Capa do livro do José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, 170 pp.
Esta é uma variante popular, pícara (e sem ofensa oara os crentes...), da oração tradicional, rezada pelos nossos avós, há 100 anos, para pedir a benção de Deus ao deitar e ao acordar: "Com Deus me deito, com Deus me levanto, na graça de Deus e do Divino Espírito Santo"-
1. Fui desencantar este livrinho arrumado no sótão mas felizmente ainda sem estar roído pela traça. Lembro-me de o ter comprado, na feira do livro da Lourinhã, que eu próprio organizei, com outros jovens da terra, na "praça do coreto"... Em 1973 !
Não estava propriamente proibido, mas vendia-se por baixo do balcão como outros livros que corriam o risco de ser apreendidos, arbitrariamente, pela PIDE/DGS, dando um rombo nas "finanças" da organização... (Havia uma delegação a 18 km dali, em Peniche. E alguns dos pides eram mesmo burros: eram capazes de implicar com uma "bíblia protestante", como fizeram ao meu amigo Bernardino Anastácio, o meu barbeiro, que um dia foi dentro por ser "fala-barato" e do "reviralho". Revistada a barbearia e a casa, só lhe levaram uma "bíblia protestante"...Acabou por ser solto, por falta de provas ou indícios de ser um "perigoso comunista".)
Em 1962 o José Capela relançou naquela cidade moçambicana o semanário "Voz Africana", que dirigiu, de facto, até 1968. Este jornal teve nesse período um papel importantíssimo na consciencialização dos moçambicanos, negros, sobretudo no que respeitava à exploração económica de que eram vítimas.
É reconhecido hoje que este livrinho do José Capela dava já , na época, surpreendentes pistas para a compreensão das dinâmicas económicas e sociais da "nossa" África, particularmente de Moçambique.
A guerra colonial estava ao rubro e tudo o que se escrevesse sobre as colónias (ou "províncias ultramarinas") , a sua história, a economia, a sua sociedade..., era lido com avidez. Só não se podia falar da guerra, essa, sim, tabu. Para mais, vindo de autores "desalinhados" com o regime, como o José Capela.
Eu sabia, em 1973, que o José Capela era padre ou ex-padre. Mas pouco mais. Afinal é o pseudónimo de José Soares Martins (Feira, 1932–Porto, 2014), um historiador e jornalista português cuja vida e obra estão profundamente ligadas a Moçambique e à análise crítica do colonialismo português.
Eu sabia, em 1973, que o José Capela era padre ou ex-padre. Mas pouco mais. Afinal é o pseudónimo de José Soares Martins (Feira, 1932–Porto, 2014), um historiador e jornalista português cuja vida e obra estão profundamente ligadas a Moçambique e à análise crítica do colonialismo português.
Natural de Arrifana, concelho da Feira, concluiu aos 22 anos o curso de Teologia no seminário do Porto em 1954. Chegou a Moçambique anos depois, como padre. Mas enveredou rapidamente para o jornalismo. Foi chefe de redação e diretor-adjunto do "Diário de Moçambique", com sede na Beira, o jornal fundado pelo primeiro bispo daquela Diocese, D. Sebastião Soares de Resende (1906-1967), e de resto seu tio. Sim, o famoso Bispo da Beira que entrou em rota de colisão com Salazar e o seu regime (tem mais 400 páginas o seu processo no arquivo da PIDE/DGS).
Com a morte prematura do bispo da Beira, ficam praticamente inviabilizados aqueles dois projectos jornalísticos. Por outro lado, com as crescentes pressões que as autoridades portuguesas iam fazendo sobre vozes incómodas como a dela, o José Capela teve de abandonar bruscamente Moçambique. Contudo, vai levar primeiro para o Brasil e depois para a Bélgica, documentação importante, nomeadamente os escritos inéditos de D. Sebastião e a volumosa correspondência que reuniu, enviada pelos moçambicanos, negros, para a "Voz Africana" sob a forma de "cartas ao diretor".
Essa documentação ajudou-o a fazer retrato da situação social que então ali se vivia, e de que ele foi também testemunha direta. Com a censura em vigor, não puderam ser publicadas na altura. Mas dessa correspondência, ele vai reunir um amostra significativa no livro "Moçambique pelo Seu Povo" (1971). Não conheço a obra (nem outras do autor sobre a história colonial de Moçambique), pelo que não vou falar dela.
De regresso a Portugal, em 1970, fundará no Porto o prestigiado jornal "Voz Portucalense" . Tornou-se editor (ajudou a fundar as editoras Confronto e Afrontamento), e participou também nos "Cadernos Anticoloniais". Depois da independência de Moçambique, serviu entre 1978 e 1996 como Adido Cultural na Embaixada de Portugal em Maputo.
O seu livrinho "O Vinho para o Preto" (1973) (disponível aqui, íntegra,em formato pdf) é, pois, o único que eu conheço do José Capela. Tem como subtítulo: "Notas e textos sobre a exportação do vinho para África".
As notas são sucintas (c. de 30 pp.): introdução, bebidas cafreais, vinho para o ultramar. Os textos preenchem o resto do livro, são menos de 150 páginas, constituídos por documentação diversa dos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX, nomeadamente recortes de imprensa sobre a exportação de vinho, relatórios administrativos, regulamentos, mapas estatísticos, etc. Seria fastidioso ver tudo isto em detalhe.
Do livro para já, interessa-me reter o título e fazer aqui um brincadeira, um trocadilho, para inaugurar uma nova série, onde fundamentalmente se fale dos vinhos que consumíamos na Guiné, o da Intendência (a famosa "água de Lisboa" ) e os vinhos comerciais, de marca, que chegavam à cantina, à messes e as restaurantes de Bissau, Bafatá e pouco mais.
Era conhecido, esse vinho que era exportado para África, pela designação pejorativa de "vinho para o preto" (termo que, de resto, já vinha de finais do séc. XIX). Tinha uma clara conotação racista. Mas também era bebido pelo branco, a que chamávamos de segunda. Na época os colonos de África não eram propriamente a "fina flor da Nação"...
O ponto central da argumentação do José Capela é que o "vinho para o preto" não era apenas um produto de exportação; ele tipificava e espelhava toda uma situação global de relações económicas coloniais, tendo servido como um mecanismo de exploração e controlo da população africana.
A exportação deste vinho, muitas vezes de qualidade inferior (quando náo mesmo uma "mixórdia") era crucial para absorver o excedente da produção vinícola portuguesa (então em crise), beneficiando com isso sobretudo a burguesia mercantil do Porto e a economia metropolitana.
O ponto central da argumentação do José Capela é que o "vinho para o preto" não era apenas um produto de exportação; ele tipificava e espelhava toda uma situação global de relações económicas coloniais, tendo servido como um mecanismo de exploração e controlo da população africana.
A exportação deste vinho, muitas vezes de qualidade inferior (quando náo mesmo uma "mixórdia") era crucial para absorver o excedente da produção vinícola portuguesa (então em crise), beneficiando com isso sobretudo a burguesia mercantil do Porto e a economia metropolitana.
O livro enquadra esta prática nas transformações económicas portuguesas. O vinho colonial tornou-se um dos principais mecanismos de extração indireta de riqueza da população africana. O dinheiro que os trabalhadores africanos, nomeadamente os mineiros que iam para a África do Sul, obtinham com o seu trabalho, era depois absorvido pelo comércio colonial através da venda deste vinho nas cantinas.
O José Capela aprofunda as consequências sociais e morais deste comércio, nomeadamente em Moçambique:
(i) degradação e alcoolismo: a imposição e o consumo massivo deste vinho teriam contribuído para a degradação física e moral da população local; o autor liga o abuso do álcool introduzido pela Europa a problemas sociais graves, um tema já debatido em conferências internacionais como a de Berlim (1885);
(ii) supressão das bebidas locais (ou "cafreais"): o sistema colonial, para garantir o mercado para o vinho importado, frequentemente recorria a medidas repressivas, como a taxação das bebidas destiladaas e fermentadas indígenas, a proibição e a destruição sistemática de alambiques familiares e artesanais, etc., de modo a tornar praticamente obrigatório o consumo do vinho português;
O José Capela aprofunda as consequências sociais e morais deste comércio, nomeadamente em Moçambique:
(i) degradação e alcoolismo: a imposição e o consumo massivo deste vinho teriam contribuído para a degradação física e moral da população local; o autor liga o abuso do álcool introduzido pela Europa a problemas sociais graves, um tema já debatido em conferências internacionais como a de Berlim (1885);
(ii) supressão das bebidas locais (ou "cafreais"): o sistema colonial, para garantir o mercado para o vinho importado, frequentemente recorria a medidas repressivas, como a taxação das bebidas destiladaas e fermentadas indígenas, a proibição e a destruição sistemática de alambiques familiares e artesanais, etc., de modo a tornar praticamente obrigatório o consumo do vinho português;
(iii) contexto suburbano: o consumo deste vinho nos subúrbios das cidades africanas em expansão, em condições de insalubridade, é descrito como um reflexo das péssimas condições de vida e de trabalho impostas pelo sistema colonial.
Em resumo, "O Vinho para o Preto" é um pequeno ensaio de análise históricsa que utiliza o comércio do vinho para ilustrar a perversão do sistema económico colonial. Que no essencial se baseava na exportação de produtos manufaturaddos na Europa, com alto valor acrescentado, e a importação de matérias-primas, extraídas pelos indígenas a baixo custo.
Em resumo, "O Vinho para o Preto" é um pequeno ensaio de análise históricsa que utiliza o comércio do vinho para ilustrar a perversão do sistema económico colonial. Que no essencial se baseava na exportação de produtos manufaturaddos na Europa, com alto valor acrescentado, e a importação de matérias-primas, extraídas pelos indígenas a baixo custo.
2. Num artigo do jornal "O Século", de 15 de janeiro de 1899, sobre a "exportação de vinhos", pode ler-se:
(...) Em vista da baixa geral que tem havido nos preços dos vinhos dos mercados brasileiros muitos viticultores nos têm pedido informações referentes à exportação para Lourenço Marques.
Devidamente esclarecidos podemos aconselhar que os vinhos tintos devem ir em barris de quinto ou décima (*), ou engarrafados, quando bem límpidos, sem exagerada força alcoólica, 12 graus em média, não carregados de cor nem maduros.
Os vinhos verdes, os de Colares e os claretes têm fácil colocação em Lourenço Marques e no Transval.
Em quanto a vinhos brancos, os de mesa melhor é que vão engarrafados, assim como os vinhos generosos.
O vinho branco, denominado "para preto". tem larguíssimo consumo, e pena é que a escala alcoólica ou limites para tais vinhos ainda não esteja resolvida, o que tem causado gravíssimos prejuízos aos exportadores e, assim, aos viticultores. (...).
In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 61
Num outro recorte do jornal "O Século", de 21 de janeiro de 1899, lê-se:
(...) Uma casa comercial de Lisboa, com sucursal em Lourenço Marques, lembrou-se de aguardentar muito os vinhos brancos, elevando a graduação a 17 e 18 por cento de álcool, na esperança de que o preto preferisse este vinho à aguardente, sua bebida habitual.
Generalizou-se tão bem entre a raça negra o vinho assim preparado de preferência à aguardente, que, começando a exportação do vinho chamado "vinho para o preto" por algumas dezenas de barris, já se eleva a milhares de barris por mês (....)
In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 64
3. A questão que se pode pôr, num blogue de antigos combatentes, que partilham memórias (e afetos): é a seguinte: afinal, o vinho que nos chegava à mesa, no mato, era ou não uma variante do "vinho pró preto" ?
O mercado ultramarino continuou a ter um papel importante no escoamento da nossa produção vinícola, até à descolonização. Recorde-se que havia, ao tempo da guerra colonial, um problema de excesso de produção (e falta de qualidade)...
Dizia-se que Salazar dizia que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses... O que em parte era verdade: antes do êxodo rural nos anos 60, a vitivinicultura dava trabalho a um exército de mão de obra barata nas aldeias... Em 1940, a vinha ocupava mais de 320 mil hectares e havia cerca de 337 mil produtores!... (Em termos de exportação de produtos agrícolas, só a cortiça ultrapava o vinho).
De facto, o trabalho na vinha ocupava muitos trabalhadores ao longo do ano... Recordo-me quando era puto, em meados dos anos 50, de assistir à vinda de enormes ranchos de trabalhadores sazonais, homens e mulheres, para a minha zona (Lourinhã, Estremadura), na altura das vindimas... Eram os "ratinhos", vinham da Beira!... ..
Em resumo, seria interessante saber mais sobre o vinho que a "metrópole" (Lisboa) nos mandava... A tropa era um segmento de mercado precioso, a partir do início da guerra em Angola... O que é que a malta sabe mais sobre isto ?
Em boa verdade, a generalidade dos nossos camaradas, no TO da Guiné, não se podia dar ao luxo de dizer o provérbio popular: "pão que sobre, carne que baste e vinho que farte"... Muitas vezes, faltava o pão, a carne e o vinho... Em quantidade e qualidade... Mas também se diz que "a fome é a melhor cozinheira"... Passou-se fome e sede na Guiné, todos estamos de acordo...Mas ninguém morreu de fome... Já de sede, desidrataçáo, houve seguramente casos,,,
Que fique claro: não estão aqui em causa os nossos camaradas da Intendência que deram o seu melhor (e alguns morreram) no cumprimento da missão que lhes cabia no TO da Guiné...
A história da Cuca remonta a1947, o ano dea fundação da Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA), uma filial da Central de Cervejas, dona da marca Sagres. A Cuca foi a primeira cerveja produzida industrialmente em Angola. O nome seria uma homenagem à serpente Cuca, presente em tradições africanas, O logotipo da marca é um pássaro, simboliza a paz. A Cuca tornou-se um ícone cultural angolano. Curoso: uma marca colonial que os "tugas" lá deixaram... Outra cerveja de origem angolana é a Eka.
4. O 'colon' António Rosinha, que foi para Angola nos idos de 50 do séc. XX, e que foi depois "retornado" à força, pode ser apresentado, sem ofensa, como "branco de 2ª" (...e eu como preto de 1ª na nossa "Guiné... zinha"). Já levantou aqui uma questão engraçada sobre o vinhinho que ia para as nossas Áfricas, o tal "vinho para o preto", de que nos fala o José Capela, e que dá o mote para esta nova série. De qualquer modo, em vez da "água de Lisboa", ele já preferia a "Cuca" (como bom angolano que era e que queria continuar a ser em 1975):
(...) O único vinho verde possível de encontrar nas colónias, nos anos 50, antes do grito" Para Angola rapidamente e em força", era apenas o Casal Garcia, caríssimo, e só em alguns restaurantes mais para o fino.
Com a ida dos militares para a guerra, começou a aparecer o Gatão e outras marcas engarrafadas, porque até ali foi sempre vinho "embarrilado", barris de 100 litros, nunca azedava, milhões de litros, desaparecia todo.
Ninguém distinguia se era martelado ou não, ninguém se queixava à ASAE (devia ter outro nome).
Embora, no caso de Angola, a bebida nacional fosse a cerveja. A CUCA promovia
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Angola bebe Cuca desde 1947... (Imagem: BUS Creative Agency, com a devida vénia...) |
(...) O único vinho verde possível de encontrar nas colónias, nos anos 50, antes do grito" Para Angola rapidamente e em força", era apenas o Casal Garcia, caríssimo, e só em alguns restaurantes mais para o fino.
Com a ida dos militares para a guerra, começou a aparecer o Gatão e outras marcas engarrafadas, porque até ali foi sempre vinho "embarrilado", barris de 100 litros, nunca azedava, milhões de litros, desaparecia todo.
Ninguém distinguia se era martelado ou não, ninguém se queixava à ASAE (devia ter outro nome).
Embora, no caso de Angola, a bebida nacional fosse a cerveja. A CUCA promovia
frequentes mini Oktoberfest memoráveis para quem tomava parte. (...) (**)
Em suma, o assunto parece que dá "pano para mangas", neste caso, garrafas e garrafas de vinho e cerveja, pires de tremoços e muito paleio... Esperemos que os leitores nos mandem os seus contributos para esta nova série, que é uma variante da série "Comes & Bebes"... e do "Humor de caserna". Que não nos falte, ao menos, o vinho, a cerveja e os tremoços.. E o humor. Sobretudo o humor.
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Notas do editor LG:
(*) Um barril de quinto ou décimo era 1/5 15 ou 1/10 de uma pipa. Um recipinete mais pequeno que facilitava o manuseio, o transporte em navio, a descarga, etc., nomeadamente com destino para o Brasil e África. A pipa-padrão, na época, era a Norte do País (Porto, Douro), equivalente a 525/550 litros. Um barril de quinto ou décimo seriam, pois, c. 100 litros ou 50 litros, respetivamente.