1. E se tivessem ido ao fundo, por acidente, ataque ou sabotagem, estes três navios que eram a espinha dorsal da frota de navios requisitados à Marinha Mercante para o transporte de tropas durante a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial?
Recorro, mais uma vez, ao nosso "enciclopédico" Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 3906 e ss.), que tem informação preciosa sobre esta matéria no seu capítulo IV (As despesas da guerra).(*)
Escreveu ele: "Estes três navios que asseguraram 75% das viagens de ligação de Lisboa para África realizaram 146 viagens para Angola, 50 para a Guiné e 30 para Moçambique" (pag. 306).
Analisando o período entre 1965 e 1970 (seis anos), o autor apurou que o número médio anual de viagens foi 18, 8 e 5, para Angola, Guiné e Moçambique, respetivamente (pág. 307). A média de militares transportados (ida e volta), por ano foi a 70 mil: mínimo, 54 mil em 1966, máximo, 74,9 mil em 1969.
Discriminam-se a seguir os navios que transportaram tropas enter 1961 e 1975, por ordem descrescente do nº de viagens, com destaque para o Vera Cruz, o Niassa, o Uíge e o Ana Mafalda, com mais de duas dezenas de viagens:
Vera Cruz: 85;
Niassa: 66;
Uíge: 47;
Ana Mafalda: 22;
Índia: 13;
Cuanza: 11;
Império: 9;
Pátria:7;
Carvalho Araújo: 5;
Total=265.
Estes nove seriam os principais navios afetos ao transporte de tropas... Mas o autor fala num frota de 15... Há outros que fizeram viagens esporádicas: Arraiolos (em 1961, para Angola, e depois em 1974, para a Guiné); Sofala (em 1963, para a Guiné)...Cita ainda o Timor: 2 viagens para a Guiné em 1967; outra, em 1969, para a Guiné; em 1970, para Angola; em 1971, outra para Angola e Moçambique,
Mas há mais: em 1974, os navios Bragança, Cabo Bojador e Alcobaça, fizeram uma viagem para a Guiné; e em 1975 realizaram uma viagem a Angola e Moçambique os navios Lendas, Beiras, Amarante, Infante D. Henrique, e o Serpa Pinto. E ainda em 1975, mas só para Angola, viajaram o Papacostas, o Panarrange (duas viagens), o Lobito, o Novo Redondo e o Leixões (pág. 309), nomes de navios de que nunca tinha ouvido falar...
Mas, no caso de transportes de tropa para a Guiné (e da Guiné), há omissões, não sendo referidos o N/M Angra do Heroísmo, o N/M Rita Maria e o N/M Alenquer. O N/M Lima não sei se alguma vez foi à Guiné. Mas há ainda o N/M Alfredo da Silva (que viajava para a Guiné, era da SG / CUF)... e se calhar outros que não nos vêm à memória.
Vejam-se aqui as referências todas que temos no blogue aos navios N/M (, às vezes designados por T/T no texto), por ordem decrescente de referências:N/M Uíge (54)
Segundo a fonte que temos vindo a citar (Sousa, 2021, pág. 309), o Uíge (com lotação de 571 passageiros e 139 tripulantes) fez mais viagens (28) para a Guiné do que o Niassa (22). O Ana Malfada também fez muitas viagens para a Guiné, "sobrelotado com unidades dos Açores e da Madeira, chegando a levar duas companhia (cerca de 300 homens), apesar de a sua lotação ser apenas de 52 passageiros e 47 tripulantes".
O N/M Funchal nunca transportou tropas que eu saiba, era um navio de cruzeiro... Transportou, sim, em fevereiro de 1968, o alm Américo Tomás, e sua comitiva na visita presidencial à Guiné, ainda no tempo do gen Schulz. Daí ter uma referência no nosso blogue.
Nunca, ao longo da nossa história secular, recrutámos, mobilizámos e transportámos tantos combatentes, para teatros de operações, distantes, em milhares de quilómetros, em África, como durante o período de 1961/74. Basta recordar que nos três teatros de operações (Angola, Guiné e Moçambique) estiveram empenhados cerca de 800 mil militares portugueses: cerca de 70% provenientes da metrópole, e sendo os restantes do recrutamemto local (pág. 199).
Nessa época Portugal tinha uma belíssima frota da marinha mercante, à qual podia requisitar navios para transporte de tropas, material de guerra e outros meios logísticos. Em 1971, o país aumentaria a sua capacidade de transporte por via áerea, com a aquisição de dois aviões Boeing 707, por parte dos TAM - Transportes Aéreos Militares. Começaram a operar na ligação Lisboa-Luanda, trajeto que faziam em 10 horas (, enquanto o Vera Cruz demorava 10 dias).
É bom recordar aqui a demora média das viagens para os três teatros de operações, por via marítima: 9/10 dias, Lisboa-Luanda; 5/6 dias, Lisboa-Bissau; 19/22 dias, Lisboa-Moçambique (dependendo do porto de desembarque) (pág. 307).
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Vinheta de propaganda da ARA, referente à sabotagem do navio de mercadorias Cunene, Lisboa, em 26 de outubro de 1970.
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Mas, fazendo aqui um parêntesis: felizmente que nunca ocorreu nenhum acidente, ataque ou sabotagem
aos navios de transporte de tropas, entre 1961 e 1975... O que podia perfeitamente ter ocorrido, dada as enormes distâncias, a percorrer, nos oceanos Atlântico e Índico, entre Lisboa, Guiné, Angola e Moçambique, a par do contexto geopolítico hostil a Portugal durante esse período.
O único navio que foi alvo de sabotagem, quando atracado no porto Lisboa, foi o Cunene, em 26 de outubro de 1970. Mas o alvo inicial, ao que parece, seria o Vera Cruz, atracado ao lado. O Cunene sofreu um rombo, no costado, atrasando a sua partida por alguns dias. Não era um navio de transporte de tropas, era um navio de carga, de 16 mil toneladas, construído na Polónia, e que se preparava para partir para África, com material de guerra e outros meios logísticos, Era considerado o mais moderno cargueiro das linhas de África, e pertencia à SG - Sociedade Geral, do grupo CUF.
Houve ainda, por parte da ARA, duas ações, contra navios, o Muxima e o Niassa, que transportariam também material de guerra para a África. Mas as cargas explosivas foram detonadas no sítio errado.
Entretanto, a sabotagem, com maior impacto, mediático e político (, pela ousadia e os avultados prejuízos materiais) foi a levada a efeito pela ARA contra a Base Aérea nº 3, em Tancos, em 8 de março de 1971. Não afetou, porém, a capacidade de transporte aéreo entre Portugal e os territórios ultramarinos.
A
Acção tinha como nome de código "Aguia Real". R
esultados: num total de 28 aeronaves atingidas, 12 ficaram totalmente destruídas: dois helicópteros Puma (SA-330) e outros quatro Alouettes III; e seis aviões de vários modelos (quatro Cub, um Auster e três Dornier DO-27); um outro aparelho ficou “irrecuperável”, havendo mais 15 atingidos, ainda que recuperáveis, segundo balanço feito, no dia seguinte, por um relatório secreto da Secretaria de Estado da Aeronáutica,
Há ainda notícia de uma acção das Brigadas Revolucionárias (BR), a 9 de Abril de 1974, contra o navio Niassa, que se preparava para sair de Lisboa com tropas para a Guiné. "A bomba foi colocada no porão adaptado a dormitório dos soldados e estava preparada para explodir às 18 horas. Uma hora e quinze minutos antes, as Brigadas telefonaram para o Porto de Lisboa a reivindicar a colocação da bomba e a alertar para o navio ser evacuado, o que permitiu que não houvesse acidentes maiores ou danos mortais. Os danos acabaram por ser apenas materiais e depois de reparado o rombo provocado, o navio partiu para a Guiné. Poucos dias depois dá-se o 25 de Abril." (Fonte: Ana Sofia Matos Ferreira, "Luta Armada em Portugal (1970-1974)", Tese de doutoramento em História Contemporânea. Lisboa: Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pág. 300).
2. Excerto extraído da página CD25A / UC - Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, relativamente aos transportes de tropas, marítimos e aéreos, durante da guerra colonial (com a devida vénia...) (P1299)(**)
(...) As guerras de África implicaram a manutenção da maior força armada no exterior, que Portugal alguma vez formou ao longo dos seus oito séculos de história. (...) O seu simples transporte e apoio logístico era problema de grande envergadura para um país das dimensões de Portugal e com os seus recursos, mas sem esse problema ser resolvido não podia haver guerras de África.
Podemos dizer que a solução começou a ser pensada logo após a Segunda Guerra Mundial. Em 1939-45, tornou-se evidente que um dos pontos que criavam maiores dependências do país em relação ao exterior, em alturas de crise, era a falta de uma marinha mercante e de ligações regulares com o império. Durante a guerra, por exemplo, os produtos de Angola apodreciam nos portos e, embora fosse possível comprar petróleo, não se conseguia assegurar o seu transporte.
O Governo decidiu dar prioridade à resolução desse problema. Logo em 1945 foram aprovadas duas medidas que implicaram vultosos investimentos nesse sentido. A primeira foi o despacho de 10 de Agosto do ministro da Marinha, onde se previa a ampla renovação da marinha mercante nacional por meio da construção de 70 navios, com apoio do Estado, entre os quais nove grandes paquetes. A segunda foi a decisão de criar uma companhia aérea do Estado (a TAP), com a prioridade de iniciar as operações da chamada linha imperial, de ligação regular com Angola e Moçambique.
Em finais dos anos 50, depois de investimentos públicos de grande envergadura, a marinha mercante portuguesa teve o seu desenvolvimento máximo. Contava, nomeadamente, com 22 paquetes, no total de 167 000 toneladas. Entre eles estavam os quatro gigantes: Santa Maria, Vera Cruz, Príncipe Perfeito e Infante D. Henrique, com cerca de 30 000 toneladas cada, capazes de transportar mais de 1000 passageiros ou mais de 2000 soldados.
Muitos destes paquetes foram requisitados em diversas ocasiões para transporte de tropas, muito especialmente na fase inicial da guerra, e as restantes unidades da marinha mercante seriam essenciais para manter o esforço em África. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíge.
O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias por nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que a força expedicionária em África crescia (...).
Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império, tendo mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra sido transportado em navios.
A linha aérea imperial começou a funcionar em 1947, mantida inicialmente pelos velhos Dakotas da TAP, que asseguravam a ligação a Luanda e a Lourenço Marques (5). Em 1948, os bimotores foram substituídos pelos quadrimotores DC-4 Skymaster, com os quais se conseguiu, pela primeira vez, a ligação semanal regular com o império.
Mais tarde, os DC-4 foram substituídos pelos Constellation e, desde, 1955, pelos Super Constellation, que transportavam 83 passageiros para Luanda em menos de 24 horas. Só em 1965 estes aparelhos foram substituídos na TAP pelos Boeing 707, os primeiros aviões a jacto de longo curso usados por Portugal.
O esforço de guerra não podia ser mantido só com a linha da TAP e assim a Força Aérea, desde muito cedo, tentou desenvolver os transportes aéreos estratégicos, missão entregue aos TAM (Transportes Aéreos Militares), que começaram a operar na primeira metade dos anos 50 a partir do AB1, em Lisboa, para o que usaram dois C-54 (o equivalente do Skymaster), cedidos pelos americanos para uso nos Açores. Em 1955, os TAM contavam já com uma frota de 11 C-54 ou DC-4, mas todos antiquados.
Quando a luta armada rebentou em Angola, os Constellation da TAP foram requisitados e fizeram viagens como transportes de tropas, enquanto os C-54 dos TAM tentaram manter a ligação regular com Luanda, em voos que demoravam 22 horas. As dificuldades eram muitas para os velhos aviões e quatro deles perderam-se em acidentes. (...)
Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra (2006)
Ministério do Eército > Direção do Serviço de Transportes > Ordem de Transporte nº 20, de Lisboa para o CTIG... Total de militares: 1735. Cópia de documento gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, 1º ten RN 1965/72, Guiné, NRP Orion, 1966/68.
3. Diz o ten cor (na reserva), doutorado em história e ex-professor da Academia Militar, Padro Marquês de Sousa, no livro supracitado, que no transporte de militares, "era sempre excedida a lotação de passageiros dos navios" (pág. 306), o que todos nós sabemos pro dura experiência própria...
E dá, como exemplos o Vera Cruz e o Niasssa. Este, com lotação de 322 passageiros e 132 tripulantes). "chegou a transportar oito companhias e outras unidades mais pequenas, o que implicava cerca de 1500 homens"...
Na realidade, em 24 de maio de 1969 partiram de Lisboa, com destino a Bissau, 1538 militares, conforme relação da Companhia Nacional de Navegação (, referente à viagem nº 101), que a seguir se transcreve... Mas, no Funchal, no dia 26, de manhã, embarcou mais um companhia, a CCAÇ 2529 / BII 19, ou seja, mais 158 homens, como aliás estava previsto na Ordem de Transporte nº 20, já atrás reproduzida. (**)
Em resumo, a "lata de sardinhas" viu aumentada em 5,4 vezes mais a sua "lotação", passando dos habituais 322 passageiros para os 1739 (!).(***)
E lá fomos nós, "cantando e rindo", com partida de Lisboa, do Cais da Rocha, no dia 24 de maio de 1969, às 11h05, e chegada da a Bissau a 29, às 22h50... O navio esteve fundeado nessa noite e só atracou no dia seguinte, às 8 da manhã...
Garante-nos o Manuel Lema Santos que T/T Niassa foi escoltado na ida (e na volta), entre Bissau e o Farol do Caió, pela LFG Cassiopeia.
Companhia Nacional de Navegação > N/M "Niassa > Viagem nº 101 > Relação dos militares embarcados em Lisboa, com destino a Bissau > Cópia de documento gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, 1º ten RN 1965/72, Guiné, NRP Orion, 1966/68. (**)
Alguns dos nossos T/T... Cortesia de
Carlos Pinheiro (2012) / Sítio Navios da Marinha (que não já existe, alojado no Sapo).
(...) No final da década de 60 do século XX a Marinha Marcante Nacional atingia o seu apogeu, quer em número de navios existentes (mais de 100), em construção e em compra a outras marinhas e/ou estaleiros, quer em transporte de passageiros (com uma capacidade superior a 8.000) quer ainda de carga (com uma arqueação total superior a 1 milhão de T.A.B) o que fazia dela, Marinha Mercante, mas apenas de per si, uma das melhores da Europa e das mais reconhecidas, quer pelas qualidades dos seus profissionais, quer pela apresentação e qualidade dos seus navios.
Logo no início da década de 70 do século passado, o crescimento abrupto, inesperado, mas eficiente e ultra rápido do transporte aéreo de passageiros, com a ocorrência dos motores a jacto, tornaram o transporte marítimo de passageiros rapidamente obsoleto, quer em tempo (7 dias de Lisboa a Luanda via marítima contra 7 horas via aérea) quer em preço, conseguindo as companhias aéreas oferecer valores de transporte aéreo inferiores aos do marítimo.
Assim e de uma assentada, ainda antes da fracturante data de 1974, praticamente todos os paquetes foram vendidos (“Santa Maria”, “Vera Cruz”, “Pátria”, “Império”, “Uíge”, “Angola”, “Moçambique” “Índia “, “Timor”, Angra do Heroísmo”, “Amélia de Melo”, ficando a agonizar os “flâmulas” “Infante FDom Henrique”, “Príncipe Perfeito” e “Funchal” (este o último e único existente, mas de duvidoso futuro…) (...).
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(**) 21 de novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1299: Antologia (54): Transporte de tropas, por via marítima e aérea (CD25A / UC)