O paquete Funchal, da Companhia Insulana de Navegação. Era uma das jóias da coroa nossa Marinha Mercante. Inaugurado em 1961, levava caerca de 400 passageiros. Luís Miguel Correia recorda-o aqui, com saudade, no seu blogue. E o nosso camarada L.J. Mendes Gomes fez nele o primeiro cruzeiro da sua vida, antes de ser mobilizado para a Guiné. Foi comprado por um armador grego.
Foto: Postal da época. Fonte desconhecida.
1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.
OFICIAL E CAVALHEIRO: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal
por J.L. Mendes Gomes
Depois da viagem nocturna de comboio até Lisboa, Santa Apolónia, os felizardos tinham o paquete Funchal, na Rocha de Conde Óbidos, à espera. A saída seria às 12h.
Lisboa nunca lhe pareceu tão bonita. Parecia adivinhar o contentamento que o tomava, a si e seus camaradas, todos na casa dos 22/23 anos, coberta de um radioso dia de sol. O Tejo imenso e azul à esquerda e o casario esbranquiçado da cidade mourisca, à direita, em escadinha, até aos cumes altaneiros do Castelo de São Jorge. O Terreiro do Paço, imponente, voltado para o além …-…Tejo, num abraço fraterno. O Cristo Rei, lá em cima, a tocar as nuvens brancas do céu azulíneo. Tudo parecia associar-se à alegria que parecia envolver o mundo inteiro.
Largados do táxi que os levou até à beirinha do esbelto barco, todo de branco, ali ancorado, subiram, leves, a escada, de mala na mão, até ao portaló, onde os aguardavam, risonhos e garbosos, os oficiais da marinha mercante.
Mais parecia um sonho. Um verdadeiro palácio se franqueava, no seu ventre. Salas imponentes, de ricos riposteiros e muitos sofás harmoniosamente distribuídos pelo chão ricamente alcatifado, à volta de mesas de madeira luzente, com vasos de plantas viçosas; vários bares, recheados de uma profusão de garrafas, sobre as prateleiras de madeira lustrosa como o mel, copos em vidro refulgente.
Longos corredores desaguavam em escadarias que davam para o imenso labirinto de fidalgas suites sobrepostas, nos diversos pisos que enchiam aquele enorme vaso, poisado nas águas mansas do Tejo, muito maior do que parecia, visto de fora.
Não tardou muito que um rugido cavo se fizesse ouvir, vindo lá das profundezas do bojo, seguido de um grosso e forte silvo de corneta, atirado para os ares. O barco começou a baloiçar levemente e o cais a afastar-se dele, saudoso. Mais uns minutos e as gentes, buliçosas, já pareciam distantes e minúsculas, a afastar-se, mais e mais…
Lisboa surgia deitada sobre as encostas suaves, ao longo das sete colinas, enquanto o paquete deslizava à tona das águas frescas do Tejo, como se fora uma larga avenida azul, à vista das margens ridentes de casario, à direita e altas escarpas amareladas de barro nú, à esquerda, em cortejo lento.
Mais um pouco e o oceano imenso aparecia à frente, sedutor, convidando-os para uma aventura, no segredo da suas ondas mansas, tecidas pela brisa branda, que vinha dos longes, da cortina de céu pendente do infinito. Dentro, uma população de pessoas desconhecidas para conhecer. O barco estava ao serviço das carreiras habituais de transporte marítimo, em trabalho e em recreio, para quem o preferia à rapidez e às alturas dos voos em aeronaves…
O almoço aguardava-os num faustoso refeitório, com largas janelas pintadas pelo azul natural do céu exterior, sempre renovado. Muitas mesas redondas, largas, cobertas de toalhas de brancura alvinitente. Ricos serviços de loiça e talheres prometiam uma cozinha deliciosa, nas breves horas que se iriam passar.
E foi verdade. O almoço mais parecia um banquete de reis e princesas. Empregados vestidos a rigor, de elegantes fatos brancos, bem brunidos, giravam graciosos, por entre as mesas, deixando os pratos a fumegar diante dos olhos regalados, enquanto outros iam enchendo os copos finos de dourado vinho branco ou de fogoso tinto, puro.
O navio sulcava já o largo oceano e um ligeiro baloiçar fazia desaparecer das mesas, ora nesta, ora naquela, alguns dos comensais mais desafortunados. Foi o caso do camarada Teixeira Lima, antigo colega, bexigoso, de Arouca e do pequeno Ribeiro Gonçalves, alentejano ratinho, das raias de Campo Maior. Ali seguiam com ele, na mesa dos que iam para o Funchal. De repente, levantaram-se e desapareceram porta fora… antes que fosse tarde, disseram-no depois. Felizardos os que aguentaram. Deles foi o reino dos … céus!
Ao jantar, já as coisas correram bem. Com todos à mesa, foi a desforra.
A tarde foi passada na amurada ampla, como largo terreiro, onde toda a gente ia aparecendo, curiosa e repetia os mesmos gestos de plenitude, perante o surpreendente deslumbramento da vastidão das águas, sob a abóboda azul. Predominavam os nórdicos, lácteos, de meia idade, sedentos de sol e, de vez em quando, flausinas pintalgadas, de olhar indiferente, aparentemente, distante e castigador. Estratégias…
O barco seguia no seu ritmo certo, de manso alazão, rasgando a mole ingente de águas profundas e um largo manto revolto de espuma ficava-lhe atrás, perdurando em rendilhados brancos, cada vez mais ténues, até se perderem, desfeitos, na ondulação esverdeada.
Algumas gaivotas acompanhavam-no, teimosas, talvez à procura dos peixes batidos ou estonteados pelo rodar potente da hélice… Durante a tarde, cada um entregou-se, naturalmente, ao que mais preferia desfrutar. À noite, no jantar, já havia histórias desmedidas de aventura amorosa, na boca de alguns camaradas…difíceis de encaixar em tão curto pedaço de tempo.
Ao Quim Luís, nada disso interessava, para já. Sorver a frescura da brisa carregada de iodo que se desprendia daquele caldeirão refervente, em salpicos de espuma, olhar para os longes do mar infinito, imaginar o que iriam ser os próximos tempos nas imaginárias paragens da ilha bela e desconhecida, era tudo o que lhe perpassava por detrás dos olhos, a partir da amurada alta da nave baloiçante. Só a meio do dia seguinte estariam defronte da ilha. Se tudo corresse bem.
Faltava pouco, pensando que a maior parte do tempo seria passado a dormir numa das suites de 1ª classe, reservada para os oficiais… Antes, porém, de se irem deitar, ainda haveria o serão festivo e dançante, ao ritmo da orquestra especial de bordo, no amplo salão, iluminado por faustosos candelabros e lustres faiscantes de luz irizada.
Toda a gente que ali seguia irradiava satisfação, nos rostos, em troca gratuita de sorrisos, como se se conhecessem há muito tempo…Foram poucos os que não deram o seu contributo de dança, tão descontraída, quanto possível, naqueles tempos. Sem saberem, estavam a despedir-se dos ventos ingénuos do romantismo…
Os Beatles endiabrados já tinham lançado os primeiros lagidos de revolução no seu imprevisto de sons e de ritmo. As primeiras horas do 2º dia de viagem já eram passadas, quando o nobre salão ficou deserto e o barco, em silencioso baloiçar, conseguiu adormecer a miríade de hóspedes aconchegados no seu ventre...
Era um enxame de destinos desconhecidos e separados que seguia ali. Uma teia entrelaçada de sonhos. Sonhos a nascer, sonhos a crescer e sonhos a cumprir-se… Antes de ir deitar-se, não resistiu à tentação de subir à proa do barco. Nunca vira coisa assim. Sublime e esmagadora solidão. Debruçado e cotovelos na grade húmida, apoiou a cara nas mãos em concha e caíu em êxtase, irresistível.
Aquela visão não lhe parecia deste mundo. Um espelho imenso resplandescente reflectia a chuva densa e transparente de um luar banhado de leite que caía de uma enorme bola, inesgotável, recortada no firmamento longínquo, profundo e escuro, salpicado de luzinhas trementes.
Apenas ouvia o borbulhar, lá em baixo, da água cortada pela quilha do barco que seguia afoito, logo abraçado por abundantes madeixas de espuma e a frescura da brisa a entrar pelas narinas. Só a baforada de fumo negro que se desprendia da gorda chaminé, saliente da crista do navio e as pálidas janelas iluminadas da torre de comando, davam sinal de vida.
Para trás, ficava um imenso ermo coberto pelo mesmo manto diáfano e fosforescente. Ficaria ali a noite inteira, inebriado, não fosse um súbito arrepio de frio que lhe percorreu a espinha da cabeça aos pés. Em passos lentos, deixou o deslumbramento e dirigiu-se para o seu quarto nº 444. Fácil de fixar, ao meio do corredor, do lado esquerdo (a bombordo, como se dizia na língua dos mares). Acendeu a luz do quarto e ficou dentro de uma verdadeira suite, de hotel de 5 estrelas. Estava saciado e certo de que o seu caminho passava por aquelas horas de encantamento.
O roncar soturno que vinha da casa das máquinas até ao travesseiro fresco onde poisou a cabeça e o embalar suave e ritmado,do barco, para cima e para baixo, ajudou-o a desprender-se, feliz, daquele dia tão intenso de vivências.A Madeira não lhe aconteceria, também, por mero acaso. Amanhã, já estaria a pisar de novo, terra. Terra estreita, cercada de água por todos os lados, assim se aprendia na 4ª classe. Madeira, Porto Santo e Desertas, formam aquele arquipélago onde a gente se sente e é português. Com todas as vastas possessões ultramarinas, espalhadas pelo mundo inteiro, recordou as horas passadas, com os colegas, vaidosos, diante do mapa, na escola primária.No dia seguinte, ia sentir ao vivo essa experiência mítica. Depois, ainda viria certamente, a mesma sensação por terras de África. Oxalá, não. Naquelas circunstâncias. Não. Não queria pensar nisso. Cada dia, no seu dia…Era o lema de vida que elegera.
[Continua]
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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