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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27223: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda II: serviço de "guarda de honra" ao tribunal militar



Guiné > Bissau > Antiga Av da República > Edifício da administração civil onde funcionavam os tribunais (civil e militar) > c. 1917/73 >  Hoje é sede do Supremo Tribunal de Justiça da República da Guiné-Bissau >  Foto do álbum do José Romãoex-fur mil at inf, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73.


Foto (e legenda): © José Romão (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 




Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense, Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura bastante conhecida no seu país, Cabo Verde: radialista, jornalista, escritor, etnomusicólogo... Natural do Mindelo, vive na Praia. É autor, no nosso blogue, da série "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)", de que se publoicaram 9 poestes mais uma adenda (*)

 
1. Manda-nos agora um comentário ao poste P27222  (**):

Data - 16 set 2025 14:22

Assinto - Comentário ao poste do Abilio Magro

Olá, caro, amigo:

Começo a me recompor do choque (***), vou tentando voltar à normalidade. Obrigadíssimo pelo teu apoio, naquele momento difícil no passado mês de Agosto. Na Guiné, dizem: mês de Agosto, mês de desgosto! Isso numa alusão ao Massacre de Pidjiguiti em 1959! Pois é, desde que vivi entre 1973 e 1975 que fiquei com esse horror ao mês de Agosto… talvez agora, um trauma.

Olha, vi o post do amigo e companheiro Abílio Magro (**), não resisto e fazer um comentário, que segue abaixo:

Em Bissau, após a minha chegada, ao QG/CTIG, talvez meio e mês depois, fui escalado para esse serviço,  “Guarda de Honra”, num julgamento no Tribunal Militar em Bissau que decorreu, no Palácio da Justiça ou o edifício que funcionava como tal, ali perto da Igreja (julgo um pouco abaixo) do lado direito da Avenida principal, que ia desembocar na Praça do Império, hoje, Praça dos Heróis Nacionais em Bissau. 

Recordo, era um julgamento de guineenses que tinham sido presos por ligações à guerrilha, logo eram vulgarmente chamados «turras». 


O «protocolo» era o mesmo descrito pelo Abílio Magro, só que a mim deram-me na arrecadação uma pistola Walther, os soldados eram todos guineenses, acho, do recrutamento local, levaram G-3. 

O serviço de Guarda de Honra durou apenas um dia, o julgamento é claro continuou, pois havia outros na escala para esse serviço. Quando começou, ouvimos o início, acusações em “apresentar arma”, mas depois, só lá ficaram dois soldados de sentinela dentro do tribunal; o resto, ficava cá fora e de hora em hora iam render os que estavam na sala. 

Por isso, recordações sobre acusações não ficaram, pior ainda, nunca mais me interessei, depois daquele dia de calor intenso, durante o serviço no Tribunal em Bissau.

Já agora, me lembro, que havia uma série de serviços e escalas, que se faziam pelo uma vez, para além escalas que cumpríamos uma vez por mês: 

  • Guarda (na entrada principal do QG em Santa Luzia); 
  • Piquete (ronda nocturna no bairro de Cupelon oi Pilão);
  • Guarda da PIDE (parte traseira). 

Para além destes, pelo menos a mim, coube apenas uma vez, ser nomeado «escrivão» num processo em que estava envolvido um guineense, que foi capturado no mato, logo acusado de ajudar o IN. Estava preso, ali pelos lados de Brá, numa prisão de um quartel que já não me lembro o nome. 

Quando chegamos lá, numa tarde, eu, escrivão, e o alferes inquiridor, encontrãmos os presos a jogar futebol! O encarregado da prisão, que era cabo-verdiano, ficou surpreso com a nossa chegada. Apitou logo, o jogo parou e começou logo a contagem de quantos eram os presos! 

E explicou-nos: "Temos de estar sempre atentos, pois se um deles fugir, sou o responsável!"

 Voltaram todos para as celas, ficou apenas o preso, que fomos interrogar. Não durou muito tempo, pois o alferes fez a leitura das declarações que estavam no auto e o preso confirmou tudo. Logo, foi rápido, assinámos e fomos embora.

Já agora, recordo, o primeiro serviço de «guarda de honra» que fiz, foi no dia 1 de Dezembro de 1972, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, Missa, no Dia da Restauração. 

Fiquei espantado, com a presença de um grande número de altas patentes, de tenente-coronel para cima!!! Felizmente tudo correu bem; para mim foi a primeira vez que entrava naquele monumento, vi o túmulo de Luís de Camões.

Forte Abraço, vida e saúde

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado

(Revião / fixação de texto: LG)

____________________

Notas do editor LG:


(*) Vd. postes de:

16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26924: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda I: Kalú de Nhô Roque e a sua "circunstância"

13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses


(**) Vd poste de 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27222: Humor de caserna (212): Dura lex sed lex!...Guarda de Honra ao tribunal millitar (Abílio Magro, ex.fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, 1973/74)


(***) Vd- poste de 9 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27104: In Memoriam (558): Dúnia Ivone Ramos Gonçalves (1976-2025), filha do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, CefInt / QG / CTIG, Bissau, 1973/74): o funeral é amanhã, às16h00, no Cemitério da Várzea, Praia, Cabo Verde

sábado, 30 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas


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1. "30 pessoas morriam por dia, no Mindelo", em São Vicente, no auge da fome que grassou em Cabo Verde... A cidade do Mindelo, cuja economia era muito dependente do tráfego marítimo, foi profundamente afectada pela guerra, e  não escapou aos horrores da seca e da fome. Aí estavam estacionados alguns milhares (c. de 3300)  expedicionários portugueses, como o 1º  cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5).

Os mortos eram levados em esquife e enterrados em vala comum, no cemitério de Monte Sossego. Não se sabe qual foi a morbimortalidade entre os soldados, mas também deve ter sido elevada (por turbeculose, doenças diarreicas, e outras). (No total, em mais de 6 mil homens mobilizados para Cabo Verde, nesta época, terá  morrido  circa 1 %.)

Foi, só mais tarde,  ao ler o romance Hora di Bai (editado pela Vértice em 1962), do Manuel Ferreira (1917-1992), expedicionário como o meu pai (esteve no Mindelo entre 1941 e 1947), que eu me apercebi  dessa tragédia imensa, a seca e  a fome que assolou, em 1941/43,  o arquipélago de Cabo Verde (e depois de novo, no pós-guerra em 1947/48). 

E que matou meninos como o Joãozinho, que rondavam o quartel e que o meu pai protegia, dando-lhe os restos de comida. Era o seu 'impedido".

Recordo-me de o meu pai, à beira de completar 90 anos, em 2010,  já não ser capaz de dar, com precisão, as datas em que terá ocorrido o pico da epidemia de fome. Muitos de nós ainda não tiveram  a consciência dessa tragédia que, de resto, também não foi conhecida pela população portuguesa metropolitana da epoca. Cabo Verde ficava longe... Até por que em no Portugal metropolitano a morte, nomeadamente a mortalidade infantil (mais de 120 casos por 1000!) era banal, a par da mortalidade por tuberculose entre os jovens (10% de todas as mortes!). 
 

Luís Henriques
 (1920 - 2012).
Faria 105 anos
em 19 de agosto de 2025.
Os números que o meu pai cita (30 mortes por dia no Mindelo), devem referir-se ao 1º semestre de 1943. Ele diz que "não viu,  ouvia dizer",  
quando esteve internado ("quatro meses"), no hospital militar (ou anexo, um estabelecimento de repouso,  a nordeste da cidade do Mindelo), já na parte final da sua comissão. Ele esteve 26 meses na Ilha, como expedicionário entre julho de 1941 e setembro de 1943. 'Farto de engolir pó ". Teve alta da junta médica hospitalar em 17/8/1943. 

De qualquer modo, trinta mortos por dia era muita gente, numa ilha que não teria mais do que 15 mil habitantes (em 1940), e contou com a presença de mais de 3300 (!) expedicionários, entre meados de 1941 e finais de 1943 (o que dava um elevada densidade militar na ilha: 4,5 habitantes por cada expedicionário).

Os "expedicionários" fizeram o que puderam,  organizando esquemas de socorros à vítimas nas zonas onde estavam aquartelados (Lazareto, etc.).

Mais de 2/3  dos do total dos efetivos  (c. 6500 homens) estavam afetos à defesa do Mindelo (ou seja, do porto atlântico,  Porto Grande,  ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia “vapor” (barco), com mantimentos e correio, de três em três meses…  A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos (c.  20 mil em todo o arquipélago) tiveram impacto na consciência de bom português,  bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques, órfão de mãe aos dois anos (vítima de tuberculose, na sequência ainda da pneumónica ou "gripe espanhola" que matou 2% da população portuguesa, que era então de 6 milhões).

O seu "impedido", o Joãozinho, de 5/6 anos (se bem recordo), que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Estava o meu pai  no hospital. Deu todo o dinheiro que ali tinha (c. 16 escudos) para o enterro do seu "Joãozinho". Ouvi muitas vezes esta história dolorosa na minha infância...


Secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX: uma tragédia quase ignorada ainda hoje pelos portugueses


O século XX em Cabo Verde foi marcado por uma trágica sucessão de secas e fomes que dizimaram a população, forçaram a emigração em massa e deixaram cicatrizes profundas na memória coletiva do arquipélago.

Estes períodos de crise, longe de serem meros desastres naturais, foram exacerbados por 3 factores principais:

  • negligência da administração colonial portuguesa;
  • políticas agrárias inadequadas;
  • vulnerabilidade estrutural de um território semiárido.

(i) Causas (estruturais e conjunturais)

  • Clima saheliano, muito variável: precipitação baixa e irregular, concentrada em poucas semanas (sobretudo ago-set), com longos períodos secos; anos sucessivos sem “água grande” provocavam quebras de safra em cadeia; o regime de chuvas depende do posicionamento/força da Frente/Zona Intertropical e de variações atlânticas, o que amplifica a irregularidade anual;
  • Base alimentar frágil:  forte dependência do milho (e feijões) que, quando falhava(m) seguia-se fome, doença e mortalidade;
  • Degradação ambiental: solos insulares delgados , erosão, sobrepastoreio e arborização insuficiente, limitando retenção de água e resiliência agrícola;
  • Fatores político-económicos coloniais:  fraco  investimento público, prioridades orçamentais restritivas no Estado Novo, falhas de abastecimento/armazenamento de água, mercado (inclusive especulação), e uma resposta tardia à crise.

(ii) Principais crises de secas e fomes no séc. XX

As crises mais devastadoras ocorreram em três vagas principais: no início do século, nos anos 20 e, de forma particularmente brutal, na década de 1940.

(i) A Viragem do Século: 1901/04

O início do século XX já anunciava as dificuldades que estariam por vir. Um ciclo de seca severa entre 1901 e 1904 provocou uma fome generalizada, resultando em mais de 20 mil mortos.

As três razões que explicam a situação de total desproteção da população:

  • falta de investimento em infraestruturas de armazenamento de água,
  • dependência de uma agricultura de sequeiro;
  • ausência de um plano de contingência por parte do governo colonial.

A resposta tardia e insuficiente, focada em trabalhos públicos de pouco impacto, não foi capaz de mitigar a mortalidade e o sofrimento.


(ii) A Crise dos Anos 20: 1921/22

Duas décadas depois, a história repetiu-se com contornos ainda mais dramáticos. A fome de 1921/22, novamente desencadeada por uma seca prolongada, ceifou a vida a dezenas de milhares de cabo-verdianos.

A situação foi agravada pela crise económica que Portugal atravessava, durante a I República, e a seguir ao fim da I Grande Guerra, o que limitou ainda mais a capacidade e a vontade de prestar auxílio à colónia.

A emigração, principalmente para São Tomé e Príncipe em condições de trabalho análogas à escravatura, tornou-se a única via de escape para muitos, desestruturando famílias e comunidades inteiras.


(iii) A Grande Fome dos Anos 40: O Auge da Tragédia


A década de 1940 representa o período mais sombrio da história contemporânea de Cabo Verde, com duas vagas de fome de uma violência inaudita. Em 1943 estavam no Mindelo o meu pai, como expedicionário, e o Amílcar Cabral, como estudante do liceu.

1941/43: uma seca implacável mergulhou o arquipélago numa crise alimentar sem precedentes; a produção agrícola colapsou; as reservas de alimentos esgotaram-se rapidamente; a resposta do governo de Salazar foi notoriamente inadequada, com a ajuda a chegar a conta-gotas e a ser distribuída de forma ineficaz;  cerca de 20 mil pessoas morreram de inanição e de doenças associadas à subnutrição.

1947/49: mal refeito do choque anterior, o arquipélago foi atingido por um novo e ainda mais mortífero período de seca e fome; esta crise, que ficou gravada a fogo na memória popular, resultou numa catástrofe demográfica: Ilhas como Fogo e Santiago foram particularmente afetadas, com relatos de aldeias inteiras dizimadas.

Foi neste contexto de desespero que ocorreu o "Desastre da Assistência", a 20 de fevereiro de 1949, na cidade da Praia. Centenas de famintos que aguardavam a distribuição de comida junto a um centro de assistência, morreram quando um muro desabou sobre a multidão. Matou oficialmente 232 pessoas (há quem estime em 3 centenas ou mais)

Este evento trágico tornou-se um símbolo da inépcia e da desumanidade da resposta colonial à fome.


(iv) Mortalidade estimada

Estudos demográficos clássicos (António Carreira, compilados e discutidos por trabalhos recentes da Universidade Nova de Lisboa) estimam as seguintes perdas populacionais líquidas em termos de mortes (e alguma emigração de crise), superiores a 100 mil;
  • 1902–1903: –21 899 pessoas (≈ 12,5% da população)
  • 1920–1921: –22 886 (≈ 10,0%).
  • 1941–1943: –18 679 (≈ 6,2%).
  • 1947–1948 (“o Flagelo de 47”): –44 600 (≈ 16,3%).

Observação: estes números são estimativas robustas usadas na historiografia cabo-verdiana; variam ligeiramente por fonte, mas dão a ordem de grandeza das perdas humanas.


(v) Consequências e Legado

  • Elevada Morbimortalidade por inanição e epidemias associadas (disenterias, etc.):  estima-se que as fomes do século XX tenham causado a morte a uma parte significativa  da população cabo-verdiana (mais de 100 mil no séc. XX);
  • Emigração forçada/contratada como válvula de escape: dezenas de milhares de cabo-verdianos seguiram para as roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe ao longo do século (primeiras vagas desde 1903; picos nas décadas de 1930–50); as condições foram duras e marcaram a memória coletiva: muitos cabo-verdianos foram enviados à força, em condições desumanas, para trabalhar nas plantações de cacau e café, numa forma de trabalho forçado que deixou um legado de trauma e exploração;
  • Desestruturação Social: a perda de vidas e a emigração massiva desestruturaram a sociedade cabo-verdiana, com um profundo impacto nas estruturas familiares e comunitáriasm
  • Reconfiguração social e cultural: reforço da diáspora e das remessas; trauma coletivo refletido em obras como Chiquinho (Baltasar Lopes) e em canções de resistência sobre “Fome 47” ou a "Hora di Bai", de Maniuel Ferreira;
  • Consciência Política / Mudança política a longo prazo: a gestão desastrosa das crises de seca e fome por parte do regime colonial português alimentou o contestação ao imobilismo do Estado colonial; refiorçou o sentimento nacionalista e foi um dos catalisadores para a luta pela independência, que seria alcançada em 1975; no pós-independência o país investiu em dessalinização, açudes/valas e redes de abastecimento para reduzir a vulnerabilidade (embora a variabilidade climática permaneça); te,-.se procuradeo também reflorestar as ilhas.

As memórias destas tragédias continuam vivas na cultura cabo-verdiana, presentes na música, na literatura e na tradição oral, servindo como um lembrete constante da resiliência de um povo que, apesar de abandonado à sua sorte, soube sobreviver e reconstruir o seu futuro.

Em resumo choques climáticos recorrentes atingiam uma agricultura de sequeiro muito dependente do milho, sobre solos frágeis e com infraestruturas e políticas coloniais inadequadas. Quando a chuva falhava um ou dois anos seguidos, a produção ruía e o arquipélago, com pouca capacidade de armazenar/redistribuir alimentos, entrava rapidamente em crise de subsistência com mortalidade e êxodos significativos.

Apresenta-ae a seguyir um ronologia das grandes secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX, com referência às ilhas mais afetadas e alguns elementos de contexto (chuva, mortalidade, emigração).

Cronologia resumida – Secas e Fomes em Cabo Verde (séc. XX)

1902/03
  • Contexto: 2 anos seguidos de “fome de sequeiro” (chuvas quase nulas).
  • Ilhas mais afetadas: Santiago, São Nicolau, Santo Antão.
  • Consequências: ~22 mil mortos (12,5% da população).
  • Início de emigração em massa para roças de São Tomé (contratados).

1920/21
  • Contexto: nova falha de chuvas após ligeira recuperação.
  • Ilhas: Santiago e Fogo muito castigadas; escassez generalizada.
  • Consequências: ~23 mil mortos (10%).
  • Aumenta fluxo emigratório para São Tomé e EUA.
  • “Milho do Brasil” (importado) foi crucial, mas tardio.

1941/43
  • Contexto: falhas de safra coincidentes com restrições da Segunda Guerra Mundial (importações limitadasm dificuldades de transprote marítimo).
  • Ilhas: quase todo o arquipélago, mas Santo Antão e São Nicolau registam graves perdas.
  • Consequências: ~19 mil mortos (6%).
  • Epidemias de disenteria e malnutrição.

1947/48 – “O Flagelo de 47”
  • Contexto: seca prolongada, colheitas de milho quase nulas.
  • Ilhas: todas afetadas, com gravidade em Santiago, Fogo e São Nicolau.
  • Consequências: ~44,6 mil mortos (16%). Grande mortandade em povoados do interior.
  • 20/02/1949, Praia – “Desastre da Assistência”: colapso de muro numa distribuição de alimentos → 232 mortos oficiais. Aumento dramático da emigração contratada para São Tomé e clandestina para América. Trauma coletivo cristalizado em música, literatura (Chiquinho).
  • Distribuição geográfica dos impactos: Santiago: historicamente a mais vulnerável (densidade populacional alta, pouca resiliência) | Santo Antão e São Nicolau: também muito afetadas, devido ao peso da agricultura de sequeiro ! Fogo e Brava: alternância entre boas colheitas e fome, mas sempre fortemente dependentes do milho | al, Boavista e Maio: menos agrícolas, mais dependentes de importação → crises por falta de abastecimento, não tanto por seca direta.

Notas finais:
  • Perdas humanas totais (1900/50): ~100 mil mortos em crises de fome — cerca de 1/3 da população média do período.
  • Emigração de crise: estima-se que dezenas de milhares saíram como contratados para São Tomé (1903–1970), e muitos outros emigraram clandestinamente para EUA, Senegal, Guiné, Portugal.
  • Após 1950s: melhores redes de abastecimento, socorros externos (ajuda alimentar), dessalinização e obras hidráulicas reduziram a mortalidade em secas, mas não eliminaram a dependência externa.

Fionte: Pesquisa LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT)
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27164: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (8): a pequena burguesia urbana guineense, de origem cabo-verdiana, na génese e desenvolvimento do PAI / PAIGC e do PAICV

 


Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)

 Capa do livro  de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral:   um outro olhar" (Lisboa, Chiado Editora, 2014). Com a devida vénia ao blogue "Baía da Lusofonia"



1. Cremos que está por estudar o papel  dos  cabo-verdianos na colonização e administração da Guiné...A frase é dita com cautela: não somos especialistas nesta matéria, e muito menos na história do PAIGC, da Guiné-Bissau, de Cabo Verde...

Além de comerciantes, os "colonos" cabo-verdianos foram "ponteiros" (donos de pontas, pequenas explorações agrícolas nas zonas férteis das bacias hidrográficas, outrora postos comerciais...), mas também, um ou outro,  grandes proprietários agrícolas (produção de arroz), fabricantes de aguardente de cana,  donos de embarcações que faziam as ligações fluviais, pequenos e médios funcionários públicos (em áreas como a administração civil, o ensino, a saúde,  os correios, a banca, etc.).

Enfim, fizeram parte também da elite intelectual e social do território (por exemplo, foram dirigentes associativos), mesmo tratando-se  de uma pequena comunidade que nos anos 50/60 não devia ultrapassar as 1500 pessoas, mas que era maior e tinha mais importância do que a dos sírio-libaneses (*).

Com base no nosso blogue e e com ajuda da IA (Gemini, Perplexity, ChatGPT), vamos explorar  algumas  pistas e identificar alguns exemplos, sobretudo no século XX. 

É um pequeno contributo para a série "Os 50 anos da independência de Cabo Verde"(**), país lusófono a que nos ligam fortíssimos laços históricos e afetivos, tal como a Guiné- Bissau.
 
  • muitas famílias cabo-verdianas ocupavam empregos intermédios nas grandes casas comerciais (como a Casa Gouveia, do grupo CUF, a Sociedade Comercial  Ultramarina, do grupo BNU, a Barbosas & Cia, e Ed. Guedes Lda, e outras firmas de importação/exportação instaladas em Bissau e Bolama, incluindo as francesas SCOA e NOSOCO);
  • eram também funcionários administrativos (chefes de serviços, administradores, chefes de posto), bancários, professores primários, empregados dos correios, etc, nomeadamente em setores onde a oferta local guineense era muito mais reduzida devido às barreiras coloniais no acesso à educação ( até tarde, não havia ensino médio nem secundário no território).
  • este grupo  formava uma pequena burguesia urbana, com maior escolaridade, que servia de “almofada” entre os colonizadores portugueses e a maioria da população guineense;
  •  até 1961 o guineense ("não- assimilado") tinha o estatuto de "indígena", enquanto o cabo-verdiano era cidadão português; 
  • curiosamente não sabemos se os comerciantes sírio-libaneses, ou de origem sírio-libanesa, já tinham nos anos 50/60, a cidadania portuguesa; parece-nos que sim, pelo menos os já nascidos no território, face à legislação em então em vigor.

(i) Do colonialismo à resistência

Essa mesma camada social irá fornecer os primeiros quadros ao PAI (Partido Africano para a Independência) (até 1962) e depois PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

A família Cabral parece ser  o exemplo mais emblemático:

  • Juvenal Cabral (pai de Amílcar e Luís Cabral) era cabo-verdiano, professor primário na Guiné, teve numerosos  filhos )cerca de duas dezenas!), de, pelo menos, 3 mulheres);
  • os filhos Amílcar Cabral (engenheiro agrónomo e fundador do PAI / PAIGC) e Luís Cabral (primeiro presidente da república da Guiné-Bissau) vieram diretamente dessa pequena burguesia urbana,  escolarizada;
  • há um segundo meio-irmão de Amílcar Cabral, mais novo, que também já vimos referenciado no livro de memórias do Luís Cabral como dirigente ou militante do PAIGC, embora de 2ª linha (Tony Cabral ?);
  • as respetivas esposas também eram de origem cabo-verdiana: Ana Cabral (a segunda esposa de Amílcar Cabral); e Lucette Andrade, a esposa do Luís (era uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar).
Fica.se com a ideia de que o PAI/PAIGC era, originalmente, um quase "negócio de família" (sob a liderança férrea, autoritária e centralizadora,  do engº Amílcar Cabral, o único que teve acesso ao ensino superior universitário na metrópole, o único teórico, o único estratega, o único diplomata, o único político, etc., do Partido).

Muitos dos primeiros militantes e dirigentes do PAI / PAIGC  (professores, pessoal de saúde, funcionários e comerciantes de origem cabo-verdiana, etc,.) tinham precisamente passado por esta experiência: servir o Estado colonial ou casas comerciais ( os verdadeiros "colonos") e acabar por romper com o sistema que os limitava social, profissional e politicamente.

  • Luís Cabralfilho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa (?), foi contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma "cunha" do irmão, conceituado engenheiro agrónomo formado no prestigiado ISA - Instituto Superior de Agronomia, da então Universidade Técnica de Lisboa.

  • Aristides Pereira  foi chefe da Estação Telegráfica dos CTT, e  o Fernando Fortes   o chefe da Estação Postal (na prática os "donos" dos CTT de Bissau, mesmo debaixo de olho da PIDE; se não mesmo "colaborantes" com a polícia política).


Há aqui uma contradição social  interessante:
  • por um lado, os cabo-verdianos foram peças-chave no aparelho colonial português na Guiné (quem eram os europeus que queriam vir para Guiné como administradores e chefes de posto professores, médicos, enfermeiros, bancários, empregados das alfândegas, dos correios,  das finanças, etc. ?)

  • por outro, a sua maior escolarização e contacto com ideias políticas (vindas de Lisboa, Dacar, Conacri,  Paris) deu-lhes ferramentas para enquadrar e  liderar o movimento independentista (não vamos discutir aqui a hegemonia do PAI/PAIGC e como foi conseguida);

  • essa é uma das razões porque o PAI / PAIGC se afirmou com uma liderança inicial fortemente cabo-verdiana, embora depois tenha procurado ampliar a sua base social de apoio (entre camponeses e trabalhadores urbanos guineenses, com destaque para os balantas, que foram os homens do mato. a "carne para canhão").


Faltam-nos dados biográficos e historiográficos, documentados, para identificar todos os "históricos" do PAI/PAIGC.

Uns eram cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana; outros  podiam ter ou não laços de parentesco, por sangue ou casamento,  com famílias cabo-verdianas.

 Ocorre-nos à memória  gente oriunda sobretudo da pequena burguesia escolarizada ou já com alguma qualificação profissiomal, que trabalhou quer na administração pública quer nas casas comerciais, vindo a desempenhar posteriormente funções de relevo, políticas e/ou e militares, no PAI/PAIGC

  • Domingos Ramos: nascido em Bissau, e, ao que parece, trabalhou como auxiliar hospitalar antes de fazer a tropa,. tendo frequentado o 1º Curso de Sargentos Milicianos da província, em 1959, com o nosso camarada Mário Dias); acabou por desertar, e passar pela Guiné-Conacri e pela China, regressando depois como comandante da Frente Leste;  iria morrer em combate em novembro de 1966, em Madina do Boé; tornou-se um dos primeiros "heróis da luta de libertação";
  •  João Bernardo “Nino” Vieira: eletricista, terá aderido ao PAI/PAIGC em 1960; rapidamente se tornou uma figura-chave na luta de guerrilha e também um "mito" ao olhos das NT (que o viam por todo o lado, dotado como Deus do dom da "ubiquidade"); depois da independência seria o primeiro-ministro no regime de Luís Cabral e, em 14 de novembro de 1980, liderou um golpe de Estado que acabou de vez com outro "mito", o da unidade Guiné-Bissau - Cabo Verde (as feridas entre guineenses e cabo-verdianos ainda hoje não estão saradas, 'Nino' foi o histórico carrasco da poderosa facção cabo-verdiana do PAIGC.

(ii) Contexto histórico e papel das casas comerciais como a Casa Gouveia

O "massacre de Pidjiguiti" (1959) teve forte ligação à Casa Gouveia: marinheiros e estivadores em greve muitos deles associados à esta casa comercial, foram repri­midos violentamente, desencadeando uma radicalização política no seio das forças nacionalistas e independentistas. Parece todavia ser um "mito" o papel do PAI (só mais tarde PAIGC)  e a transição definitiva para a luta armada.

Outros  exemplos podem ser apontados para  ilustrar  o duplo percurso de alguns pequenos e médios  quadros cabo-verdianos: inicialmente integrados nas estruturas coloniais,  aproveitando a sua formação e contactos (inclusive com outras diásporas cabo-verdianas) para organizar, enquadrar e comandar a luta política e depois militar contra o domínio português.
 
(iii) Esquema cronológico com o papel dos cabo-verdianos na Guiné

Embora nos faltem muitos detalhes, pode-se dizer que a presença cabo-verdiana na Guiné foi ao mesmo tempo um pilar do sistema  colonial português e viveiro de resistência (ou de "subversão", como dizem as autoridades portuguesas da época),  contradição que pode explicar muitas tensões (e proximidades) entre guineenses e cabo-verdianos, mesmo até hoje.

Uma linha cronológica pode ser organizada passando por:

  • chegada e papel dos cabo-verdianos no comércio e na administração (sécs. XIX-XX),

  • formação da pequena burguesia urbana ligada às casas comerciais (como a Gouveia),

  • a viragem para a luta anti-colonial  (a partir das independências na África Ocidental, mas também do ano-charneira de 1959),

  • e a passagem dessas figuras para a liderança do PAI / PAIGC.

Século XIX

  • Até 1800/50 : cabo-verdianos (sobretudo mestiços) atuam como "lançados", comerciantes e mediadores culturais entre colonos portugueses e populações locais da Guiné;

  • 1852/59:  Honório Barreto, de ascendência cabo-verdiana, governa a Guiné em nome de  Portugal, reforçando o comércio e a presença administrativa.

Final do século XIX – início do século XX

  • 1880/1920: expansão das “pontas” (pequenas propriedades agrícolas) e do cultivo de arroz por cabo-verdianos (e outros) fixados nas margens dos rios.

1900/1930: migração de professores, funcionários públicos, bancários e empregados comerciais cabo-verdianos para a Guiné; surge uma pequena burguesia urbana que ocupa cargos intermédios em casas comerciais (Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina, SCOA, NOSOCO...), bancos, correios e ensino primário


D

écadas de 1930/40
  • Cabo-verdianos passam a constituir a maioria dos quadros intermédios da administração colonial (estima-se mais de 70% dos postos públicos).

  • Famílias como a dos Cabral, destacam-se:

    • Juvenal Cabral, cabo-verdiano, professor primário;

    • Os filhos Amílcar e Luís Cabral recebem formação escolar diferenciada, que lhes abre  caminho para os estudos superiores (Amílcar começa a escola, faz o liceu no Mindelo e consegue uma bolsa para ir para  Lisboa).

Década de 1950
  • A pequena burguesia cabo-verdiana cresce em importância nas cidades (Bolama, Bissau, Bafatá...);

  • 1956: fundação do PAI (Partido Africano da Independência) em Bissau, por Amílcar Cabral e outros, com forte núcleo inicial cabo-verdiano;

  • 3 de agosto de 1959: "massacre de Pidjiguiti", durante uma greve de estivadores ligados à Casa Gouveia (papel controverso do administrador cabo-verdiano António Carreira),


Década de 1960

  • 1961: primeiras ações armadas (o protagonismo ainda não é do PAI/PAIGC);

  • mobilização (clandestina) de militantes e simpatizantes do futuro PAIGC ( trabalho de sapa sobretudo de Rafael Barbosa);

  • 21 de janeiro de 1963: ataque, precipitado,  a Tite (que a propaganda do PAIGC transforma noutro "mito",  o início histórico da luta armada contra Portugal);

  •  Domingos RamosJoão Bernardo “Nino” Vieira e outros futuros "comandantes" formam-se na China.

Década de 1970
  • 1973: assassinato de Amílcar Cabral em Conacri;

  • 24 de setembro de 1973: proclamação  unilateral da independência da Guiné-Bissau alegadamente na região fronteiriça do Boé (uma encenação  com forte apoio logístico e diplomático de Cuba, Guiné -Conacri, Suécia, etc.)

  • Luís Cabral, cabo-verdiano, torna-se o primeiro presidente da Guiné-Bissau;

  • Antigos quadros da administração colonial cabo-verdiana passam a integrar o novo Estado, depois da saída dos portugueses em setembro de 1974; outros "retornam" a Cabo Verde, a Portugal, ou emigram,

Resumo interpretativo
  • Colónia → Cabo-verdianos eram funcionários, comerciantes e pequenos proprietários.

  • Nacionalismo → Essa posição intermédia deu-lhes acesso à educação, redes políticas e contactos (internos e externos) que permitiram a formação do núcleo dirigente do PAI / PAIGC.

  • Independência → Os descendentes dessa pequena burguesia (como a família Cabral) assumiram o comando político e estatal na nova Guiné-Bissau e em Cabo Verde.


Lista (exemplificativa) de militantes e dirigentes cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) do PAI / PAIGC

1. Amílcar Cabral

Filho de pais cabo-verdianos, nasceu na Guiné-Bissau. Formou-se engenheiro agrónomo em Lisboa e, em 19 de setembro de 1956 (data controversa), cofundou o PAI, depois transformado em 1962 no PAIGC, juntamente com Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio de Almeida e Elisée Turpin (facto também por documentar com rigor).

2. Luís Cabral

Meio-irmão de Amílcar Cabral, também de origem cabo-verdiana, foi cofundador do PAI / PAIGC e tornou-se o primeiro presidente da Guiné-Bissau independente, em 1973/74.

3. Rafael Paula Barbosa

Nascido em Safim, filho de mãe guineense e pai cabo-verdiano,  participou na formação inicial do PAI, inclusive recrutando membros. Esteve a maior parte do tempo preso, sendo libertado por Spínola em 1969: exerceu ainda funções simbólicas no partido em determinados momentos críticos.

4. Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC e a criação do PAICV

Após a fundação do PAI / PAIGC , foi criada em Cabo Verde uma comissão com cabo-verdianos como Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Olívio Pires, membros do Conselho Superior da Luta, embora com atuação mais simbólica e clandestina em Cabo Verde (nunca guerrilha nas ilhas).

Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e outros receberam formação militar em Cuba e na URSS antes de serem integrados como altos quadros militares nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) do PAIGC. 

Mas os cabo-verdianos no mato, de armas na mão, na Guiné,  eram poucos, se os compararmos com os "internacionalistas cubanos": terão morrido 2  cabo-verdianos, contra 17 cubanos...

Em 20 de janeiro de 1981 será criado na Praia, Cabo verde,  o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV)... Diz-se hoje de centro-esquerda, de ideologia social-democrata, depois de ter aderido, em 1990, à "democracia multipartidária" (após a queda do muro de Berlim).

O PAICV nasceu da cisão com o PAIGC (e na sequência do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, em Bissau, liderado por 'Nino' Vieira). O então Secretário-Adjunto do PAIGC (e  Presidente de Cabo Verde) Aristides Pereira tornou-se Secretário-Geral do PAICV.

5. Outros nomes entre os fundadores do PAI / PAIGC

  • Aristides Pereira:  posteriormente tornou-se presidente de Cabo Verde, foi um dos fundadores; de origem cabo-verdiana;

  • Fernando FortesJúlio de Almeida e Elisée Turpin: também mencionados entre os fundadores do PAI/PAIGC, com ligações à comunidade cabo-verdiana e à oposição ao Estado Novo.

6. Outros

Embora não sejam necessariamente cabo-verdianos, eram elementos da pequena burguesia escolarizada, incluindo professores e funcionários,  cedo integraram o PAI / PAIGC como quadros políticos, administrativos e militares. 

Exemplos como Domingos Ramos“Nino” Vieira, e Tiago Aleluia Lopes são sobretudo guineenses, mas surgiram da mesma estrutura social urbana onde muitos cabo-verdianos estavam presentes e interligados, o que ajudou à formação dos primeiros militantes e redes de ação.


Síntese em tabela
NomeOrigem / Vínculo Cabo-VerdianoPapel no PAI / PAIGC
Amílcar CabralPais cabo-verdianos, nascido na GuinéCofundador, líder intelectual e estratégico do PAIGC

Luís CabralIrmão de Amílcar, origem cabo-verdianaCofundador do PAIGC, primeiro Presidente da Guiné-Bissau

Rafael Paula BarbosaPai cabo-verdianoLigado à construção civil, recrutador inicial e dirigente simbólico
Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Olívio PiresCabo-verdianos, fundadores do CNCVProcessos de mobilização e comando militar logo no início

Aristides Pereira, Fortes, Almeida, Irmãos Turpin
Cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) nos fundadores do partidoLegitimidade política e binacional da causa


(Pesquisa: Blogue | LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT, Perplexity)

(Revisão / fixaçãod e texto, negritos: LG)

_________________

Notas do editor LG:

(*) vd. poste 26 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27153: A nossa guerra em números (37): Colonos - Parte II: cabo-verdianos (uma pequena burguesia que, na Guiné, foi viveiro de militantes e dirigentes do PAIGC)

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27158: Felizmente ainda há verão em 2025 (25): Cabo Verde, onde os sonhos proliferam e as águas azuis dão as bem-vindas aos visitantes (José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), com data de 25 de Agosto de 2025:

Cabo Verde, onde os sonhos proliferam e as águas azuis dão as bem-vindas aos visitantes

Visita aos seus sabores, às suas gentes e a Ilhas de inigualáveis prazeres

Cabo Verde, com nove ilhas habitadas – Santiago, Fogo, Maio, Brava, Boa Vista, Sal, São Vicente, Santo Antão e São Nicolau -, é atualmente um país onde os seus sabores comestíveis, ou a delicadeza das suas gentes, ou, ainda, as suas Ilhas que são literalmente merecedoras de inigualáveis prazeres e possuidoras de características únicas de uma nação na qual existem místicas ancestrais que se enquadram com os valores naturais que os seus anfitriões recebem os forasteiros.

Jamais olvidaremos que o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde – foi um movimento revolucionário fundado em 1956 que teve como grande impulsionador o nacionalista, e líder, cabo-verdiano Amílcar Cabral, um homem que havia nascido na Guiné-Bissau. Amílcar era um vanguardista que promoveu então a revolução Socialista e que lutou para derrubar o Império Português. O seu projeto passava por uma unificação de Cabo Verde com a Guiné-Bissau.

No ano de 1961 iniciou-se a Guerra Colonial em Angola, depois Moçambique e por fim na Guiné. Como sabeis camaradas que ao longo da guerrilha do ultramar, as nossas tropas tiveram sempre militares instalados em Cabo Verde. Lembro, também, de camaradas que iam passar férias a Cabo Verde, sendo os seus alojamentos marcadas pelo regozijo. Mariscos, cachupa, frutas, a versatilidade do milho e os vinhos do Fogo, faziam dos forasteiros um mar de prazeres. Mas, com a Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974, as antigas colónias tornaram-se países independentes, sendo Cabo Verde pátria de uma viagem a não perder.
Por ironia do destino, a minha filha mais velha, a Marta, assistente de bordo da SATA, tirou uns dias de férias e lá foi a caminho de Cabo Verde, com o meu genro Pedro e o meu neto Salvador. Sendo ela assistente de bordo e conhecedora de grande parte do Mundo, diz-me que a Ilha do Sal, onde se encontra, é um dos sítios mais acolhedores que até agora visitou. Pessoas simpáticas, onde os seus manjares são puramente divinais e as suas histórias deveras enternecedoras.

Nós, conhecedores da aproximação existente entre a Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde, tanto mais que fomos combatentes em solo guineense, ouvíamos “contos” que nos encantavam.

Agora, encostados ao peso de uma idade que não perdoa, resta-nos puxar pela memória, viajarmos nas “asas do vento”, partir ao encontro de camaradas cabo-verdianos com os quais convivemos no dia-a-dia na guerrilha da Guiné, deixando aqui um curto texto sobre um camarada ranger, furriel miliciano Ramos, natural de Cabo Verde, quando a 2 de agosto de 1973 chegámos à Guiné. História, a dele, emotiva e, quiçá, argumento para um filme que que transmitiria emoção.

O Ramos, foi para o Batalhão de Pirada, eu para o de Nova Lamego, Gabu.


Ramos, furriel miliciano ranger que desertou para o PAIGC

De Tavira à Guiné
Com o Ramos nos barracões (onde dormíamos) no QG, em Bissau

O seu sorriso encantava! Entrava-me no goto. Já éramos dois tendo em conta a nossa habitual expressão facial. Um moço que se integrava facilmente em qualquer ambiente. O esmalte dos seus dentes, a sua bondade emocional e a forma afável como curtia com os camaradas desafiadas conversas de têmpera diversa, levaram-me a travar com ele uma amizade recíproca ao longo de um certo período das nossas vidas militares.

Assentei praça com o Ramos no CISMI, em Tavira, no dia 10 de outubro de 1972. Ficámos em companhias diferentes, todavia cedo existiu entre nós uma empatia que nos tornou amigos. O Ramos estava junto a outros camaradas que tinham viajado com ele de Cabo Verde.

No final da recruta em Tavira, o Ramos, o Daniel e um outro camarada cabo-verdiano, acompanharam-me na viagem a caminho de Lamego. Operações Especiais/ Ranger foi o nosso fim. O Daniel foi para o curso de oficiais e nós para o de sargentos.

A nossa amizade reforçou-se. Penude fortaleceu laços emocionais que partilhámos durante um tempo… sem tempo.

Fomos ambos para a Guiné e justamente na mesma altura. Quis o destino que o nosso reencontro se apresentasse como dado adquirido nas instalações do Quartel-General (QG), em Bissau. Um abraço forte entre dois rangers selou a nossa afeição.

O Ramos foi para o Batalhão de Pirada e eu para o de Nova Lamego. Ficou a promessa de voltarmos a reencontrarmo-nos um dia. Todavia, essa promessa dissipou-se no tempo e nunca mais encontrei o meu simpático camarada de armas.

Soube, muito posteriormente, e numa conversa com o camarada Pedro Neves, também ele ranger e do nosso curso em Lamego, que o bom do Ramos se pirou, a dada altura, para o PAIGC. Não foi um guerrilheiro ativo contra as suas anteriores tropas, confessava. Foi um operacional, mas em áreas diferentes. Da aventura ficou a certeza, deduzo, que esteve integrado num movimento que lutou no terreno pelos seus direitos, sendo que alguns dos principais dirigentes do PAIGC oriundos de Cabo Verde, também o terão feito, por honra ao seu torrão materno.

Depois do 25 de Abril de 1974 o Pedro Neves e o Ramos reencontraram-se em Bissau. O Ramos, sempre desperto para a conversa, e sobretudo alegre, contou as suas peripécias, assumiu a sua aventura, e após a independência o simpático homem de Cabo Verde, num estilo simples, cordial, referiu que tinha regressado ao exército português que o terá levado de volta ao seu país.

Uma história maravilhosa de um rapaz, sem vaidade, que no momento exato cedeu ao que o seu coração lhe pediu. Tinha, com certeza, referências sobre os líderes que assumiam o comando de um Partido que lutava pela independência da sua pátria mãe.

Até um dia, camarada ranger Ramos!

Abraços, camaradas
José Saúde
_____________

Nota do editor

Último post da série de 27 de Agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27155: Felizmente ainda há verão em 2025 (24): amigos e camaradas da Guiné, não havia régulos em Angola... apenas sobas e regedores (Fernando de Sousa Ribeiro)

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27153: A nossa guerra em números (37): Colonos - Parte II: cabo-verdianos (uma pequena burguesia que, na Guiné, foi viveiro de militantes e dirigentes do PAIGC)


Foto nº 1 > Lisboa > s/d > Sede do BNU - Bnaco NacionalUltramarino (Hoje sede do MUDE - Museu do Design



Foto nº 2 



Foto nº 3

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design   (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses, e os respetivos escudos, incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)

Foto nº 4 > Guiné > s/d > s/ l > A embarcação "Bubaque", ostentando a bandeira portuguesa... Antiga LP 4 (Lancha de Patrulha 4, da nossa Marinha, no ativo entre 1963 e 1964), terá sido anteriormente uma traineira de pesca, algarvia... Depois de abatida ao efetivo, foi comprada pelo pai do nosso camarada Manuel Amante da Rosa, antigo embaixador da República de Cabo Verde em Roma. 

Foto (e legenda): © Manuel Amante da Rosa (2014). Todos os direitos reservados. 8Edição: LG]


1. Os colonos na África Portuguesa não eram só cidadãos portugueses da metrópole, mas também das ilhas atlânticas (Madeiras, Açores e Cabo Verde) e igualmente estrangeiros como os libaneses, ou sírio-libaneses (oriundos do antigo império otomano, que emigraram para a África Ocidental nos anos de 1910/20) (*) sem esquecer os luso-indianos de Goa, Damão e Diu, e até os macaenses. 

Já aqui destacámos o papel dos sírio-libaneses, "comerciantes e empreendedores" (*), e falámos da sua presença na Guiné até à independência (em 1974). Falemos agora de outros grupos e comunidades, começando pelos cabo-verdianos (que eram, na altura,  cidadãos portugueses, a quem não se aplicava o famigerado estatuto do indigenato).


(i) Funcionários e Trabalhadores: A Diáspora Cabo-Verdiana

A emigração de cabo-verdianos para as outras colónias portuguesas em África foi um fenómeno de grande relevo.

Impulsionados por secas e fomes cíclicas (1901-1904, 1920-21, 1941-43,  1947/49) e pela escassez de recursos (agricultura, indústria, educação, saúde, emprego, transportes,  etc.) no seu arquipélago, 
muitos cabo-verdianos procuraram melhores condições de vida na Guiné, em Angola, Moçambique e, especialmente, em São Tomé e Príncipe, onde chegaram a constituir uma parte significativa da população. (Para além de terem emigrado para Portugal, Holanda, EUA.)

Dada a sua familiaridade com a língua e a administração portuguesas, foram frequentemente empregados em cargos de baixa e média hierarquia na função pública, nos correios,  nas alfândegas, na banca, bem como em atividades comerciais, transportes marítimos, etc. e em geral como mão de obra qualificada.

Esta posição intermédia na hierarquia social colonial era, por vezes, fonte de tensões com as outras comunidades como aconteceu na Guiné-Bissau, antes e durante a guerra colonial, bem como depois da independência (golpe de Estado de 'Nino' Vieira,  primeiro-ministro, contra o presidente da república, Luís Cabral, em 14 de novembro de 1980, em que os cabo-verdianos foram "demonizados").

Os cabo-verdianos tiveram um papel importante na colonização da África portuguesa, e em especial a Guiné, onde foram comerciantes, "ponteiros", e ocuparam lugares de nível médio (na administração civil, banca, correios, educação, etc.).

A presença e o papel dos cabo-verdianos na colonização da África portuguesa, especialmente na Guiné, foram marcantes e multifacetados. Desde o início da ocupação portuguesa na África Ocidental, a história da Guiné e de Cabo Verde esteve profundamente entrelaçada, não apenas por laços geográficos, mas também por interesses económicos e sociais compartilhados.

Em boa verdade,  a Guiné  foi tratada como uma "dupla colónia", sendo administrada  por  Cabo Verde até 1879, altura em que foi separada das ilhas, passando a ser governada autonomamente.

Os cabo-verdianos atuaram como comerciantes, estabelecendo-se principalmente na zona costeira e nas margens dos rios guineenses, donde desenvolveram intensas atividades mercantis. Esses comerciantes envolveram-se no tráfico de escravos (até meados do séc- XIX), além de serem depois  detentores de lojas e proprietários de transportes coletivos, fluviais e rodoviários, exercendo influência significativa no mercado local.

Além do papel comercial, muitos cabo-verdianos ocupavam posições médias na administração colonial: eram funcionários na banca, nos correios, na educação, e em outros setores de serviços públicos. Na realidade, ocuparam lugares que os portugueses da metrópole não queriam, devido à "má fama" do território (insegurança, atraso, clima, paludismo e outras doenças tropicais, etc.). 

Registe-se, a par disso, a atividade agrícola como “ponteiros”, ou sejam,  
pequenos agricultores que exploravam "pontas" (geralmente hortas, pequenas quintas), em zonas férteis, nas bacias hidrográficas: Cacheu. Mansoa, Geba, Corubal, Buba, etc.

 Os cabo-verdianos na Guiné também foram proprietários de pequenas embarcações e prestadores de serviços de transporte local. Esses serviços fluviais e costeiros eram essenciais para a interligação das comunidades em regiões onde o rio e o mar eram os principais meios de circulação.

Essa posição como donos e operadores de embarcações permitiu_lhes  ser intermediários cruciais nas trocas comerciais e no transporte de pessoas e mercadorias. 

Por estarem nessa interface, os cabo-verdianos mantinham uma relação próxima com o poder colonial, já que facilitavam a logística e o funcionamento dos mecanismos administrativos e económicos do regime português.

Além disso, essa função conferia-lhes um papel importante como intérpretes culturais, sociais  e económicos, mediando entre as autoridades coloniais e as populações locais de diversas origens étnicas e culturais. 

Essa mediação contribuía para que os cabo-verdianos se posicionassem como uma ponte social, favorecendo a comunicação, negociações e intercâmbios entre diferentes grupos dentro do contexto colonial.

É importante destacar ainda a forte componente crioula presente nesse contexto, já que boa parte dos  grupos intermediários que atuavam nesses espaços eram de origem mista, fruto de séculos de convivência e intercâmbio entre Cabo Verde e a região da Guiné. Essa dinâmica reforçou a ligação social e cultural entre ambas as regiões. Por exemplo, Amílcar Cabarl, nascido em Bafatá em 1924, era filho de pai cabo-verdiano, o professor primário Juvenal Cabral, e de mãe guineense, de etnia fula, Iva Pinhel Évora.

Em resumo, os cabo-verdianos desempenharam um papel crucial na economia e na administração da África portuguesa, especialmente na Guiné, forma verdadeiros marginais-secantes, exercendo funções estratégicas como comerciantes, ponteiros, donos de barcos de cabotagem e ocupantes de cargos de nível baixo e médio na sociedade colonial.
 
Sublinhe-se que a atuação dos cabo-verdianos na sociedade colonial da Guiné foi muito além do comércio e da administração, incluindo também um contributo notável na agricultura de pequena escala e de subsistência.


Apresenta-se a seguir um esquema detalhado sobre o papel dos cabo-verdianos na colonização da Guiné, então colónia portuguesa, com enfoque no século XX, complementada por alguns exemplos históricos


(ii) Papel dos cabo-verdianos na Guiné colonial (séculos XIX e XX)

1. Intermediários, "lançados" e gestores comerciais

  • Desde os séculos XVI e XVII, muitos cabo-verdianos, especialmente mestiços e "lançados",  atuavam como intermediários comerciais ao longo da costa da Guiné; filhos de colonos com mulheres africanas, esses indivíduos formavam uma classe de “lançados” que facilitava o trânsito de mercadorias, escravos e informações entre as ilhas e o continente; eles eram peças cruciais na economia regional, estabelecendo redes comerciais e vínculos sociais locais;

  • Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné (1675), criada em Portugal, conferia privilégios aos residentes de Cabo Verde, mesmo sob monopólio, permitindo-lhes embarcar seus próprios produtos e manter certa autonomia comercial na costa da Guiné.

2. Agricultores ("ponteiros"), grandes proprietários, comerciantes e navegadores fluviais

  • O termo “ponteiros” (donos de “pontas”, pequenas explorações agrícolas em zonas férteis) e grandes proprietários agrícolas, como os envolvidos na produção de arroz, corresponde exatamente à presença de cabo-verdianos que, aproveitando zonas férteis nas bacias hidrográficas, ocuparam-se com a agricultura;

  • Além disso, muitos eram donos de embarcações, que operavam as ligações fluviais, essenciais na mobilidade de pessoas e mercadorias na Guiné.

Embora menos documentado com nomes específicos, esse conjunto de funções estava bem representado na elite cabo-verdiana que ocupava o espaço colonial de forma bastante atuante. (A IA não sabia o que eram "ponteiros", tive que lhe explicar... Há subtilezas da nossa língua e da nossa história, que lhe escapam: como também sabia não distinguir "régulo", termo que só existia na Guiné e em Moçambique, e não em Angola).

Historicamente, o termo "ponteiro" está ligado ao sistema de "pontas", que remonta ao período colonial. Estas "pontas" eram inicialmente zonas de controlo comercial, tendo depois evoluído para explorações agrícolas. A relação entre os "ponteiros"  e os  "tabanqueiros", nem sempre terá sido  isenta de tensões e conflitos,  originando dispustas por terras com criadores de gado (nomeadamente,fulas).

3. Funcionários públicos (pequenos e médios), ensino, correios, banca

  • No século XX, especialmente entre 1920 e 1940, mais de 70% dos postos no sector público da Guiné eram ocupados por cabo-verdianos ou seus descendentes; isso incluía cargos administrativos, ensino primário, correios, banca e outros serviços públicos.

  • Esses emigrantes, escolarizados, foram incorporados ao sistema colonial português, prestando um apoio técnico essencial à administração e à expansão estatal.

4. “Crioulização social” e intelectuais cabo-verdianos, ou de origem cabo-verdiana

  • A chegada massiva de cabo-verdianos à Guiné no início do século XX deu origem a uma "crioulização social", um processo que aproximou as sociedades cabo-verdiana e guineense: o elemento cabo-verdiano funcionava como uma ponte entre colonos e indígenas.

  • Alguns exemplos notáveis na área intelectual, cultural,  educacional e política incluem:

    • Fausto Duarte (1903-1953), romancista;

    • Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral; professor

    • Fernando Pais de Figueiredo: professor primários; ele e o Juvenal Cabral defenderam a expansão e a melhoria do sistema educativo para a população guineense;

    • Amílcar Cabral (1924-1973) (imagem à direita);

    • António Carreira (1905-1994), administrador , investigador, escritor;

    • Artur Augusto Silva (1912-1983), advogado, escritor, jurista, especialista em direito consuetudinário, casado com Clara Schwarz (1915-2017), professora no liceu Honório Barreto;

    • Não sei exatamente quantas senhoras brancas viviam em Bambadinca no meu tempo (1969/71), mas algumas eram cabo-verdianas, como por exemplo  a professora do ensino primária, que raramente era vista, mas que vivia dentro das nossas instalações militares, no edifício da escola, a dona Violete da Silva Aires e sua mãe; muitos alunos se lembram dela, e que depois foram quadros importantes da Guiné-Bissau (de jornalistas a engenheiros),

    • Carlos Silva Schwarz (1949-2012),  engenheiro agrónomo, director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, particularmente ativo depois da independência; membro da nossa Tabanca Grande.


5. Exemplo histórico destacado: Honório Barreto

Resto da estátua do Honório Barreto.
 Foto: João Melo (2025)



  • Um caso emblemático é o Honório Barreto (1813-1859), de ascendência cabo-verdiana por parte de pai, que exerceu funções elevadas como governador da Colónia Portuguesa da Guiné entre 1852 e 1859;  dirigiu a administração, investiu em agricultura, comércio, educação e saúde e até liderou esforços militares para preservar  o controle português, ao mesmo tempo que os seus negócios de família no Cacheu (incluindo o tráfico de escravos). 

  • A sua figura foi muita mal tratada por gente boçal do PAIGC, a seguir à independência.



6. Resumo

Função / Papel | Detalhes / Exemplos
  • Comerciantes e "lançados" | Ativos nas rotas comerciais da Guiné, frequentemente mestiços com redes locais;
  • Ponteiros / Agricultores / Donos de embarcações de cabotagem | Pequenas explorações e produção de arroz; donos de embarcações nas rotas fluvial;
  • Funcionários da administração colonial | Entre 1920–1940, os cabo-verdianos ocupavam >70% dos cargos públicos; foram administradores e chefes de posto, etc.
  • Empregados e quadros intermédios de importantes casas comerciais como a Gouveia e a Sociedade Ultramarina (ligada ao BNU) | Luís Cabral (***)
  • Intelectuais e professores | Fausto Duarte, Juvenal Cabral, Amílcar Cabral, Fernando Pais de Figueiredo, entre outros.
  • Governança e elite local | Honório Barreto (1813-1859): governador, empresário, administrador da Guiné colonial; filho de mãe guineense e de pai cabo-verdiano

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Luís Cabral (1931-2009)

Enfim, uma pequena burguesia onde o PAIGC foi buscar muitos dos seus primeiros militantes e dirigentes,  a começar pela família e clã Cabral (Amílcar, Ana, Luís, Lucette Andrade, etc.)

Este é ponto central da história social e política da Guiné-Bissau no século XX: a pequena burguesia cabo-verdiana radicada na Guiné, formada por comerciantes, funcionários públicos, professores, empregados de casas comerciais e pequenos proprietários agrícolas. foi decisiva tanto para o funcionamento do sistema colonial como para a génese da luta de libertação. (**).

Ainda a talhe de foice, lembre-se os nomes de Aristides Pereira, que era chefe da Estação Telegráfica dos CTT, e o Fernando Fortes era o chefe da Estação Postal, na prática os "donos" dos CTT , em Bissau.


PS - É difícil saber, com rigor, qual era a população cabo-verdiana (ou de origem cabo-verdiana) na Guiné nos anos de 1950, 60 e 70 (***)

(Pesquisa: IA / Gemini / Perplexity / ChatGPT LG | Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


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(**) Último poste da série > 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27141: A nossa guerra em números (36): Auxiliares da administração colonial: régulos, sobas e liurais...

(***) Estimativa do assistente de IA / Gemini. Pesquisa, revisão / fixação de texto:   LG


População Cabo-Verdiana na Guiné-Bissau em Meados do Século XX: Números e Proporções


Na metade do século XX, a presença de cabo-verdianos na então Guiné Portuguesa era uma realidade demográfica significativa, especialmente nos centros urbanos e na administração colonial. 

No entanto, a quantificação precisa dessa população, bem como a sua proporção em relação ao total de habitantes, enfrenta desafios devido à natureza dos registos da época, que distinguiam a população entre "civilizada" e "não-civilizada".

Com base nos dados disponíveis, é possível apresentar uma estimativa detalhada para 1950 e informações mais gerais para 1960 e 1970.

(i) 1950: Uma Presença Notável no Estrato "Civilizado"

No censo de 1950, a população total da Guiné Portuguesa foi registada em 517.290 habitantes. Deste total, a esmagadora maioria, 508.970 indivíduos, era classificada como "não-civilizada".

A população "civilizada" ascendia a 8.320 pessoas (1,61% do total), e é neste grupo que os dados permitem uma análise mais detalhada da presença cabo-verdiana. 

De acordo com estudos demográficos da época, nomeadamente os do investigador António Carreira, os cabo-verdianos representavam uma fatia importante deste estrato:

  • População de origem cabo-verdiana: Cerca de 1.478 indivíduos.

  • Proporção de cabo-verdianos na população "civilizada": Aproximadamente 17,8%.

  • Proporção de cabo-verdianos na população total: Cerca de 0,29%.

Esta expressiva percentagem na população "civilizada" reflete o papel que muitos cabo-verdianos desempenhavam como funcionários públicos, comerciantes e em outras profissões liberais na estrutura colonial.

(ii) 1960: Crescimento Populacional e Lacunas nos Dados Detalhados

Em 1960, a população total da Guiné Portuguesa era de aproximadamente 525.437 habitantes, um ligeiro aumento em relação à década anterior. Contudo, os dados detalhados sobre a composição da população "civilizada" por naturalidade para este ano são mais difíceis de apurar a partir de fontes abertas.

Embora o censo de 1960 tenha sido realizado e analisado em publicações como o "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa", os números exatos da população de origem cabo-verdiana não estão facilmente acessíveis. É razoável presumir que a tendência de uma presença cabo-verdiana significativa nos centros urbanos e na administração se mantivesse, mas a sua quantificação precisa para este ano permanece um desafio.

(iii) 1970: O Impacto da Guerra e a Incerteza Estatística

A década de 1970 foi marcada pela intensificação da guerra de libertação/guerra colonial, o que torna os dados demográficos para este período particularmente complexos e, por vezes, divergentes. As estimativas para a população total em 1970 variam consideravelmente, situando-se entre 571.000 (550.000 a 600.000 habitantes para 1970 seria uma estimativa  mais realista e alinhada com os dados históricos).

A realização de um censo em 1970 é documentada, mas a sua execução e a fiabilidade dos dados em todo o território foram certamente afetadas pelo conflito em curso. Além disso, a abolição do estatuto do "indigenato" em 1961 alterou as categorias de recenseamento, o que dificulta uma comparação direta com os censos anteriores.

Não foram encontrados dados específicos que permitam quantificar a população de origem cabo-verdiana na Guiné-Bissau em 1970. É de notar que, durante a luta pela independência, a relação entre as populações da Guiné e de Cabo Verde foi complexa, com muitos indivíduos de origem cabo-verdiana a participarem ativamente no movimento de libertação (PAIGC), que lutava pela independência de ambos os territórios.

Em suma, enquanto para 1950 é possível apresentar um retrato relativamente claro da população cabo-verdiana dentro do quadro estatístico da época, para 1960 e 1970 os dados são mais escassos, impedindo um cálculo preciso da sua dimensão e proporção na população total da Guiné-Bissau.