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segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25652: Humor de caserna (67): O Spínola teria-se-ia desmanchado a rir, se fosse vivo, e tivesse lido esta história do cabo Abel, contada aqui, em versão condensada, pelo nosso Alberto Branquinho

 
1. Ó Alberto Branquinho, o Spínola deveria ter gostado de ler esta história... Não sei se ele tinha sentido de humor e se chegou a aprender o crioulo tão bem como tu. O seu biógrafo é omisso sobre isso. Mas ter-se-ia desmanchado a rir, como eu me desmanchei,  ao ouvir a resposta da moça que ia para escola, ao cabo Abel, que, armado em dono da guerra, lhe queria barrar o caminho no cerco ao seu bairro... Mais: teria ficado imensamente satisteito e até orgulhoso com a "lata" da bajuda, vendo na sua atitude e comportamento o triunfo da sua política "Por uma Guiné Melhor"... Não achas ?!

[ Para quem não sabe, o Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, foi alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69). "Por Portugal, um por todos, todos por um", era a divisa do seu batalhão. Chegaram a Bissau a 1 de maio de 1967 e regressaram a casa em 2 de março de 1969. Portanto, ainda "trabalharam" com o Spínola nove meses... Tem 140 referências no nosso blogue, é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo". ]


Noss’ cabo Abel bai na Bissau

por Alberto Branquinho


O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau.

O batalhão a que pertencia chegou a Bissau no paquete que os transportava desde Lisboa, mas a sua companhia saiu do paquete sem pisar terra, passou, diretamente, para batelões rebocados e, assim, foram rio acima,deixando, ainda, a bordo as restantes companhias do batalhão. (…)

Nunca tinha saído de junto da companhia, nos vários aquartelamentos por onde tinha peregrinado. Nem sequer uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. (…)

Agora, passados vinte e três meses, em Bissau,à espera de embarcar para a Metrópole, também já com a cara verde-amarela azeitona que o impressionara nos velhinhos no dia da chegada, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez!  

Era um rio de vida que corria pelas ruas – tropa bem fardada, polícia militar, polícia naval, civis, muitos civis e, principalmente, mulheres, muitas mulheres! Todas bonitas. E, até, muitas mulheres brancas, que já não via há muito tempo. (…)

Em Bissau a companhia recebia, por vezes, instruções para fazer cerco aos bairros negros de Bissau. O bairro era cercado pelas quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completo o cerco, grupos de militares inspecionavam casa a casa, pedindo os documentos.

(...) Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G-3 entalada entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas, tinham sido vividas, em emboscadas ou cercos no interior da Guiné,

De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca,trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e,  com a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:

Bajuda, bô cá pude passa!

A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:


− Porque você não fala comigo português direito ?

E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau. O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar. 

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 141/43

(Título, excertos,  revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

sábado, 30 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25318: Um conto de António Graça de Abeu: "Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (2018) - Parte II

Retrato do artista quando jovem... António Graça de Abreu, 
nascido no Porto, em 1947, licenciado em línguas germànicas 
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 
trabalhou na China, como tradutor, na Editora Pequim 
em Línguas Estrangeiras.  Viveu em Pequim 
e Xangai de 1977 a 1983. Esteve no  CTIG como alf mil, 
CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar,  1972/74). 
Escritor, poeta, tradutor, professor universitário...
e "globe-trotter", tem mais de 20 títulos publicados,


Capa do livro. 
Contacto do autor:
abreuchina@netcabo.pt
1. Segunda  parte do  conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" extraído do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria,  Lua de Marfim Editora, 2018, pp. 36-57) (capa â direita).

É uma gentileza do autor e nosso camarada, a quem agradecemos. É uma história de encontro e separação de duas culturas,  e de amores efémeros de um homem (Bernardo, português, com formação universitária, e já na casa dos 30 e tal, claramente um "alter ego" do escritor) e uma jovem chinesa de Cantão e Macau,  de 24 anos,   Lay Yong.

Estamos em 1981 em  Cantão  e em Macau (território ainda sob administração portuguesa,  até 1999). 

Lay Yong e Bernardo conheceram-se quando  viajaram juntos, em 1981. na "ferry-boat" que fazia a viagem, de 120 quilómetros, entre  Cantão e Macau, ao longo do rio das Pérolas (*)

 

Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - Parte II

por António Graça de Abreu (*)


 II


Monsenhor Manuel Teixeira
 (1912-2003),
figura proeminente da comunidade
 macaense e da cultura luso-chinesa.
Foto: Cortesia de Jornal Tribuna
 de Macau (2018)
Bernardo decide, com alguma originalidade e ousadia, levar Lai Yong na visita ao padre Manuel Teixeira e ao Seminário de S. José.

Conhecera o velho missionário na primeira vinda à cidade do Nome de Deus
na
hina, em 1979, num jantar em casa de um engenheiro português da CEM (Companhia de Electricidade de Macau). 

No fim do repasto, enriquecido com iguarias luso-chinesas, e uns olorosos tintos de excelsa cepa portuguesa, o bom sacerdote despediu-se dos convivas e regressou ao seu Seminário de S. José sobraçando uma garrafa de bom whisky velho. 

Informaram Bernardo que uma garrafinha do depurado néctar escocês, domelhor, trinta anos de casco, rótulo não sei de qual cor, era  a normal recompensa para se poder contar  com a presença do nosso clérigo em jantares, com gente importante (ou tida como tal!).

O padre Manuel Teixeira haveria de me confirmar que, para combater o calor nestas terras subtropicais do sul da China, nada melhor do que uns valentes copázios de “chá da Escócia” ou seja, de bom whisky, com umas pedrinhas de gelo.

O excelente sacerdote, nascido na transmontana Freixo de Espada à Cinta, chegara a Macau em 1924, com apenas 12 anos de idade. Aqui havia estudado no Seminário de S. José, aqui havia sido ordenado padre e, para além de uma passagem pelas missões de Malaca e Singapura, a Macau dedicara quase toda a sua longa vida.

Conhecia, como ninguém, as singularidades da fascinante História de Macau. Eescrevia, escrevia dezenas e dezenas de volumes sobre a presença portuguesa em terras do Extremo Oriente.

Inconfundível na sua batina branca, umas longas barbas também brancas, meão de altura, os olhos curiosos a cintilar por detrás de uns óculos pequenos, de aros pretos, o sacerdote simpatizara com Bernardo, a quem chamava “o homem de Pequim”, esse estranho rapaz português, habitante lá das paragens do norte da China que nunca deixava de o visitar, cada vez que vinha a Macau.

Era tempo do falsamente denominado pequinense ir ao encontro do padre Manuel Teixeira levando a Lai Yong como companhia. A menina de Cantão, como quase toda a gente chinesa, macaense e portuguesa desta zona sul da cidade, conhecia oreligioso de vista, pousara os olhos na sua figura única atravessando as ruas de Macau, sabia das longas caminhadas que fazia cruzando a ponte Nobre de Carvalho. 

A caminho de casa, na Praia do Manduco, a Lai Yong passara incontáveis vezes pelo largo de Santo Agostinho, descera, subira mil vezes a ladeira e calçada anexa ao seminário de S. José. Mas jamais sonhara entrar um dia naquele vasto espaço fechado onde residia o padre Teixeira.

Toquei à campainha da escola religiosa e um empregado, já idoso, veio abrir. Mandou avançar o português e a chinesa. Rapidamente subimos as escadas e entrámos no seminário. À esquerda, cruzámos um longo corredor ladeado por pinturas religiosas dos séculos XVII e XVIII, que conduzia aos aposentos do sacerdote, situados ao fundo, à direita, num quarto que eu já conhecia de visitas anteriores. A porta estava entreaberta,   espreitei para o interior. O padre Teixeira sentava-se à sua secretária onde se montoavam papéis desordenados e muitos livros antigos. Vestia umas calças brancas emuma simples t-shirt colorida, com a imagem de uma praia e os dizeres I love California.

Ao dar pela inesperada chegada dos visitantes, levantou-se célere, rodou no quarto, foi ao cabide e vestiu apressadamente a batina branca, de velho missionário, por cima damsua original t-shirt. Estava pronto para nos receber.

Alguma surpresa ao ver Bernardo acompanhado por uma formosa mulher chinesa. Os cumprimentos de circunstância e logo quis saber quem era a moçoila. Uma amiga, uma jovem de Cantão enraizada em Macau, a viver com os pais ali na rua da Praia do Manduco, quase paredes meias com o seminário de S. José. Conhecia o padre e o admirava-o.

– Sim, mas onde é que foi buscar esta mulher, Dr. Bernardo? – perguntou o sacerdote.

O “homem de Pequim” lá desbobinou a história do encontro recente no barco da carreira Cantão-Macau e a descoberta da simpática Lai Yong.

–  A rapariga é muito bonita. Então, porque é que não fica cá por Macau? Até pode casar com ela, e ela pode dar à luz uma data de macaenses que tanta falta fazem nesta nossa terra.

– Vou pensar, meu caro amigo, vou pensar nisso.

O padre Manuel Teixeira conta-nos então a história de um casamento recente que fez ali na igreja do seminário de S. José.

– Sabe,  Dr. Bernardo, aqui ao lado no Teatro D. Pedro V, temos, todas as noites, o espectáculo do Crazy Horse Club Show. São umas bonitas bailarinas francesas que dançam todas nuas. Já me convidaram a assistir, mas eu sou padre, não posso ir a essas coisas. Uma das moças fala muito comigo, é devota a Deus, e pediu-me ajuda para a casar com um dos rapazes, também bailarino. Há duas semanas fizemos um bonito casamento aqui na igreja de S. José, com a presença destas lindas mulheres francesas, todas muito bem vestidas.

Pois, o fluir das vidas, os insondáveis mistérios da fé e as damas “pecadoras” que se despem todos os dias, com engenho e arte, para agradar aos olhos gulosos dos homens. Tudo ao de leve, passageiro. Ou talvez não.

Num outro contexto, ou talvez não, num dos muitos artigos que escreveu para osjornais de Macau, o padre Manuel Teixeira, investigador, historiador e sacerdote,conclui a sua prosa nos seguintes termos: 

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza (…) Só os meus livros permanecerão (…) essa é a minha consolação.”


IV

Lai Yong e Bernardo vão esta noite jantar a uma espécie de taberna chinesa situada num recanto do Porto Interior. Foi decisão da menina que conhece todos os esconsos do quarteirão, cresceu ali ao lado, na Praia do Manduco. Esta mulher gosta de jogar, de ludibriar os enredos simples e complexos do quotidiano. Faz-se agora acompanhar de um português bem parecido, que vive em Pequim, e que até fala um pouco de mandarim, coisa raríssima em Macau.

 No meio do seu povo, mostra o rapaz e mostra também o distanciamento que convém, nem mão na mão, nem uma carícia, nem um olhar mais quente, ou simplesmente tépido. Apenas amigos, ou conhecidos, hoje para um jantar de negócios, com sopa de fitas, peixe frito, legumes e camarão.

No tasco, aparece e mete conversa um sujeito chinês, nascido em Macau que a Lai Yong me diz ser “o rei do camarão”, comerciante de peixe e dono de não sei quantos barcos de pesca. O empresário, especialista em moluscos e crustáceos, esteve ecentemente em Pequim, pela primeira vez na vida, e num mandarim das docas, quase tão mau como o de Bernardo, fala na capital da China como sendo “tudo em grande”, as normes e largas avenidas onde cabia, com facilidade, toda a cidade de Macau. Pois, mas na opinião de Bernardo, as cidades são muito diferentes, uma é a enorme capital do velho Império do Meio, outra um pequenino abcesso exótico, com portugueses lá dentro, no sul da excêntrica província de Guangdong.

A minha amiga Lai Yong nunca foi a Pequim, nem a Xangai. Em toda a sua vida na China quedou-se sempre por estas terras do sul, Macau, Hong Kong e Cantão. Não conhece mais nada. Digo-lhe que talvez um dia seja possível partirmos os dois pela China dentro, eu a servir de cicerone, a mostrar-lhe os recantos do Império a que ela pertence. Eu, a fingir que sou especialista em cultura chinesa, que conheço razoavelmente o mundo chinês, e ela a duvidar, o sorriso outra vez a bailar nas frestas dos olhos, na comissura dos lábios.

Bem comidos, é tempo de devolver a Lai Yong ao seu lar, logo ali ao lado do Porto Interior. Mas fazemos uma caminhada mais longa até à Barra, e regresso. O braço de Bernardo sobre os ombros da mulher chinesa, apertando-a na carícia do humilde e mais do que humano desejo. Ela, na aparência sempre meio tímida e surpreendida, aconchega o seu corpo no meu. 

Pergunto-lhe se tem, ou tem tido namorados. Sim, dois ou três, mas nada de importante, não confia muito nos homens, não prestam, agora não tem namorado nenhum. Então e eu, o Bernardo, o homem de Pequim? Não és meu namorado, apenas um português que conheci no barco da Cantão para Macau. És muito kind (Lai Yong utiliza o adjectivo inglês!) para comigo. Gosto de te conhecer e de, pela primeira vez na minha vida ter, conversando comigo, um homem de Putaoya 葡萄牙 (Portugal), o país lá do Ocidente.

Bernardo responde dizendo, tu também és a primeira mulher chinesa que eu tenho, a sério, por isso, todo este prazer em te agasalhar nos meus braços, de te beber como um manancial de vida, de te beijar a testa, a boca, o colo, de desejar a viagem pelom teu corpo inteiro, da cabeça aos pés, dos pés à cabeça.

V

Para a menina de Guangdong, chegada de surpresa no apogeu do dia:


Vieste, branca e pura
como a água de um regato escondido
nos requebros e esconsos da montanha.
O teu corpo aberto como um prado
no resplandecer do sol nos meus olhos.
Fazia calor,
a humidade escorria pelas paredes da tarde,
mas toda a frescura nascia no lótus do teu sorriso.
As minhas mãos correndo na tua pele de seda,
a tua cintura deslizando como uma serpente num lago.
Houve regatos chilreantes, gritos de pássaros,
ocarinas, timbales e gongos.
Depois, uma taça de caldo de peixe.

VI

Hoje, depois de uma grande volta, de mão dada, pela fortaleza do Monte e pelo jardim de Lou Lim Ioc, voltámos a jantar no restaurante do Hotel Metrópole, com aquelas meninas cantoras de Hong Kong de voz delicodoce, bem timbrada, mais os petiscos luso-chineses, e vinho verde. Ao lado, a companhia da Lai Yong, do infindável sorriso e do corpo perfumado a pó de pérolas. 

Ah, Macau, Macau! Bernardo que vem de três anos de quotidianos em Pequim, a capital do Império, austera e fria, puritana e falsa, já não sabe o que dizer.

Faltam dois dias para o seu regresso à capital chinesa. Lai Yong tem uma pequena oferta para o seu amigo português. Escreveu sobre um tecido de seda, usando cuidadosamente o pincel e a tinta da China -- na sua caligrafia arredondada e insinuante --, um poema de Du Fu (712-770), com Li Bai, os maiores poetas de toda a história literária da China. São três dezenas de versos sobre a amizade entre letrados, sobre o respeito, a admiração entre pessoas que se querem bem. Diz-me que o poema terá mais a ver comigo do que com ela.

Lê-me o poema, mas são tantas as palavras, os caracteres que eu não conheço! Peço-lhe ajuda. Meio em mandarim, meio em inglês, lá vamos desbravando os versos.

Continua a haver tanta coisa que eu não entendo! Não faz mal. Lai Yong diz-me para eu levar o poema de Du Fu e, para em Pequim, com a ajuda dos meus companheiros de trabalho chineses, tentar traduzi-lo para a minha língua.

Sentados num recanto do jardim de Lou Lim Ioc, a menina chinesa pega na mão direita de Bernardo, levanta-a e passa-a, acariciante, pelo jade do seu rosto. Pousa depois a mão do rapaz português na polpa da sua perna, e deixa-a ficar.

O poema do grande Du Fu é assim:

醉時歌

諸公袞袞登臺省

廣文先生官獨冷

甲第紛紛厭粱肉

廣文先生飯不足

先生有道出羲皇

先生有才過屈宋

德尊一代常轗軻

名垂萬古知何用

杜陵野客人更嗤

被褐短窄鬢如絲

日糴太倉五升米

時赴鄭老同襟期

得錢即相覓

沽酒不復疑

忘形到爾汝

痛飲真吾師

清夜沈沈動春酌

燈前細雨檐花落

但覺高歌有鬼神

焉知餓死填溝壑

相如逸才親滌器

子雲識字終投閣

先生早賦歸去來

石田茅屋荒蒼苔

儒術於我何有哉

孔丘盜跖俱塵埃

不須聞此意慘愴

生前相遇且銜杯



Ébrio, uma canção

Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,
tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.
Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,
tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.
A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,
o teu talento, superior ao dos letrados do passado.
Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,
a deixar o teu nome para além dos séculos.

Sou um rústico que não é desta terra,
de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.
Quero arroz, vou ao celeiro imperial,
obtenho ainda cinco colheres por dia,
mas se quero abrir o coração,
vou ter contigo, meu amigo.
Quando ganho umas tantas moedas,
cuidamos de nós, vamos gastá-las em vinho.
Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,
somos gente simples, descuidada e livre!...

Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,
no silêncio da noite da Primavera.
Lá fora, a chuva fina como flores
caindo dos telhados, apagando as lanternas.
Entoamos cânticos, animados, iluminados
por espíritos a montante, a jusante do rio.
Para quê pensar tanto no destino?
Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.

Outrora, um grande poeta lavava canecas e pratos,
um ilustre letrado lançou-se de um torreão.
Quem somos nós, no fim de tudo?
Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,
cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.
Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?
Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.

Para quê tanta tristeza, tanto queixume?
Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho. (#)

António  Graça de Abreu

(#) Nota do autor: Numa posterior revisão à tradução do poema, procurei substituir a sobrecarga de nomes e apelidos que Du Fu usa  conhecidos de qualquer cidadão chinês medianamente culto , por palavras e títulos semelhantes, sem o nome em chinês, o que creio, ajuda o fluir da tradução para língua portuguesa. 

Assim, o “amigo” de Du Fu é o mandarim Zheng Qian, seu contemporâneo, os “letrados do passado” são o imperador mitológico Fuxi (sec. XXVIII a.C.), mais os poetas Qu Yuan e Song Yu (sec. III a.C.). 

“rústico que não é desta terra” é o próprio Du Fu, habitante do lugar de Duling, nos arredores de Chang’an.

O “poeta que lavava canecas e pratos” e o letrado que se “lançou de um torreão”, são respectivamente Sima Xiangru (179 a.C. – 117 a.C.) e Yang Xiong (53 a.C.- 18 d.C.). 

Por último, Du Fu fala de Confúcio (551 a.C. – 479 a.C.) e de Zhi, o “salteador de estradas.”

_____________

 (Continua) 

(Seleção,  revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)

_______________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)

sexta-feira, 29 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25315: Um conto de António Graça de Abeu: "Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (2018) - Parte I


O escritor (n. Porto, 1947) quando jovem 
(c. 30 e poucos anos)


António Graça de Abreu, na China (c. 1981)

1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de  26 do corrente: 

Luís, segue o texto dos primeiros amores luso-chineses. Acho que dá para publicar, lê-se com gosto, e como dizia o Camões “melhor é experimentá-lo que julgá-lo/mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.”

Creio que podes dividi-lo em três ou quatro partes. As fotos são todas minhas, excepto a do padre Teixeira que é da net. Mas não deve ter direitos de autor.

Abraço,

António Graça de Abreu


Depois da Guiné, 1972/74, com largas estadias em Canchungo, Mansoa e Cufar, regressado a Portugal a 20 de Abril de 1974, era tempo de esquecer as charangas da guerra e recomeçar nova vida. 

Com a democratização da sociedade portuguesa, surgiram os partidos políticos e em 1976 foi tempo de me aproximar dos maoistas do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o único que mantinha um relacionamento institucional com Pequim, com o Partido Comunista Chinês. 

Em finais de 1977 fui convidado pelo Eduíno Vilar, secretário-geral do PCP (m-l), conhecia bem a sua esposa, a Ana Faria,  minha colega de Faculdade de Letras – para ir trabalhar na China, nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. 

Depois de muito pensar aceitei, o contrato era de quatro anos e acabei por ficar seis anos na capital chinesa e em Shanghai, tendo mudado completamente a minha vida. 

Dediquei-me a estudar a China, a escrever sobre a China, a dar aulas em diferentes universidades portuguesas sobre estudos chineses. 

Conheço pouco, mas a China não me é estranha.

O meu primeiro mergulho no feminino chinês é este texto, este conto, 80% verdadeiro, passado em Macau, que deixo à consideração dos nossos camaradas da Guiné. Prometo leitura exaltante, agradável, edificante.

António Graça de Abreu


Capa do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria,  Lua de Marfim Editora, 2019, 91 pp.)

Email do autor: abreuchina@netcabo.pt


2. Segue-se o conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (pp. 36-57), uma história de encontro e separação de duas culturas,  e de amores efémeros de um homem (Bernardo, português, com formação universitária, e já na casa dos 30 e tal, claramente um "alter ego" do escritor) e uma jovem chinesa de Cantão e Macau,  de 24 anos, Lai Yong. 

Estamos em 1981 em  Cantão  e em Macau (território ainda sob administração portuguesa,  até 1999).  

Vamos dividir o conto em três partes, devido à sua extensão. E agradecemos ao autor, nosso camarada, um histórico do nosso blogue, a sua gentileza e generosidade. O conto foi publicado num dos seus últimos livros, já aqui objeto de uma primeira nota de leitura (*) 

 O António Graça de Abreu tem cerca de 340 referências no nosso blogue.  Foi alf mil, CAOP1 ( Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).  Escritor, poeta  tradutor e professor universitário, é um reputado sinólogo, especialista em língua, cultura e história da China. (LG)



A menina de Cantão e Macau: (...) "Em Santiago da Barra, / desagua um rio de ternura, / para eu navegar
no jade do mar, na tua formosura." (...) 


Fotos (e legenda) : © António Graça de Abreu (2024). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - Parte I

por António Graça de Abreu


Se não trazem amantes para os quartos, 

as vidas dos anjos não passam de um sonho.

Li Shangyin (813-858)


Grave e leda no gesto, e tão fermosa 

Que se amansava o mar de maravilha.

Camões, Os Lusíadas, Canto VI, 21


I

Cantão, ano de graça de 1981, Outubro.

Diante da cidade, no pequeno cais fluvial do outro lado do braço do rio das Pérolas, o barco da ligação nocturna Cantão-Macau está prestes a partir.

A polícia chinesa procedeu à rigorosa verificação de passaportes e salvos condutos, vistoriou as bagagens dos cidadãos, cerca de duas centenas, que viajam no ferry da noite rumo à pequena cidade portuguesa, na península do Santo Nome de Deus, na China.

Sou o único estrangeiro a bordo. Cheguei esta tarde a Cantão, depois da longa viagem desde Pequim, trinta e nove horas, 2.700 quilómetros na carruagem yingwoche 硬卧车, ou seja, “cama dura”, no beliche do meio de um comboio ronceiro, fumegante e sujo. 

Agora, o naviozinho, uma espécie de cacilheiro meio alindado, acomoda os passageiros para o possível sono da noite numa vasta camarata, com dois pisos iguais em convés coberto, tipo salão, cada andar com uma centena de camas, todas unidas umas às outras.

Depois do comboio, antevejo uma noite tranquila, embalado pelo navegar ritmado do barco, nos cento e trinta quilómetros até Macau por águas escuras, barrentas,mas bonançosas, no delta do rio das Pérolas.

Cabe-me em sorte o leito número 8 no piso inferior do “cacilheiro” chinês. Oito é   um bom número, associado à prosperidade e à riqueza. Deposito a mala, apalpo acama, instalo-me. 

Mesmo ao lado, no número 9  outro número de excelsas qualidades a apontar para longa vida, poder e harmonia, – está uma menina chinesa aí de vinte anos, de pernas cruzadas, bonitas, sentada no colchão. Esplendorosa. Surpreende-se, curiosa com a minha presença, tal como eu me espanto face à sua inesperada aparição.

Vamos dormir, lado a lado, separados por um estreito tabique de madeira, ao rés dos nossos corpos. A chinesa não é bem menina, mais uma mulher jovem, 'mignonne', o rosto cheio, os olhos amendoados e fundos, os cabelos descendo pelos ombros e um sorriso que passeia na fissura da almofada dos lábios, e chega até mim. Sorrio também.

O barco vai descendo o rio. A meu lado, que sorte, que formosa mulher!

Ajeitamo-nos nas camas, é quase hora de fechar os olhos para um possível sono descansado.

No meu catastrófico chinês mandarim, saúdo a inesperada companheira de tãopróximos espaços a compartilhar.

– Boa noite, como te chamas?

–  Li Yang, mas em cantonense chamo-me Lai Yong.

 Eu sou Bernardo, português, vivo há quatro anos em Pequim, onde trabalho e tenho a minha vida. Esta é a minha terceira viagem a Macau. Ni ne? E tu?

 Nasci em Cantão, vim pequena para Macau, com os meus pais.

 O que é que fazes, Lai Yong?

– Trabalho numa loja de arte chinesa, pintura tradicional, caligrafia e livros.

Este o essencial arrevesado da conversa. Estamos apresentados. Outra vez o fíníssimo sorriso a baloiçar nos lábios da Lai Yong e ela a enroscar-se no edredão, preparando o sono da noite. Pergunto-lhe em mandarim, depois em inglês:

 Que língua vamos falar?

 Não vamos falar, vamos dormir. Falo cantonense e mandarim, mais umas palavras de inglês. Mingtian jian, 明天见, “até amanhã”, good night.

 Mingtian jian, sleep well.

Vivendo em Pequim desde 1977, habituara-me a uma existência dura em tempo de rigores políticos, à extremada separação entre chineses e estrangeiros, à quase impossibilidade de um relacionamento com estas meninas de jade e de seda, alvas e perfeitíssimas. 

Recordei como, desde há quatro séculos e meio, este feminino de assombros -- sublimes criações dos deuses , tem povoado o imaginário e a realidade quotidiana de tantos portugueses em Macau, diante de depuradas mulheres, mesmo se de origem humilde, mas quase sempre dedicadas e meigas, tão superiores à mediania e à mediocridade de incontáveis gentes.

A três palmos de mim, no barco da carreira Cantão-Macau, dorme uma primorosa filha das terras da China. O rosto sereno no travesseiro diminuto, creio que nenhum sonho, nenhum sobressalto. Bela e adormecida, Lai Yong parece porcelana.

Apetece tocar.

O barco desce por meandros e curvas do rio das Pérolas. Luzes dispersas, mais anegritude no horizonte, no vasto delta a abrir-se para o mar. Vou também tentar dormir.

Adormeço no sonho de uma chinesa vestida de nuvens coloridas aproximando-se de mim. Um braçado de flores, uma fada imaculada, erva fofa e tenra.

Acordo com um amanhecer difuso. Lá fora, a leste, o céu levemente azul, levemente rosa. Tudo ainda muito escuro. Cá dentro, na penumbra, ao lado, a Lai Yong continua a dormir. É uma ninfa descida de paragens celestiais, veio por detrás do debruar da noite para adormecer junto de mim.

No barco, a estibordo, adivinham-se ainda distantes as primeiras luzes de 9Macau, perfurando o clarear do dia. O farol da Guia a lampejar no alto, depois o traço iluminado dos hotéis Presidente e Lisboa, mais a linha da baía da Praia Grande.  

“cacilheiro” passa sob a ponte Nobre de Carvalho, circunda o extremo sul da península, rodeia a Penha, a Barra, o templo de Amá e encontra o cais para acostar, no Porto Interior. Os passageiros, ainda meio ensonados, deixam as camas para trás, carregam malas e embrulhos, aceleram o passo, saem do barco. É a debandada ligeira e rápida para dentro de Macau, sem nenhuma barreira ou fiscalização, os chineses da polícia e alfândega de Cantão já controlaram tudo. E Macau tem o privilégio de ser um porto livre.

É dia claro. Lai Yong e eu não temos pressa, somos quase os últimos a deixar o barco. Ajudo-a no transporte das suas muitas trouxas e pergunto-lhe:

 Logo à noite, queres jantar comigo?

Lai Yong espera uns vinte segundos, parece hesitar na resposta. Mas o sorriso macio, adocicado, brilha outra vez nos olhos, nos lábios, enche-lhe o rosto todo. Depois diz:

 Keyi, pode ser. Onde nos encontramos?

 Em San Ma Lou, a avenida Almeida Ribeiro, em frente ao Leal Senado.

Um aperto de mão cordial e bye bye, até logo.

II

Sete da noite. Chego ao Leal Senado, no centro da cidade, e questiono-me: Será que a Lai Yong vai mesmo aparecer, ou esfumar-se-á para sempre nos atalhos escondidos das sombras de Macau?

A mulher lá está, os mesmos sapatinhos pretos de Bela Adormecida, saia justa azul arredondando-lhe as formas do corpo, uma blusa vermelha apertada, com o botão de cima aberto no decote sobre o levantar dos seios perfeitos, uma pequena gola de folhos, os olhos de veludo castanho voluptuosamente pintados, a boca rubra entreaberta.

Outra vez o sorriso perfumado, acariciante e leve que não se desprende apenas do abrir dos seus lábios, quero crer que lhe circula no sangue. São os ténues entendimentos de um português romântico, hoje completamente fora de moda, homem da estranha casta lusitana, mas espantado, encantado, embriagado diante de possíveis enxertias em bacelos do sul da China.

Onde vamos jantar?

O Hotel Metrópole está na moda. O restaurante do hotel, o Beira-Mar, é uma sala enorme com um palco e um palanquim lateral onde jovens cantoras de Hong Kong, com voz de rouxinol afinado, entoam modinhas chinesas em cantonense, às vezes em mandarim. Degustamos umas tantas iguarias de comida meio ocidental, meio chinesa, bebemos uma garrafa de vinho verde Gatão, bem fresquinho, o néctar das encostas das terras de Amarante, em Macau, no seu melhor. Lai Yong tende mais para o lado do chá, mas decide fazer companhia ao amigo recente, em suaves libações vínicas. À nossa saúde, Ganbei, 干杯, brindamos à felicidade em nossas vidas.

Bernardo é o primeiro português que conhece nos seus quase vinte e quatro anos de idade, muitos deles já vividos em Macau. Falamos, falamos, falamos num linguajar de trapos, meio mandarim, meio inglês.

Quem és tu Lai Yong, mulher da China, de Cantão, de Macau? Quem sou eu, Bernardo, português dos distantes mares do Ocidente, ancorado em Pequim, agora de passagem por esta estranha cidade do sul do império, com portugueses lá dentro, e mais gente, macaense e chineses, todos filhos das singularidades do mundo e de dez mil desvairos?

Ao modo da velha China trocamos dados sobre os nossos signos, identificamo-nos, descobrimo-nos pelos animais do zodíaco chinês que estão por detrás do ano emque nascemos e que, quase de certeza, nos condicionam as vidas e nos fazem ser o que somos. Recordamos qualidades, esquecemos, por completo, os muitos defeitos.

 Lai Yong é Cabra, um animal simpático, de bom coração que irradia vontade de viver,

Bernardo nasceu no ano privilegiado do Porco Dourado, sob o elemento Fogo, tem por isso um ror de qualidades. É generoso e honesto, por muitas voltas que a vida dê, o dinheiro não lhe costuma faltar, é sensual e corajoso. 

Sorrimos ambos face ao que vamos descobrindo. Não será difícil a aceitação de um pelo outro. Sabemos que temos quase tudo para entendimentos sinuosos mas sublimados, para nos darmos bem porque deverão existir baús e baús de compatibilidades e interesses comuns.

Falo-lhe do meu trabalho em Pequim, na minha danwei 单位 comunista, a entidade de trabalho, a Foreign Languages Press onde tenho bastante liberdade e passo os dias a cerzir textos em razoável português. Pagam-me um magro salário que, no entanto, chega, é suficiente para viver, até dá para viajar e vir a Macau.

Lai Yong é uma mulher quase letrada ao modo do velho Império, ocupa o seu labor cirandando pela pintura tradicional chinesa, a exercitar caligrafia, a ler e a copiar poesia clássica. 

Falo-lhe nos grandes poetas da dinastia Tang (618-907) que também vou descobrindo e que gostaria um dia, ocupando parte dos meus ócios, de traduzir para língua portuguesa. São Li Bai, Du Fu, Wang Wei, Bai Juyi. 

Conhece-os todos, fala-me de Wang Wei: 当一个人品味王玮的诗,有画在他们, “A sua poesia é pintura, a sua pintura é poesia”, e diz-me, também em mandarim, a brincar, um famoso poema de Li Bai, ou Li Po que as crianças chinesas costumam aprender na escola primária. Assim:

床 前 明 月 光

疑 是 地 上 霜

举 头 望 明 月

低 头 思 故 乡

e que, em mandarim, soa deste modo:

chuang qian min yue guang
yi shi di shang shuang
ju tou wang ming yue
di tou si gu xiang

A tradução livre será mais ou menos esta:

“Li Bai, em viagem, acorda numa estalagem longe de sua casa. De madrugada,vem à janela e tem a geada diante dos seus olhos. Ou serão reflexos do luar? O poeta, triste, pensa no seu lar”.

Lai Yong fala-me de outros poetas da dinastia Tang, grande parte deles eu nem sequer conheço. Ela sabe dezenas de poemas de cor. Ah, mulher bonita, eu agarro em ti e levo-te comigo, debaixo do braço, para darmos a volta ao mundo!

Deixamos o restaurante do Hotel Metrópole. Acompanho a Lai Yong, a pé, até casa. Mora na rua da Praia do Manduco, por baixo de S. Lourenço, lá no extremo sul, ao lado do Porto Interior, quase a chegar ao templo de A Má. 

Vamos descendo pela marginal, circundando a Praia Grande, passando a Penha, até à Barra, caminhando lentamente sob árvores seculares num dos espaços mágicos de Macau. 


O meu braço direito sobe e rodeia o ombro de Lai Yong. Puxo-a para mim, a menina de Cantão e Macau aconchega-se suavemente na espalda do amigo recente. Caminhamos enlaçados.

Quase ninguém na noite de Santiago da Barra. Bernardo, os pés em Macau, o coração entre céu e terra, abraça a mulher chinesa, beija a polpa dos lábios da ancestral e presente filha do dragão, lábios perfeitíssimos humedecidos por milénios de águas da chuva, espantos e carícias. Alegria, prazer. O português de Pequim sorve a língua da fada chinesa, de jade, menos fria, tão macia. Flutuamos ambos, como nuvens.

Lai Yong chega a casa, na Praia do Manduco, por detrás do templo da Barra, onde a deusa A Má, chegada da província de Fujian, de quando em quando, promete fortuna, paz e felicidade. A despedida, um beijo agora leve levado pela brisa da noite.

De regresso ao provisório lar, Bernardo escreve o seguinte poema:

Obrigado aos deuses,
deram-me o que eu não merecia.
No silêncio iluminado da noite de Macau,
o bem-querer dos amantes principia.
Em Santiago da Barra,
desagua um rio de ternura,
para eu navegar
no jade do mar, na tua formosura.

António  Graça de Abreu

 (Continua) 

(Seleção,  revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 25 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24370: A galeria dos meus heróis (50): Diz-me quem foi o teu pai... (Luís Graça)

 


A galeria dos meus heróis > Diz-me quem foi o teu pai…

por Luís Graça (*)


Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

Quem, o Ulisses?

 Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

 Já agora retifica: ex-cunhado... Mas nunca fomos à bola um com o outro.

E eu aproveitei então para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola acrescentou o Jorge.

Foi um sortudo, o Ulisses!...

Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

A dona Natércia?!... exclamei eu. A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

Há,  sim. E a nossa terra não teria agora  atalhou o Jorge uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe", estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.   Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época.

Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.

Mas… exilado, dizes tu?!

É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

 À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou comigo,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger  a completar a minha frase.

E depois elucidou-me:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a tímida abertura da economia, ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém. Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos".)

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. O Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. O Jorge achava que ele era do "reviralho"...

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouviu falar de política com os filhos.

Também é verdade, sempre declinou o insistente convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca.

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. Em boa verdade, a razão não era essa: ele movimentava mais dinheiro que a câmara toda, dependente das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, e elevação de espírito, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... Acabou,  no entanto, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à  arte xávega e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial era menos considerado socialmente do que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora,   beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.

© Luís Graça (2023)




Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934.  São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a  Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

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Nota do editor: