 6 > ?

Foto nº 7 > ?

1. Estas fotos sáo do princípio dos anos 50. Para já não vamos citar a fonte, que é para os nossos leitores poderem fazer o TPC este fim de semana... sem ajudas.

Dizem respeito às ex-colónias portuguesas, promovidas em 1951 à categoria de "províncias ultramarinas"... Estão aqui todas representadas, menos Angola... A nº 1 náo tem nada que enganar: é Lourenço Marques, com algumas das suas artérias e  edifícios emblemáticos... Quem, dos nossos leitores, a chegou a conhecer pode identificar facilmente alguns pontos de referència.

As outras (de 2 a 7) podem ser mais difíceis de identificar: 

  • um trecho de costa (nº 7), 
  • a vista aérea de uma capital (nº 6),  
  • um hospital psiquiátrico recém-inaugurado (nº 5), 
  • umas salinas (nº 4),
  • uma embarcação típica (nº 3),
  • mais uma vista aérea de uma capital com a sua conhecida baía (nç 2)...
Eu nunca cheguei ao Índico, aliás só conheço a Guiné e Luanda (não posso dizer que conheço Angola)... E de Cabo Verde, só pisei o areoporto do Sal... Aliás, nem pisei, não saí do avião, que lá fez escala em 1970..

Mas temos aqui, entre os nossos leitores, gente que conheceu bem o nosso antigo "império colonial"... Não é nenhum exercício de saudosismo..."colonialista". Mesmo se todos nós fomos, de uma maneira ou outra, "colonialistas"... Bastava ter, afinal, vestido a farda do exército colonial, a do caqui amarelo ou, mais tarde,  a  camuflada... 

O António Rosinha tem razão, ele não foi o único "colón"...Às vezes, coitado, até parece que está aqui sozinho na Tabanca Grande...

Bom, quem quer dar uma ajuda ?
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26189: Fotos à procura de... uma legenda (188): é mesmo a última das 4 fotos aéreas de que falta identificar a localização, diz o fotógrafo, Morais Silva, cap art, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, em finais de 1971

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Confrontado com esta nova linguagem do Boletim Oficial da Província da Guiné que passou a ser omisso quanto à história política, económica e social, reduzindo-se à rotina burocrática, vi toda a vantagem em revisitar o acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva na sua gigantesca obra A Presença Portuguesa na Guiné, 1878-1926. No texto de hoje, são referidos os dois primeiros governadores, Agostinho Coelho e Pedro Ignacio de Gouveia, tiveram que apagar incêndios, sobretudo à volta de Geba e na região do Forreá, são notórios os lugares onde ainda não há presença portuguesa, as hostilidades sucedem-se, exigindo expedições, punições, perdões e tratados de paz, muitas destas iniciativas são pura fantasia, os insubmissos voltarão à carga. A França tudo vai fazendo tudo o que pode para pôr os Fulas revoltosos, aquela região sul ainda é para ela um grande atrativo, para juntar ao Futa-Djalon. Aqui fica o registo de duas governações dificílimas, há pouquíssimo dinheiro, os meios navais são frágeis e até há revoltas no Batalhão de Caçadores nº1, com os oficiais punidos.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2)

Mário Beja Santos

Estamos agora no Governo de Agostinho Coelho, ele é o 1.º Governador da Guiné como província independente de Cabo Verde, desembarca em Bolama a 20 de abril de 1879. Começa por mexer no dispositivo militar, constituiu o Conselho do Governo, a província da Guiné é dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola, Bissau compreende a vila de S. José e o presídio de Geba, Cacheu inclui, além da praça deste nome, os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor enquanto Bolola inclui Sta. Cruz de Buba e todos os mais pontos que venham a ocupar-se no Rio Grande, era esta a divisão administrativa da Guiné autónoma. É claro que havia porções do território ainda não ocupadas, outros com presença duvidosa, e esta situação irá perdurar por algumas dezenas de anos. A divisão administrativa levantou críticas e o Governador seguinte, Pedro Ignacio de Gouveia, fará alterações.

Melhorou o equipamento naval, havia a canhoneira Rio Lima, vai chegar o vapor Guiné, o Rio Lima regressará a Cabo Verde. O coronel Agostinho Coelho tinha à sua espera problemas que requeriam inadiável solução, era indispensável garantir um quadro de normalidade em Buba, os Futa-Fulas impunham tributos aos negociantes. O Governador procurou fazer tratados com régulos, havia pretensões territoriais francesas no sul, o Governador deixou um documento esclarecedor sobre a situação existente no Rio Grande:
“É uma das zonas mais produtivas da província; as suas margens são povoadas até muito para o interior por tribos laboriosas e agrícolas e convém a todo o custo dar-lhe segurança e proteção. Há nas margens deste rio 53 feitorias portuguesas e francesas, onde vão muitos navios à carga; porém, estes agricultores, têm vivido até hoje expostos aos vexames dos Futas, os quais, em diversas épocas do ano, percorriam os vários estabelecimentos e exigiam, mesmo à mão armada, o tributo a que eles chamam dacha. Cobravam a título de senhores do território um imposto de proximamente 12 mil pesos, e os cofres da província nada lucravam. Como medida de transição, determinei que a importância da dacha fosse paga pelos negociantes por uma comissão composta da autoridade militar de Buba e de três negociantes, competindo a esta comissão reunir, em determinado dia do ano, os principais chefes Fulas e Futas, a quem distribuiria com o simples caráter de presentes, alguns donativos em panos, armas, e bijutarias, uma parte do produto do imposto, entrando na Fazenda o resto, quando o houvesse.” E mais adiante dirá que houve resistência dos negociantes franceses que tentaram atrair os chefes indígenas para ações de descontentamento.

O Governador empregou esforços para a ocupação do Rio Grande, assinou em Buba o tratado de paz com os régulos de Biafadas e com o chefe principal do Forreá. O Governador informa Lisboa que com este tratado terminava uma guerra encarniçada entre etnias. Mas havia continuidade de problemas em Geba, encontravam-se em guerra Fulas-Pretos e Mandigas. Atenda-se a um parágrafo de um documento que Agostinho Coelho mandara ao Governo: “Geba era antigamente o principal centro de resgate do ouro e do marfim na Guiné; hoje do primeiro aparece muito escassa quantidade e do segundo nem a mínima partícula. Dirigi-me a Geba, e foi aí tal o espanto produzido pela aparição de um navio a vapor que muito do interior vieram inúmeras pessoas verificar tão assombroso facto. Esta romaria de visita ao Guiné durou nos 3 dias em que nos conservámos em Geba. Os Fulas-Pretos e Mandigas andavam em guerra, Agostinho Coelho reforçou a defesa de Geba. Dá-se a sublevação do Batalhão de Caçadores n.º 1. O capitão e o ajudante suscitavam comentários injuriosos acerca dos actos de Governo da província. Agostinho Coelho aplicou-lhes dois meses de prisão, houve tentativas de levantamento, o Governador respondeu mandando levantar autos do corpo de delito".

Tavares da Silva destaca a dimensão daquela Guiné com o propósito de degredados, estes, por sua vez, eram sujeitos a um tratamento vexatório, o Governador tomou providências para aquilo que hoje se designa reinserção social. Foram efetuados tratados, houve esforço para a pacificação do Forreá, que culminou com o tratado de paz com os régulos do Forreá e do Futa-Djalon. Mas a questão nevrálgica dava pela delimitação da Guiné, havia a presença estrangeira, particularmente a francesa, fazia-se uma enorme pressão para a ocupação de pontos onde a administração portuguesa não se encontrava estabelecida. O Governador pede a Lisboa recursos financeiros; se havia problemas no sul, surgiram novos problemas fronteiriços envolvendo o Senegal. O que se passava no sul era preocupante, o próprio governante comunica que naquele sul era débil o movimento comercial, muita gente a viver em condições miseráveis, o que inaceitável.

Assim se passaram dois anos é nomeado novo Governador, o 1.º Tenente da Armada Pedro Ignacio de Gouveia, toma posse do cargo em dezembro de 1881, após três semanas de permanência no território, manda uma exposição ao Governo, constata que os povos da região estão longe da civilização, fala sobre o cultivo da mancarra, o principal produto agrícola de exportação, manifesta dúvidas que em pouco tempo se faça a substituição desta cultura de um produto pobre como é a mancarra pela cana sacarina, algodão ou café e cacau. Manifestando a sua preocupação sobre as produções agrícolas da província, escreve:
“A árvore que dá borracha e que aqui é abundante também sofre umas incisões primitivas: se na América ainda não compreendem bem a maneira de obter-lhe o líquido sem prejuízo temporário da árvore, aqui o definhamento é quase completo e o produto que sai é perfeito.” Falando do elemento militar ao Governo, é profundamente crítico: “As autoridades subalternas não são sempre aquelas que coadjuvam melhor o magistrado superior da província: o elemento militar tem o seu lado bom e o seu lado mau. Quando o militar não é ilustrado, e que saiu unicamente da fileira, sem noções razoáveis de administração civil, colocado à frente do concelho, vê nos indivíduos que o rodeiam soldados ou, quanto muito, sargentos. Se este indivíduo, entregue aos próprios recursos naturais, e uns hábitos de vida que destoam completamente da sua educação militar, não é vigário a mando, principia a destemperar e, por fim, desproposita, estabelecendo completamente a desarmonia social.” Pede meios de transportes, recorda a dificuldade em obter o combustível apropriados para os navios a favor.

Ignacio de Gouveia lança uma nova expedição contra os Biafadas de Jabadá, a exposição acontece em janeiro de 1882, está ciente de que deu uma lição aos rebeldes, é feita a paz com o régulo de Jabadá, fará outros tratados de paz, é confrontado com novos atritos com os Fula-Forros de Bakar Quidali. Muitos anos mais tarde, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Fausto Duarte louva o documento enviado por Pedro Ignacio de Gouveia a Lisboa, dizendo a seu favor: “Espírito lúcido, observador arguto e com uma cultura digna de apreço […] Não faz literatura, nem procura servir-se de artifícios de linguagem para esconder ou mesmo diminuir certas deficiências da administração local. Num período incerto para a vida da província que adquirira a tão almejada autonomia política, mas se via a braços com toda a sorte de dificuldades, era preciso expor ao Governo de Sua Majestade em toda a sua crueza variadíssimas contrariedades que mantinham dentro de certos limites a ação do Governador.”

Mas ainda iremos falar adiante deste Governador, haverá acusações de alegada escravatura, novas desavenças em Geba e Buba, o alferes Marques Geraldes entra em cena, haverá perda do vapor Guiné, operações em Nhacra, a criação de escolas em Bissau e Bolama, dar-se-ão passos na organização administrativa e na ocupação do território.
1902, o Boletim Oficial passa por uma fase burocrática, não há conflitos, não há tensões políticas, é só rotina administrativa
Notícia da chegada de novo governador, em novembro de 1902, o 1º tenente da Armada Judice Biker
Pedro Ignacio de Gouveia
Imagem do que foi o último Palácio do Governador em Bolama

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 8 de novembro de 2024 > 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não escondo o pasmo e admiração do conteúdo dos anos mais recentes do Boletim Oficial da Província da Guiné, tornou-se numa enfadonha rotina administrativa: nomeações, exonerações, movimento marítimo, questões orçamentais, boletins do estado sanitário das principais povoações, questões alfandegárias, etc., etc. Até parece que a província vive num estado de serenidade absoluta, não há rebeliões, nem necessidade de tratados de paz, não há conflitos com a demarcação das fronteiras, até parece que acabou a guerra do Forreá. Vi-me, pois, na contingência de procurar material que desse contraponto ao que vem no Boletim Oficial. Ora, temos um documento de peso, o vasto e importante acervo documental é que procedeu Armando Tavares da Silva em A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016, obra indispensável para quem pretende estudar este período. Ele abre o seu trabalho com os estabelecimentos portugueses do distrito da Guiné em 1888, por conflitos em Bolor e em Geba, e depois de diferentes peripécias chegamos à transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, estava-se em 1879.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1)

Mário Beja Santos


Em 2016, era publicado "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos. É, indiscutivelmente, um acervo documental de peso, uma investigação minuciosa com a justificada chamada de atenção para acontecimentos relevantes de uma Guiné que deixava de ter categoria de distrito na dependência de Cabo Verde e passava a ser província autónoma.

Apropriadamente, o autor chama a atenção para o apelo feito pelo ministro da Marinha e Ultramar para que os governadores habilitassem o Governo com elementos suficientes para poder nessas províncias fomentar a implantação e desenvolvimento de diferentes ramos da indústria, a que melhor se prestem as condições especiais de cada uma delas. E 18 de fevereiro a 21 de março de 1878, o Governador-Geral de Cabo Verde visita os estabelecimentos portugueses na Senegâmbia. Em abril dá conta da visita: há possibilidades de desenvolvimento do território, Bolama tem uma excelente posição geográfica (estava então indicada para capital de distrito) e fez notar que os antigos estabelecimentos em Geba, Farim e Ziguinchor, Cacheu e Bissau se encontravam em notável decadência. Previa para Buba um próspero futuro. O Governador conta a Lisboa que se encontrou com os principais chefes das tribos, ele notou disposição amigável destes chefes com os portugueses. Face a este ofício, o ministro da Marinha faz publicar uma portaria em que determina ao Governador-Geral de Cabo Verde que fossem elaborados plantas e orçamentos dos edifícios a construir em Bolama. Havia uma grande insatisfação quanto à atenção prestada aos poderes públicos do distrito da Guiné. Ainda o Governo não tinha tomado medidas efetivas quando a situação muda totalmente devido ao chamado “desastre de Bolor”.

Havia neste ponto do Norte da Guiné um grave conflito interétnico, fora arrasada Bolor, o Governador Cabral Vieira fez juntar uma força para punir os conflituosos, dá-se um massacre que deixou as autoridades de Lisboa em sobressalto, vão barcos de homens armados para intimar as populações e elabora-se um relatório, quem o escreve é o Secretário-Geral do Governo de Cabo Verde, Castilho Barreto. No documento afirma ter havido um procedimento inconveniente por parte do administrador do concelho de Cacheu que forneceu pólvoras e balas aos rebeldes. Havia indiscutivelmente influência estrangeira que alimentava estas insubordinações, eram sobretudo súbditos franceses, estava em curso o plano para ocupar o rio Casamansa.

O assunto vai à Câmara dos Deputados, elaborara-se um projeto para transformar a Guiné em província independente, como observa o autor a opinião dos deputados não foi unânime, mas mesmo assim houve luz verde em março. Estabelecia-se que o Governo da província teria a sua sede na ilha de Bolama, transferia-se para a Guiné o Batalhão de Caçadores n.º 1, o Governo fica autorizado a organizar uma bateria de artilharia para guarnecer as fortalezas da província da Guiné, previa-se o estabelecimento de comunicações regulares a vapor entre a Guiné e a metrópole, o que só virá a acontecer mais tarde, em 1881, foi celebrado um contrato com a Empresa nacional de navegação para o serviço de navegação por barcos de vapor entre Lisboa e os portos de África Ocidental. Vamos agora ver o Governo de Agostinho Coelho, 1.º Governador da Guiné.
Armando Tavares da Silva

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)