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sexta-feira, 8 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25250: 20.º aniversário do nosso blogue: Alguns dos nossos melhores postes de sempre (2): Rosa Serra, história de vida de uma enfermeira paraquedista

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1964/66) e CCAÇ 1565 (1966/68) > Domingo, 10 de julho de 1966 > Um dia trágico: pormenor da evacuação do cap mil inf Rui Romero, na foto a ser transferido para a maca do helicóptero Alouette II... A enfermeira paraquedista era a alf Maria Rosa Exposto.

Foto (e legenda): © Artur Conceição (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de que a Rosa Serra foi coautora e coordenadora,
"Nós, enfermeiras paraquedistas" (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 
439 pp., Prefácio de Adriano Moreira)... Tinha, entretanto, em 2022
um livro,  de teor autobiográfica, à espera de ser  editado... 
Em princípio o livro deveria ter por título a divisa do BCP 21, 
"Que Nunca Por Vencidos Se conheçam"... Algums das melhores 
memórias da Rosa, como enfermeira paraquedista, 
estão intimamemte ligadas à hstória desta unidade.
 

Mão amiga, a do Jaime Bonifácio Marques da Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, e membro da nossa Tabanca Grande) fez-nos chegar, por volta de dezembro de 2022,  uns excertos (cerca de  duas de folhas) do manuscrito do livro de memórias que a Rosa Serra estava a acabar de escrever,  com autorização da parte dela para, depois de serem revistos por nós,  os publicarmos no nosso blogue.

O Jaime e a Rosa ficaram amigos, estiveram juntos no BCP 21, em Angola: o livro da Rosa tem conhecido, entretanto, algumas peripécias, tendo estado inclusive agendado para ser "lançado... de paraquedas"... Infelizmente,  e até por razões de saúde, ela ainda não arranjou um sítio seguro e confortável para  "saltar"...com este "seu filho"...

Minhota de Vila Nova de Famalicão,  vive aqui no Sul, em Paço de Arcos, Oeiras... Membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010, foi alf graduada enfermeira paraquedista, tendo passado pelos três TO: Guiné 1969-70, Angola 1970-71 e Moçambique 1973.

No Dia Internacional da Mulher e nos 20 anos do nosso blogue, que já estamos a celebrar (*), aqui vai a republicaçáo, num só, de très postes que publicámos  em finais de 2022 (Postes P23858, P23862,  e P3874). Voltámos a falar com ela ao telefone e obtivemos, de novo,  a sua plena autorização para juntar num só poste estes três excertos. 

Não é preciso lembrar que as enfermeiras paraquedistas são as únicas mulheres a quem, "de jure" e "de facto", podemos chamar camaradas. no sentido puro e duro da etimologia da palavra...


Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/70; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


História de vida: sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)


(i) A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira


Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri…

– Só conheço paraquedistas velhotes como eu – respondi.

Continuei com as minhas explicações.

– Quando fui para a Escola de enfermagem, e até muito depois disso, ouvi muitas colegas dizerem que foram para a enfermagem por vocação. Várias dessas enfermeiras faziam questão de acrescentar que queriam muito ajudar e cuidar as criancinhas, os velhinhos, os doentinhos e até os pobrezinhos. Ouvi de tudo... ao ponto de me interrogar se eu algum dia seria boa enfermeira.

Diz-me ela:

– Hoje ninguém vem para enfermagem por vocação.

E continuou:

– Nós vamos para a enfermagem porque não entramos em medicina, farmácia ou outro qualquer curso mais de nosso agrado.

Eu respondi:

– Eu também não fui. No meu caso foi por conveniência familiar. Eu fui porque um dia um dia a minha mãe, que eu já tinha reparado andar muito pensativa, disse-me que o dinheiro era pouco para pagar o meu Externato, que era particular, porque não havia liceu na minha Vila. E assim sendo, talvez fosse melhor eu interromper e ir para um curso para que me permitisse, ao fim de 3 anos ter uma profissão, um ordenado e logicamente ser independente monetariamente. Respondi, à minha mãe, que gostava de ir para a Universidade.

– Que curso gostavas de fazer? – perguntou ela.

– Não sei…

Pegou-me nas mãos e continuou:

– Sabes que eu acho que tinhas jeito para seres enfermeira ... Penso que era bom para ti...

E acrescentou:

– Verás que vais gostar.

Ficou logo ali, definido o meu destino.

Apesar das minhas dificuldades, sobretudo económicas, lá fui aprender a ser enfermeira sem saber muito bem o que me esperava.

Fui para o Porto estudar. Na minha primeira escola, adquiri obrigatoriamente um livro; Técnica de Enfermagem, que era da Escola da Imaculada Conceição (Casa de Saúde da Boavista no Porto) que alguém informou a minha mãe ser uma boa escola, e foi aí que fiz o primeiro ano.

Os dois anos seguintes foram feitos numa outra escola que, passado pouco tempo descobri, que ficava mais económica.

Uma coisa que pesou muito era haver nesta segunda escola, um lar onde residiam as alunas que não eram da cidade do Porto, isso não acontecia com a Escola da Boavista, ficando assim bem mais barato.

Dessa primeira escola, não esqueci os desenhos logo na primeira folha do livro de Técnica de Enfermagem. O primeiro era uma cabeça feminina, com uma touca de enfermeira da época, sobre cabelos curtos e várias setas apontando para os mais diversos pontos da mesma, onde estavam enumeradas as qualidades indispensáveis de uma boa enfermeira: inteligência, memória, conhecimento, espírito de observação autodomínio, reserva.

Um pouco abaixo, mais dois desenhos. Um deles era um coração (forma humana), com três setinhas apontando para as palavras: compreensão, sensibilidade, bondade.

Do outro lado mais um desenho, duas mãos segurando uma seringa com mais três setas indicando: segurança, desembaraço, leveza.

Estas eram as qualidades indispensáveis a uma boa enfermeira no Ano de 1963. Dessa mesma Escola de Enfermagem.

Com a continuação do tempo, fui interiorizando estes conceitos e aceitei-os como compromisso. Mesmo quando me deparava com determinada tarefa que me custasse fazer, sempre pensava nas setinhas do coração e nunca deixei de as executar e muito menos pedir a alguém que a fizesse por mim, por mais que me custasse ou até mesmo me enfastiasse...

A minha vocação se calhar só a minha mãe a viu...! O certo é que sempre vivi a minha profissão com gosto, com proximidade daqueles que em determinado momento precisavam de uma enfermeira que se entregasse em plenitude.

A enfermagem, para mim, passou a ser vivida com grande rigor ético e com permanente desafio na aquisição de saberes, para melhor cuidar.

Hoje mais que adulta, penso: é impressionante como sempre me apercebi da mutabilidade dos conceitos, da sua significação ao longo dos tempos, da importância do progresso e da evolução da enfermagem.

É um gosto ver o enriquecimento que, ano após ano, se verifica na formação dos enfermeiros, na perceção da necessidade da existência das especialidades em enfermagem, do avanço científico da mesma. Orgulha-me ver o patamar que atingiu a enfermagem de hoje, e a respeitabilidade que os países estrangeiros manifestam ter pelos Enfermeiros Portugueses.

Em relação a mim, sempre fui movida pelo desejo de um saber abrangente na arte do cuidar em enfermagem.

Assim para fazer frente aos mais variados desempenhos que tive durante quarenta anos, e fazê-los de forma responsável e eficaz, apostei na formação contínua durante toda a minha vida profissional.

Ainda pensei fazer uma especialidade, um pequeno grupo de enfermeiras paraquedistas a fizeram, quando estas começaram a surgir. Mas logo percebi que não encaixava na minha personalidade ter sempre o mesmo tipo desempenho e conclui que só serviria para obter mais um título.

Sempre tive uma grande vontade de um saber alargado, para dar resposta às variadas necessidades do ser humano, num período desafinado do seu estado físico ou mental.

Essa simbiose entre um crescendo desejo de experiências e o dinamismo aportado pela minha juventude, foi o motor causador para uma formação variada e contínua.

Nesta caminhada transformadora, tive um desempenho multifacetado e a formação contribuiu muito para um crescimento profissional que, embora despretensioso, foi significativo, permitindo-me para além de aquisição de vários saberes, entender melhor a alma humana e sempre me senti feliz por isso.

Não fui para nenhuma Faculdade na minha juventude, mas completei, bem mais tarde, todo o Liceu (designado hoje como Ensino Secundário).

Quando do Acordo de Bolonha, a enfermagem passou a Curso Superior, já tinha passado quarenta anos e depois de ter iniciado o antigo Curso Geral de Enfermagem, eu regressei à escola para fazer mais um ano, o que fiz na Escola Superior de Enfermagem Francisco Gentil (anexa ao IPO e hoje integreda na ESEL - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) sendo me conferido o grau de licenciada em enfermagem. Sou agora Licenciada em Enfermagem desde 2003, quando ainda eu estava a exercer funções.

Por graça costumo dizer que iniciei o meu Curso de Enfermagem e só o terminei quarenta anos depois.

Também confesso que a obtenção de várias competências, e tão variados desempenhos que tive no contato direto com doentes, proporcionou-me um sentimento de realização muito intenso, e ainda hoje me sinto orgulhosa pelo percurso que tive e, muito, muito feliz, por ter sido uma simples Enfermeira Generalista (sem especialidade). (...)



Rosa Serra, hoje (2020)


(ii) A guerra e a sua violência... mas também havia situações  "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...) 


No Hospital de Cascais onde há tempos estive  internada,  ficaram admiradas, as jovens  enfermeiras, quando, ao responder a uma pergunta delas,  comecei a desfiar os vários locais e as experiências de trabalho que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista.

Naturalmente que não escondi que foi uma experiência profissional interessante, mas acrescento sempre que essa realidade foi muito específica e muito diferente da prestação de cuidados em outros contextos, mas talvez não superior aos desempenhos como enfermeira, antes e depois, dos anos que estive ao serviço da Força Aérea.

A Arte do Cuidar é muito variável e sempre adaptada ao contexto onde se exerce. A nossa ação, como enfermeiras paraquedistas, foi num palco de guerra, que desencadeava estados de stresse elevado, sendo necessário geri-lo com mestria, para que a nossa intervenção fosse útil e eficaz. Tínhamos de ter atenção ao nosso estado emocional, pois ele refletia-se naqueles que eram socorridos por nós.

Foi uma mais valia fazermos o curso de paraquedismo, que não nos ensinou a ser enfermeiras, pois já o eramos antes de entrar no RCP - Regimento de Caçadores Paraquedistas, mas foi durante o curso de paraquedismo que aprendemos a controlar os nossos medos e emoções, para que aterrássemos em segurança. Esse treino repercutiu-se na nossa ação, que passou a ser mais calma e mais eficaz.

Os nossos combatentes tinham uma confiança ilimitada nas enfermeiras paraquedistas, foram eles que nos apelidaram de “Anjos“ que desciam do céu para os socorrer. Acredito que a maioria de nós, se não todas, se via como seres espirituais, mas foi uma expressão carinhosa, utilizada pelos nossos combatentes.

Com os pilotos, quando alguma coisa os preocupava, nós, mesmo não entendendo nada de aviões, tentávamos acalmá-los.

Recordo de uma vez na Guiné. O sr. capitão, piloto aviador Cartaxo, ao atravessar o Rio Geba, o maior rio da Guiné, que ficava em frente à cidade de Bissau, par irmos buscar um paraquedista à outra margem desse rio, deparou-se com um inesperado nevoeiro que, sem qualquer “aviso”, fechou o nosso caminho, impedindo que o rumo que estava traçado inicialmente, teria de ser alterado ou adiada a missão. Já estávamos a sobrevoar Tite quando esta alteração climática aconteceu.

De início, o piloto tentou ultrapassar as nuvens, e eu também fiquei atenta ao comportamento das mesmas e andamos ali um bom bocado a sobrevoar Tite, na expetativa de não ser necessário regressamos a Bissau, sem a nossa missão cumprida que era trazer o nosso ferido.

– Olha ali, as nuvens estão a abrir e a nosso favor – disse eu, mas o Capitão mexia na manche,  alheio à minha informação.

Eu sem perceber por que razão o seu foco era apenas os instrumentos da aeronave. Só no fim de uns bons minutos, acedeu ao meu pedido e acabámos por aterrar no aldeamento donde vinha o pedido.

A pista que nos recebeu era de terra batida, cujas pedrinhas batiam na fuselagem da frágil avioneta, uma DO-27. O ferido que íamos buscar era um paraquedista da companhia do, na altura,  capitão paraquedista Terras Marques [CCP 121 / BCP 12],   que na noite anterior pernoitara nesse quartel do Exército, vindo de uma operação.

Quando aterrámos, chegou até nós o militar ferido,  que já apresentava alguma dificuldade respiratória, porque ao cair da tarde foi tomar banho a um pequeno rio, mergulhando numa parte baixa e lesionou a coluna cervical, razão suficiente para eu pedir ao capitão que pedisse à BA 12, em Bissalanca, para ter um helicóptero disponível na pista à nossa chegada.

O hospital militar [ o HM 241, em Bissau, ficava relativamente perto da BA 12, mas não seria indicado ser transportado por terra, percorrendo uma estrada de piso degradado até lá.

O sr. capitão piloto aviador acedeu ao meu pedido e, quando aterrámos na BA 12, lá estava o Alouette III à espera. Fez-se transferência do ferido para o helicóptero e, antes de ele descolar, coloquei dois frascos de soro em cada lado do seu pescoço, para o manter minimamente estável e já não o acompanhei até ao hospital. O trajeto era demasiado curto, não justificava minha presença durante a viajem.

Depois do helicópetero levantar voo rumo ao Hospital Militar de Bissau, virei-me para o aviãozinho, para perguntar ao capitão se queria acompanhar-me ao bar dos pilotos para tomarmos o pequeno almoço, e qual não é o meu espanto quando vi num buraco na asa do avião, e em cima dela estava um cabo mecânico da Força Aérea que, com ar animado, informa:

– Meu capitão, já a encontrei.

Foi quando vi o furo no DO-27 e ingenuamente disse ao capitão:

– Eu,  quando ouvia as pedras a bater na barriga do avião,  pensei que estas iriam criar moça ao nosso aviãozinho. 

Ele não reagiu à minha observação. Só no bar dos pilotos, não ele, mas quem ouviu a sua narrativa, ria descaradamente na minha cara. Até eu ri pela minha ignorância e estupidez.

Por vezes parecia que vivíamos num mundo de “anedotas”, estou a lembrar-me de outra reação que os pilotos tinham quando chegava um avião da TAP, com passageiros idos de Lisboa.

Após o almoço no Bar dos Pilotos, onde geralmente eu tomava café, de repente alguém me segura por um braço e diz:

– Vamos já para a pista.

E um deles arrasta-me me para dentro de um jipe que já estava à espera dos meninos pilotos, nesse dia acompanhados por uma enfermeira paraquedista. Explicaram-me:

– Vamos ver as miúdas que vêm de Lisboa.

Quando chegamos muito perto da pista, e na distância permitida, estacionaram o jipe e lá ficamos a olhar o belo avião TAP, de portas abertas com um assistente de bordo à espera da colocação das escadas, por onde desceriam os passageiros que chegavam de Lisboa.

Colocada a escada, os passageiros aparecem começando a descer os passageiros e iniciou-se o alvoroço:

– Olha a loiraça que aí vem, é o máximo – diz outro.

E eu pensava:

– Estão todos apanhados pelo clima, o que é que eu tenho a ver com isto?!

Até que de repente se instala a desilusão total e começaram a lamentações, dizendo:

– Ó, pá, é a Rosa Exposto (uma enfermeira paraquedista)

Eu arregalei os olhos, pensando como é enfermeira paraquedista já não interessa!... Mas, ri com gosto, pela desilusão dos nossos amigos pilotos.

"Essa enfermeira é gira mas é... uma enfermeira paraquedista", acredito que a frase, dita à minha frente, os incomodou por considerar o comentário pouco respeitoso.

Foi bom confirmar que, para além dos paraquedistas, também os pilotos tinham alguma preocupação em terem atitudes delicadas, pelo menos na nossa presença. (...)


(iii) Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)  ... O último salto que fiz,  foi em dezembro de 1973,  quatro meses antes de passar à disponibilidade

E continuei seguindo a ordem das perguntas, agora sobre as desilusões  que expliquei não ser no plano pessoal, mas que foi nesta passagem pela Força Aérea, que despertei para os interesses de algumas pessoas, uma delas que serviu mal a Força Aérea, mas aproveitou-se bem dela, com incapacidades falsas, dadas por médicos sem escrúpulos, e que todos nós pagámos com os nossos impostos, para essa pessoa estar isenta de IRS com uma alta incapacidade há mais de quarenta anos.

É a única mulher “combatente” na lista dos deficientes das Forças Armadas, dos antigos combatentes da guerra do Ultramar Português. Desculpem a expressão, é uma “ovelha tresmalhada”, para nossa tristeza e desilusão, que não pode servir de exemplo para ninguém.

É triste ver uma nossa enfermeira, sempre saudável, que ignora os princípios éticos, inerentes à sua profissão, a Enfermagem.

Foi ainda como enfermeira paraquedista que despertei para muitos outros interesses que me escandalizaram:  caso dos Açores.

Sempre achei estranho situar-se na Ilha Terceira, um minúsculo hospital, rotulado como Hospital da Força Aérea, existindo apenas nessa ilha uma única Unidade Militar (BA 4) que, se algo acontecesse aos jovens militares, poderiam recorrer ao hospital civil, de Angra do Heroísmo, enquanto que no Continente existiam várias Bases Aéreas espalhadas pelo País, e sem qualquer hospital desse Ramo.

Os militares da Força Aérea só poderiam ser tratados ou socorridos no Hospital Militar da Estrela.

Nesta ilha açoriana existia um médico, salvo erro graduado em tenente coronel, que,  ao saber da existência de enfermeiras paraquedistas e sendo amigo do Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, pediu a este se poderia enviar duas delas aos Açores, pois gostaria de as conhecer.

O Senhor Diretor assim fez, enviou duas enfermeiras que, ao chegarem lá, arregaçaram as mangas e com o seu profissionalismo, deram uma volta tal à orgânica, dos fracos serviços de enfermagem lá prestados, que o sr. Diretor gostou tanto que avançou logo com novos pedidos, ao seu amigo de Lisboa. Como os argumentos que iria usar, acreditava ele, que o Diretor de Lisboa não iria recusar.

A primeira proposta foi para que as enfermeiras paraquedistas, após o curso de paraquedismo e como forma de adaptação aos Serviços de Saúde Militar, passassem a fazer um estágio no Hospital da Terra Chã e só depois seguiriam para o Ultramar.

(Note-se: nessa altura havia uma enfermeira que quando se candidatou a paraquedista, desempenhava as suas funções no Serviço de Urgência do Hospital Central da Cidade onde trabalhava e, pasmem-se, também essa foi fazer estágio aos Açores no pequeno hospital da Ilha Terceira. Enquanto que o primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas, após concluído o curso de paraquedismo, foi fazer um estágio no Serviço de Urgência do Hospital de S. José. Espantados…? Eu também.)

Voltando ao nosso Diretor da Terra Chã:  pouco tempo depois, deparou-se com um obstáculo, houve anos em que nenhuma enfermeira se candidatou a Enfermeiras Paraquedista.

Esperto como era, o Senhor Diretor dos Açores apresentou nova ideia ao seu amigo de Lisboa:  

–  Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea Portuguesa  argumentou ele –, coitadas das nossas enfermeiras, com um trabalho tão desgastante no Ultramar, bem merecem descansar nesta pequena, pacata e linda Ilha Açoriana durante uns tempos.

E para lá foram descansar algumas. Mas,  como em tudo, há sempre alguém que não está na Força Aérea para fazer favores a este tipo de pessoas, até que chegou o dia em que o sr. Diretor de Lisboa informou essa enfermeira que teria de ir para os Açores.

Essa senhora enfermeira foi, mas apenas para arranjar argumentos suficientes para nunca mais lá pôr os pés. Passado pouco tempo da sua estadia na bela Ilha Açoriana, a mesma enfermeira foi à BA 4,  pediu uma viagem para Lisboa e apresentou-se na Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, colocando os seus motivos para não voltar aos Açores.

Perante os argumentos apresentados,  o sr. Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa ligou logo para a  ilha, informando o seu amigo e lamentando que a dita enfermeira tinha argumentos demasiado fortes para não ir para os Açores. E acrescentava que, de facto, as enfermeiras paraquedistas, não tinham sido  criadas para essas funções.

O diretor Açoriano, com a sua prepotência, barafustou até se cansar e rematou que não era a sra. enfermeira que se recusava, era ele que não a queria lá, pelo seu mau feitio.


A então ten enf pqdt Ivone Reis, em Cacine,
12/12/1968. Nasceu em 1929, faleceu em 2022.
Foto: António J. Pereira da Costa (2013)



Como curiosidade, que eu saiba, do primeiro curso de enfermeiras paraquedistas foi esta a única enfermeira paraquedista que,  no ano seguinte após concluído o curso de enfermeiras paraquedistas, lhe foi atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência,  dada pelo sr. Presidente da República Américo Tomás, visto e registado a fl. 109 L.2 Decreto de 28 de fevereiro 1962, publicado no Diário do Governo nº 73, 2ª série de 27/3/1962, Expedido pelo Chancelaria das Ordens Portuguesas aos 3 de abril, de 1962, nº 1588. Por tanto cerca 6 meses depois, do primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas terminar a meio de agosto de 1961.

Em cima  a foto do respetivo diploma cujo original foi oferecido para o museu do 
Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), em Tancos, no dia 15 de outubro de 2022.

Entretanto o  RCP, em Tancos, que tinha uma elevada noção de guerra, sabia que os primeiros socorros em terra, mesmo antes do Helicóptero de Socorro chegar, são importantes e, como tropa organizada e inteligente que é, teria de ter sempre alguém capaz para analisar qualquer situação, como: proteção à clareira onde o Helicóptero pudesse aterrar em segurança, assim como alguém devidamente preparado, que prestasse os primeiros socorros aos seus camaradas feridos, até esta aeronave chegar e os levar para o hospital.

A Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea apenas se preocupava com os ditos “enfermeiros” da Força Aérea, que nos Açores aprendiam a dar comprimidos, injeções e a desinfetar pequenas escoriações e com fracas noções de assepsia.

Os paraquedistas resolveram a sua questão, não deixando que a Direção de Saúde da Força Aérea de Lisboa resolvesse o seu problema. Assim, nomearam enfermeiras paraquedistas, em anos diferentes para,  no próprio Regimento,  darem um Curso Avançado de Primeiros Socorros aos seus camaradas paraquedistas, acompanhando-os no respetivo estágio feito no Hospital Militar Principal em Lisboa.  

E os socorristas Paraquedistas ficaram mais bem preparados, e de forma mais adequada e mais eficaz, para poderem cuidar dos seus camaradas quando feridos ou doentes, até o Helicóptero chegar e os levar para o hospital.

Deixaram assim os “enfermeiros” da Força Aérea, sossegados nas suas Bases Aéreas,  a fazerem precárias tarefa tal como lhes ensinaram.

Foram três enfermeiras paraquedistas que, em anos diferentes, foram nomeadas para darem formação adequada aos seus camaradas socorristas paraquedistas e os acompanharam no seu estágio no Hospital Militar da Estrela em Lisboa.

Quando chegou a minha vez, após dar à formação aos nossos socorristas paraquedistas, com respetivo acompanhamento do estágio feito no Hospital Militar da Estrela, aproveitei e formulei um pedido ao nosso comandante, sr. coronel Fausto Marques, autorização para fazer o curso de instrutores e monitores, tal como a enfermeira Manuel França o tinha feito 2 ou 3 anos antes. 

Fui autorizada e concluí-o com muito gosto. Fiz este curso apenas pelo prazer de saltar e considero ter sido mais um contributo para o meu próprio equilíbrio. Devo este prazer de saltar ao meu instrutor do curso de paraquedismo, na altura o senhor sargento pqdt Nogueira, meu querido instrutor, que me estimulou o prazer de saltar.

Sempre me disse que eu saltava muito bem da torre e por isso podia perfeitamente tirar partido desses momentos mágicos que os saltos nos proporcionam. Dizia-me ele; 

–   Primeiro logo que larga a porta,  mantem o corpo recolhido e conta 232, 233, 234, que é o tempo para a calote se soltar do arnês e abrir. Depois é necessário verificar se todos os cordões não estão enrolados, e saber de que lado vem o vento. Com os pequenos minutos que lhe restam,  aproveita para olhar mais longe, ver o horizonte, ver a terra de cima. Depois certifica-se de que lado vem o vento e,  se necessário,  fazer trações, para que este não a leve para zonas não aconselhadas, evitando assim acidente.

Sempre fiz isso, tudo como ele me ensinou. Apenas me surpreendeu o silêncio, que o “escutei“ com surpresa e foi maravilhoso. Razão por que anos mais tarde pedi ao nosso primeiro comandante Fausto Marques, para fazer o curso de instrutores e monitores só pelo prazer de saltar. Foi meu instrutor neste curso o sr. capitão pqdt João Costa Cordeiro que, quando acabei o curso me convidou para um jantar em Abrantes com ele e com a sua esposa.

Fiquei tristíssima quando,  poucos anos depois,  ele foi para a Guiné e morreu num salto de queda livre.

Fiz vários saltos, sendo o último feito na Beira,  em Moçambique. quando de passagem para Lisboa, vinda de Mueda no fim da minha comissão, aguardando no BCP 32 pelos feridos, que vinham de Lourenço Marques. 

O primeiro foi um salto automático e,  acabada de chegar a terra e logo de seguida,  vi a filha do engenheiro Jardim, a Carmo, junto a um Helicópetro da Força Aérea,  equipada para fazer um salto manual, eu que estava junto de um paraquedista perguntei-lhe se havia um paraquedas para eu fazer um salto manual. Como foi buscar de imediato um, eu informei o piloto, que estava já dentro da aeronave,  que também eu ia saltar. 

Assim foi,  entrámos as duas, e a Carmo nem “tugiu nem mugiu", simpática pensei eu, mas ignorei a presença da dita filha do engenheiro Jardim, entrámos. Ela ficou mais perto da porta quando já estávamos numa altura suficiente,  já não sei a quantos metros de altitude, ela saltou e, de seguida, saltei eu. Foram os dois últimos saltos que dei e a última comissão que fiz. Fins de dezembro de 1973.

É de notar que nunca viemos como passageiras, mesmo em fim da comissão, sempre viemos prestando cuidados e assistência aos feridos durante toda a viagem até Lisboa. (...)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas: LG]
___________

Nota do editor:

sábado, 2 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24609: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (8): ex-alf mil cav Jaime Machado, cmdt Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) - Parte IV: a morte à saída da Missão do Sono em Bambadinca, na madrugada do dia 1 de janeiro de 1970


Foto nº 19 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá >  Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 > O fotógrafo estava lá!... Uma enfermeira paraquedista prepara o moribundo Uam Sambu para a evacuação para o HM 241...  O camarada, de costas, com o camuflado todo ensanguentado é o Mário Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat  52, de acordo com a identificação feita pelo fotógrafo, o Jaime Machado.  À saída da Missão do Sono, em Bambadincazinho, reordenamento a  escassas centenas de metros do quartel de Bambadinca, o Sambu foi vítima de um grave acidente com arma de fogo que lhe custou a vida.  


Foto nº 19A  > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 > Não conseguimos identificar a enfermeira paraquedista que, nessa manhã, a do primeiro dia do novo ano de 1970, veio de DO 27 para tentar salvar o Sambu... Em vão, ele irá morrer na viagem... Vamos continuar a tentar saber quem era a enfermeira... (que tanto pode ter sido a Maria Ivone como a Rosa Serra, que nesse dia estava de serviço).


Foto nº 19B >Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 > Quem seria a enfermeira paraquedista que, nessa manhã, a do primeiro dia do novo ano de 1970, veio de DO 27 para tentar salvar o Sambu ?  Tanto pode ter sido a Maria Ivone como a Rosa Serra, que nesse dia estava de serviço mas, que nos informou, nunca usou pulseira (para mais na mão esquerda).


Foto nº 20 > Guiné > Zona leste > Setor L1 > Região de Bafatá > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  A DO 27 que no primeiro dia do novo ano de 1970, logo de manhã cedo, veio fazer evacuação do Sambu. Do lado esquerdo, de perfil, vê-se o piloto, com "cara de puto", alferes...


Foto nº 20A  > Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  Outro pormenor dos primeiros socorros que foram prestados ao Sambu antes de ser evacuado. Era médico do batalhão o Vidal Saraiva. À esquerda do Beja Santos, sob a asa do DO 27, com a mão direita à cintura, em pose expectante, parece-se ser o fur mil enf da CCAÇ 12, o meu amigo João Carreiro Martins. Ao fundo estão camaradas do infortunado Sambu, do Pel Caç Nat 52.



Foto nº 21 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá: Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  Um DO 27 a levantar voo, de regresso a Bissau... Pode ser a mesma da foto anterior, como pode ser outra... Tudo indica que esta foto tenha sido tirada noutra altura e noutro lugar. Parece-me ser a pista de Bafatá, a avaliar pelo casario ao fundo... (O Jaime Machado diz-me que é Bambadinca e vem na sequência das fotos anteriores,,,).  (LG)

Fotos: © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Continuação da publicação de uma seleção das melhores fotos  do álbum do nosso camarada Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) (*), que vive na Senhora da Hora, Matosinhos [foto atual à direita], e foi contemporâneo do Mário Beja Santos (cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com uma pequena  diferença de meses. Eu também estive com eles, lá, na mesma altura, desde julho de 1969... O Jaime saiu em fevereiro de 1970, e o Mário, dois meses depois, em abril de 1970, se não erro.

Ao ver estas fotos, tive um arrepio, quando o Jaime Machado me disse que o camarada com o camuflado ensanguentado era o Beja Santos, o nosso "Tigre de Missirá"...  

Lembrei-me imediatamente deste trágico acidente que ceifou a vida ao Uam Sambú. Fui pesquisar os escritos do Mário Beja Santos. Aqui vai um excerto do poste P2540, de 15/2/2008 (**)

(...) O Setúbal já nos tinha avisado que viria o Xabregas [condutor]  ao amanhecer, eu que não estivesse preocupado. Assim que clareou, todos de pé, arrumadas as mantas, satisfeitas as necessidades mais prementes nas redondezas, esperámos a tiritar a aproximação dos faróis do Unimog, procurando desentorpecer os músculos. Assim foi naquele amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Xabregas trouxe um burrinho, o que significava dez militares sentados, 20 a pé. Dez não, um outro saltava para o lado do condutor, mais um outro encavalitava-se junto do alferes. Uam Sambu senta-se ao pé de mim e diz a Quebá Sissé:
- Sobe,  Doutor, dá cá a mão!

Vejo o riso feliz e sempre aberto de Quebá Sissé, segue-se o estrondo inusitado de uma rajada de G3, procuro levantar-me, oiço gritos de aflição, imprecações, um coro desorientado de protestos, e é nisto que Uam me cai nos braços,  enterrando-me no assento:
- Alferes, estou morto!

Com Uam no meu colo, vejo o seu peito esburacado, os lábios num esgar de dor, o olhar a esmorecer, o sangue passa para a minha farda em abundância. O burrinho corre em poucos minutos nas mãos expeditas do Xabregas até à enfermaria. Vou a correr tirar da cama o [alf mil médico] Vidal Saraiva que se debruça atarantado sobre Uam com o peito tracejado por diferentes perfurações. 

Cá fora, desenrola-se uma outra tragédia, há quem ameace o Doutor, ouve-se a palavra assassino, ouvem-se as expressões impensadas do costume. Ora, tinha sido o mais estúpido dos acidentes, o malogrado Doutor ao subir metera o dedo no gatilho e fulminara Uam, o Doutor era a alma mais pacífica do 52, ninguém lhe conhecia azedume, aguentara estoicamente todos os comentários ao seu trabalho de cozinheiro. Percebendo que era necessário pôr termo àquela ira dementada, disse ao Domingos:
- Não quero aqui ninguém, tudo para a tabanca, tu desces imediatamente com eles e explicas que foi um acidente, quem tocar no Doutor tramo-lhe a vida.

Dita a bazófia, acerquei-me da marquesa onde o Vidal Saraiva me avisou:
- Só por milagre se salva, tem os órgãos vitais atingidos, veja o sangue aos cantos da boca, pulmões e rins têm lesões que presumo serem irreversíveis. Vamos ver como é que ele se aguenta até Bissau.

 O DO [27] chegou rapidamente e lá fomos todos a acompanhar o moribundo até à pista de aviação, Binta, a mulher do Uam, gritava o seu desespero, o Pel Caç Nat 52 assistia ao transporte de Uam num silêncio total, estarrecido. Dispersámos, o Vidal Saraiva era o mais acabrunhado entre nós. (...) 
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23879: História de vida (51): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - IV (e última): A última comissão, Moçambique, 1973: "Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se"



Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves junto a um mural onde se lê: "Em Mueda, os cordeiros que entram, são lobos que saiem. Adeus checas". Recorde-se que o checa, em Moçambique, era o nosso pira ou periquito.


Foto (e legenda): © Tino Neves (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
 


Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Mário Leitão (2020)




Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


1. A Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão,   fez o curso geral de enfermagem no Porto, tendo aí conhecido a veterana Maria Ivone Reis (1929-2022), em 1967,  quando esta andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP. Fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968. Foi graduada em alferes enfermeira paraquedista.  

Conheceu os três teatros de operações da "guerra do ultramar": Guiné 1969-70, Angola 1970-71, e Moçambique 1973. Passou  à disponibilidade em 1 de março de 1974.   Vive em Paço de Arcos, Oeiras. É membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010. É coordenadora literária e coautora do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. 

Está a ultimar um livro com a sua história de vida como enfermeira e enfermeira-paraquedista. Por cortesia sua, temos estado a reproduzir um texto inédito seu, de 21 páginas, que nos chegou às mãos através de um amigo e camarada comum, o Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970-72), membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Lourinhã. Apresentamos  hoje a IV (e última) parte. E ficamos gratos aos dois,




Fotos do álbum de Rosa Serra (cedidas à realizadora de cinema Marta Pessoa, autora de "Quem Vai à Guerra" (2011) (Produção: Real Ficção; duração: 123 minutos)

Fonte: Arquivo Enfermeiras Pára-quedistas / Álbum de Quem Vai à Guerra (Facebook)...

Fotos (e legenda): Marta Pessoa / Quem Vai à Guerra (Facebook) (2011) (Reproduzidas com a devida vénia)... Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

IV (e última) Parte: A última comissão, Moçambique, 1973: 
"Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se"


A minha última comissão foi feita em Moçambique, não em Lourenço Marques, não em Nampula, não em Tete, mas sim no Alto dos Macondes, Mueda. Aí logo que aterrávamos, víamos uma tábua pendurada numa árvore a dar-nos as boas vindas. Que dizia: "Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se". …Muito animador para quem lá chega pela primeira vez .….!

Foram poucas as enfermeiras paraquedistas que por lá passaram. A primeiras foi a Enfermeira Ivone Reos que foi conhecer o espaço e se havia condições para irem enfermeiras para lá.

O senhor general Neto, que conhecia tão bem o nosso trabalho na Guiné, achava que as enfermeiras faziam lá muita falta. Assim começaram a ir para lá enfermeiras.

As primeiras que foram eram enfermeiras inexperientes em prestar cuidados a feridos de guerra, nunca tinham estado em nenhum lugar antes. Era assim a sua primeira comissão no Ultramar. 

Mueda era um local assustador pelo seu isolamento, toda o espaço estava rodeado de arame farpado, não havia habitação para elas, dormiam na casa dos médicos, onde existia um quarto com duas camas para as duas enfermeiras lá destacadas, os naturais masculinos de Mueda sempre de olhar carregado e desconfiado, e pouquíssimo simpáticos. 

No início havia algumas mulheres brancas esposas de militares lá colocados, que mais tarde tiveram de sair, quando Mueda começou a ser atacada. As checas (novatas) enfermeiras sofreram bastante pelo isolamento, pela monotonia alimentar, porque nunca lhes tinham entregue um corpo desfeito embrulhado numa capa impermeável, uma alimentação monótona nada saborosa,  enfim,  um local nada aprazível para se viver. Só tiveram sorte porque não apanharam a fase dos ataques a Mueda.

Na minha opinião, foi uma má decisão enviarem enfermeiras individualmente e todas elas muito jovens e para a primeira comissão feita no Ultramar.

Foi lá que a minha colega Cristina foi atingida por uma arma inimiga, quando foi fazer uma evacuação, a um aldeamento ali próximo. Segundo o seu relato, regressava de uma evacuação com um ferido a bordo e,  sem que nada fizesse prever,  de repente sentiu,  como ela diz, tipo coice, junto a uma orelha e instintivamente levou a mão ao local e verificou que estava com sangue. Ao mesmo tempo que o piloto nervoso, informa com voz alterada que estava sem comandos. Ela tentou acalmá-lo dizendo; 

–   Já estamos com a pista à vista,  aguenta o avião que lá chegaremos.

Ele responde:

  O pior é que ele pode assapar antes de chegar ao planalto, onde a pista inicia.

E ficou em pânico, quando se virou para trás e vê o sangue junto à orelha da enfermeira. Ficou de tal forma nervoso que,  com voz alterada, pede um helicóptero à pista, não obstante a Enfermaria do Setor B (Hospital da frente) ficar a cerca de 200 metros.

Chegada ao hospital os médicos acham estranho não haver porta de saída dum suposto estilhaço e fazem um RX  e qual não foi o espanto de todos, ao verem uma bala que, ao apalpar na nuca, a sentiram de imediato, por baixo da pele. Deram uma leve anestesia local e retiraram a bala, que ela ainda a tem, como recordação. 

Curioso era a sua última evacuação pois ela ia sair da Força Aérea no fim dessa comissão.

Devido a este incidente, enfermeira foi evacuada para Lourenço Marques, onde estava a Direção de Saúde da Força Aérea, que comunicou via rádio para ela ser evacuada para Lourenço Marques.

Nesse mesmo avião embarquei eu, que já tinha viagem marcada para a substituir. Quando lhe perguntam se ela não ficou com algum grau de incapacidade,  ela respondeu; 

–  Não, eu fiquei bem, a bala foi retirada e não fiquei impedida de fazer a minha vida normal.



Moçambique > c. 1973 ? > Cristina Silva > A única enfermeira paraquedista que foi ferida em combate... 

Fonte: Arquivo Enfermeiras Pára-quedistas / Álbum de Quem Vai à Guerra (Facebook)...

Foto (e legenda): Marta Pessoa / Quem Vai à Guerra (Facebook) (2011) (Reproduzido com a devida vénia)... Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Mas encontrei outras enfermeiras possuidoras de dignidade muito elevada. Uma delas foi a enfermeira Mariana. Eu só a conheci em Mueda, só lá estávamos as duas, na dita casa dos médicos onde tínhamos um quarto com duas camas, um caixote estreito com um fio por dentro onde podíamos pendurar as poucas peças de roupa que tínhamos, e um outro fio por fora onde estava enfiado um pano que servia de porta para que, a nossa roupa não apanhasse pó.

Um dia a Mariana foi fazer uma evacuação e,  logo que o pequeno DO-27 aterrou na pista, ainda com o ferido a bordo começou um ataque á pista. O piloto sai do avião a correr, abandonando o avião e protegendo-se atrás de uns bidons cheios de arreia que cercavam a pista.

A enfermeira paraquedista Mariana não lhe seguiu os passos e ficou dentro do avião. Ela tinha bem a noção do seu dever ético, e não deixou sozinho o ferido. Só mesmo quando tudo acalmou é que saíram da aeronave e o ferido seguiu para o Hospital.

Um dia tivemos uma surpresa. Demos de caras com o nosso capitão paraquedista Saramago, que foi para lá destacado, para nos proteger. Uma das primeiras coisas que ele fez foi construir um abrigo subterrâneo logo á entrada da casa dos médicos, pois os abrigos existentes ficavam distanciados só no AM-51 e,  se fugíssemos para lá,  havia fortes possibilidades de sermos apanhadas pelo caminho.

Certo dia, num fim de tarde quando os helicópteros já não voavam e nós tentávamos esquecer as evacuações desse dia, começam os morteiros inimigos a disparar de forma raivosa, direcionados para a casa dos médicos, e para o hospital. A casa ficava separada do hospital pela placa do helicóptero. Todos fomos para o abrigo. Nesse dia tinha chegado um médico novo. Passado poucas horas da sua chegada, quando Mueda começa a ser atacada. Todos nós nos recolhemos no abrigo. Pouquíssimos minutos depois, o médico checa (novato), desabafa, dizendo:

– Sinto as pernas a tremerem,,,

E, logo se ouve uma voz dizendo;

–  É da trepidação.

 E todas as vozes em tom calmo e solidária, ressoam: 

–  Estamos todos iguais, isto já passa.

Mueda era assim, insegura, um acentuado isolamento, uma monotonia alimentar grande, de lá ninguém saía gordo, mas toda a população militar era altamente solidária.

Houve uma situação grave que levou os médicos a ficarem de vigia durante a noite à porta do quarto das enfermeiras. Tínhamos um sr. local, que limpava as partes comuns e os quartos dos médicos

Era um homem alto, com cara de poucos amigos, cujo nome já não me lembro. Um dia soube que a enfermeira Mariana iria fazer uma evacuação para Lisboa. Abordou-a e pediu-lhe para ela comprar um fio de ouro. Quando a Mariana chegou,  ele perguntou-lhe pelo fio. Ela respondeu que não o comprou não teve tempo nem dinheiro para o fazer.

Ele olhou em redor e,  ao verificar que não havia ninguém por perto, ficou com cara de mau, e disse-lhe que a matava e que,  pelo facto de não dormir lá, ele arranjava maneira de o fazer. Ela virou-lhe as costas e,  logo que ele saiu de casa, ela contou ao dr. Requeijo que era o Diretor da enfermaria de Setor B (Hospital da Frente).

Ele fez logo uma escala se serviço de vigilância ao quarto das enfermeiras. Às vezes eu brincava com ela e dizia-lhe:

–  Dorme, Mariana, o nosso Anjo da guarda está sentado numa cadeira à nossa porta e, apesar de ser anjo,  está com uma arma na mão, e só de lá sai quando outro anjo aparecer para o substituir.

Depois pensava se isto acontecesse com as enfermeiras checas, elas logo que pudessem saíam e diziam adeus à Força Aérea para sempre.

Quando se fala do hospital de Mueda, é incorreto. É apenas uma enfermaria do Setor, neste caso o setor B onde existia uma sala operatória, uma pequena enfermaria com 35 camas, um gabinete de RX. Os feridos chegavam e ao fim de 35 a 42 horas eram evacuados para Nampula ou excecionalmente para Lourenço Marques.

Era um ambiente pesado, todo o planalto estava cercado de arame farpado,  sendo só possível de lá sair por ar, exceto a engenharia, quando tinha de se fazer à picada para levar mantimentos ou armamento para quarteis espalhados pelo vale de Miteda.

Quase todos os dias tínhamos, uma ou outra visita. Uma das mais assíduas era um Capitão do Exército Caritas, que sempre aparecia com um molho de folhas brancas. Eu nunca me aproximei dele para ver o que ele rabiscava. Numa noite eu reparo que ele olhava muito para mim e,  qual não foi o meu espanto,  quando antes de se retirar me entregou a dita folha com a minha cara que ainda a tenho pendurada no meu escritório.

Também nos ríamos quando o dr. Honório começava a declamar em voz alta, os discursos revolucionários, imitando o seu conterrâneo, Amílcar Cabral. Nós ríamos e o dr. Requeijo com um sorriso dizia; 

–  Ainda vais dentro. O Monteiro (Policia da PIDE) lá residente vem ali. 

Então ele continuava ainda mais alto gesticulando durante o seu discurso.

Os Médicos que lá estavam na minha altura eram:

  • Dr. Requeijo (Diretor);
  • Dr. Amarchande (Indiano, não sei escrever o nome);
  • Dr. Honório (natural da Guiné);
  • Dr. Migueis (alcunha o "Boticão", por ser dentista, natural do Porto);
  • Dr. Curchinho, senhor um pouco mais velho que todos nós;
  • Dr. Matos, anestesista;
  • Dr. Francês, anestesista que foi substituir o dr. Matos; 
  • Dr. David (intitulado “o Professor”  por, quando jogávamos ao poker de dados, ele fazia batota, lançando os dados e recolhendo-os rapidamente, dizendo em voz alta o belo resultado obtido, todos ríamos, com gosto, era uma animação).


Tancos > RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas) > 8 de Agosto de 1961 > Da esquerda para a direita: Maria do Céu, Maria Ivone, Maria de Lurdes (Lurdinhas), Maria Zulmira, Maria Arminda e o Capitão Fausto Marques (Director Instrutor). Nota: Para completar o grupo das "Seis Marias", falta a Maria da Nazaré que torceu um pé no 4.º salto e só viria a acabar o curso alguns dias depois.


Foto (e legenda): © Maria Arminda (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Voltando às enfermeiras que deram grande exemplo de trabalho e seriedade...  Outro caso é o da Lurdinhas, enfermeira do primeiro curso (1961),  única enfermeira graduada em sargento cujo nome é Maria de Lurdes Rodrigues que, para os paraquedistas e toda a gente, ficou conhecida para sempre como Lurdinhas.

Nessa altura em Portugal havia um curso mais reduzido, na formação em enfermagem, eram as auxiliares de enfermagem. Tinham menos habilitações académicas, por isso eram graduadas em sargentos.

Mas a Lurdinhas queria saber mais, determinada toma uma atitude: sai da Força Aérea e, à sua custa, matriculou-se no Liceu para fazer os anos exigidos na altura, para poder frequentar o Curso Geral de Enfermagem, entrando de novo na escola que a formou como auxiliar, e só de lá saiu ao fim de três anos com o Curso Geral concluído. Entra de novo na Força Aérea,  agora como Oficial Paraquedista.

A Lurdinhas é um bom exemplo de trabalho, esforço e dignidade. Sempre a conheci como uma pessoa virada para os outros, nunca quis ser o alvo das atenções e de uma seriedade elevada.

Teve atitudes engraçadas,  uma delas foi durante o seu curso de paraquedismo. Pouco tempo depois do início do seu curso, de paraquedismo no RCP, em Tancos, informaram-na para se dirigir ao departamento de contabilidade do Regimento para receber o pré. Sem saber o que isso era, dirigiu-se ao referido serviço, e informa que a tinham chamado. Quando percebeu que lhe iam dar dinheiro ela respondeu, prontamente que ia lá pagar o seu alojamento e a alimentação!

– Aqui ninguém paga, só recebe  responderam. 

Ficou tão atrapalhada e ao mesmo tempo tão contente que que recebeu o que lhe deram e quando foi a sua aldeia,  em Tomar, deu o seu pré às famílias mais pobres. Ela era muito generosa.

Nos factos narrados se alguém em paralelo tiver dúvidas, de tudo quanto foi dito, poderá sempre fazer uma consulta às ordens de serviço do Regimento de Caçadores Paraquedistas em Tancos, ficando a saber quem foram as nomeadas para ministrar esses cursos, de primeiros socorros avançados aos seus camaradas paraquedistas e os acompanhou no estágio feito no Hospital Militar da Estrela. Assim como, quem foi a última enfermeira enviada aos Açores para confirmar a inutilidade da presença das Enfermeiras Paraquedistas naquela Ilha Açoriana.

Esclareço que a opinião desta Enfermeira, foi dada ao Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa que, logo de seguida,  cancelou a colocação das Enfermeiras Paraquedistas nos Açores.

Também na BA-4, na Ilha Terceira nos Açores poderá eventualmente haver registos, com os nomes das Enfermeiras que lá desempenharam funções e o fim da colocação das mesmas, por ordem da Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa.

E até nos ataques a Mueda a Força Aérea e quem lá estava, como por exemplo o general Luís Araújo, antigo Chefe de Estado Maior General das Força Armadas, furriel piloto Nuno Neto filho do General Diogo Neto,  a própria Força Aérea será talvez possuidora de alguns registos visto que os acontecimentos narrados são referentes a 1973, ano em que eu lá estive, e pouco tempo depois dá-se o 25 de Abril.

No nosso RCP,  as suas ordens de Serviço podem também ser consultadas, para saber quem foram as enfermeiras que lá estiveram, embora também possam testemunhar alguns paraquedistas que por lá passaram ou para irem fazer operações ou para serem recolhidos vindo delas. Uns do BCP 31,  outros do BCP 32, dou como exemplo, o hoje, general Chaves Gonçalves, que me lembro de o ver lá.

Rosa Serra, antiga enfermeira paraquedista, 2022


[Seleção /  revisão e fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série >


10 de dezenbro de 2022 > Guiné 61/74 - P23862: História de vida (49): Sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...)

9 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23858: História de vida (48): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte I: A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23874: História de vida (50): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte III: Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)... O último salto que fiz, foi em dezembro de 1973, quatro meses antes de passar à disponibilidade


Cópia do documento atestando a atribuição do grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência 
à alferes enfermeira paraquedista Maria Ivone Quintino dos Reis, em 28 de fevereiro de 1962.  O original foi doado ao museu do RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas), em Tancos.


Foto (e legenda): © Rosa Serra (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Mário Leitão (2020)


 1. A Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão,   fez o curso de enfermagem no Porto, tendo aí conhecido a veterana Maria Ivone Reis (1929-2022), em 1967,  quando esta andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP (*). Fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968. Foi graduada em alferes enfermeira paraquedista.  

Conheceu os três teatros de operações da "guerra do ultramar": Guiné 1969-70, Angola 1970-71, e Moçambique 1973. Passou  à disponibilidade em 1 de março de 1974. Tem sido, juntamente ccom a Maria Arminda Santos e a Giselda Pessoa,  uma das mais mais ativas e profícuas autoras de textos sobre a história das enfermeiras paraquedistas e as suas protogonistas. 

Vive em Paço de Arcos, Oeiras. É membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010. É coordenadora literária e coautora do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. 

Está a ultimar um livro com a sua história de vida como enfermeira e enfermeira-paraquedista. Como "aperitivo", estamos a reproduzir aqui, por cortesia sua, um texto inédito seu, de 21 páginas, que nos chegou às mãos através de um amigo e camarada comum, o Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970-72) (**), membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Lourinhã.



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte III:  Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)  ... O último salto que fiz,  foi em dezembro de 1973,  quatro meses antes de passar à disponibilidade

E continuei seguindo a ordem das perguntas, agora sobre as desilusões (**) que expliquei não ser no plano pessoal, mas que foi nesta passagem pela Força Aérea, que despertei para os interesses de algumas pessoas, uma delas que serviu mal a Força Aérea, mas aproveitou-se bem dela, com incapacidades falsas, dadas por médicos sem escrúpulos, e que todos nós pagámos com os nossos impostos, para essa pessoa estar isenta de IRS com uma alta incapacidade há mais de quarenta anos.

É a única mulher “combatente” na lista dos deficientes das Forças Armadas, dos antigos combatentes da guerra do Ultramar Português. Desculpem a expressão, é uma “ovelha tresmalhada”, para nossa tristeza e desilusão, que não pode servir de exemplo para ninguém.

É triste ver uma nossa enfermeira, sempre saudável, que ignora os princípios éticos, inerentes à sua profissão, a Enfermagem.

Foi ainda como enfermeira paraquedista que despertei para muitos outros interesses que me escandalizaram:  caso dos Açores.

Sempre achei estranho situar-se na Ilha Terceira, um minúsculo hospital, rotulado como Hospital da Força Aérea, existindo apenas nessa ilha uma única Unidade Militar (BA 4) que, se algo acontecesse aos jovens militares, poderiam recorrer ao hospital civil, de Angra do Heroísmo, enquanto que no Continente existiam várias Bases Aéreas espalhadas pelo País, e sem qualquer hospital desse Ramo.

Os militares da Força Aérea só poderiam ser tratados ou socorridos no Hospital Militar da Estrela.

Nesta ilha açoriana existia um médico, salvo erro graduado em tenente coronel, que,  ao saber da existência de enfermeiras paraquedistas e sendo amigo do Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, pediu a este se poderia enviar duas delas aos Açores, pois gostaria de as conhecer.

O Senhor Diretor assim fez, enviou duas enfermeiras que, ao chegarem lá, arregaçaram as mangas e com o seu profissionalismo, deram uma volta tal à orgânica, dos fracos serviços de enfermagem lá prestados, que o sr. Diretor gostou tanto que avançou logo com novos pedidos, ao seu amigo de Lisboa. Como os argumentos que iria usar, acreditava ele, que o Diretor de Lisboa não iria recusar.

A primeira proposta foi para que as enfermeiras paraquedistas, após o curso de paraquedismo e como forma de adaptação aos Serviços de Saúde Militar, passassem a fazer um estágio no Hospital da Terra Chã e só depois seguiriam para o Ultramar.

(Note-se: nessa altura havia uma enfermeira que quando se candidatou a paraquedista, desempenhava as suas funções no Serviço de Urgência do Hospital Central da Cidade onde trabalhava e, pasmem-se, também essa foi fazer estágio aos Açores no pequeno hospital da Ilha Terceira. Enquanto que o primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas, após concluído o curso de paraquedismo, foi fazer um estágio no Serviço de Urgência do Hospital de S. José. Espantados…? Eu também.)

Voltando ao nosso Diretor da Terra Chã:  pouco tempo depois, deparou-se com um obstáculo, houve anos em que nenhuma enfermeira se candidatou a Enfermeiras Paraquedista.

Esperto como era, o Senhor Diretor dos Açores apresentou nova ideia ao seu amigo de Lisboa:  

–  Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea Portuguesa  argumentou ele –, coitadas das nossas enfermeiras, com um trabalho tão desgastante no Ultramar, bem merecem descansar nesta pequena, pacata e linda Ilha Açoriana durante uns tempos.

E para lá foram descansar algumas. Mas,  como em tudo, há sempre alguém que não está na Força Aérea para fazer favores a este tipo de pessoas, até que chegou o dia em que o sr. Diretor de Lisboa informou essa enfermeira que teria de ir para os Açores.

Essa senhora enfermeira foi, mas apenas para arranjar argumentos suficientes para nunca mais lá pôr os pés. Passado pouco tempo da sua estadia na bela Ilha Açoriana, a mesma enfermeira foi à BA 4,  pediu uma viagem para Lisboa e apresentou-se na Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, colocando os seus motivos para não voltar aos Açores.

Perante os argumentos apresentados,  o sr. Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa ligou logo para a  ilha, informando o seu amigo e lamentando que a dita enfermeira tinha argumentos demasiado fortes para não ir para os Açores. E acrescentava que, de facto, as enfermeiras paraquedistas, não tinham sido  criadas para essas funções.

O diretor Açoriano, com a sua prepotência, barafustou até se cansar e rematou que não era a sra. enfermeira que se recusava, era ele que não a queria lá, pelo seu mau feitio.


A então ten enf pqdt Ivone Reis,
em Cacine, 12/12/1968. Nasceu
em 1929, faleceu em 2022.
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Como curiosidade, que eu saiba, do primeiro curso de enfermeiras paraquedistas foi esta a única enfermeira paraquedista que,  no ano seguinte após concluído o curso de enfermeiras paraquedistas, lhe foi atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência,  dada pelo sr. Presidente da República Américo Tomás, visto e registado a fl. 109 L.2 Decreto de 28 de fevereiro 1962, publicado no Diário do Governo nº 73, 2ª série de 27/3/1962, Expedido pelo Chancelaria das Ordens Portuguesas aos 3 de abril, de 1962, nº 1588. Por tanto cerca 6 meses depois, do primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas terminar a meio de agosto de 1961.

Em cima  a foto do respetivo diploma cujo original foi oferecido para o museu do 
Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), em Tancos, no dia 15 de outubro de 2022.

Entretanto o  RCP, em Tancos, que tinha uma elevada noção de guerra, sabia que os primeiros socorros em terra, mesmo antes do Helicóptero de Socorro chegar, são importantes e, como tropa organizada e inteligente que é, teria de ter sempre alguém capaz para analisar qualquer situação, como: proteção à clareira onde o Helicóptero pudesse aterrar em segurança, assim como alguém devidamente preparado, que prestasse os primeiros socorros aos seus camaradas feridos, até esta aeronave chegar e os levar para o hospital.

A Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea apenas se preocupava com os ditos “enfermeiros” da Força Aérea, que nos Açores aprendiam a dar comprimidos, injeções e a desinfetar pequenas escoriações e com fracas noções de assepsia.

Os paraquedistas resolveram a sua questão, não deixando que a Direção de Saúde da Força Aérea de Lisboa resolvesse o seu problema. Assim, nomearam enfermeiras paraquedistas, em anos diferentes para,  no próprio Regimento,  darem um Curso Avançado de Primeiros Socorros aos seus camaradas paraquedistas, acompanhando-os no respetivo estágio feito no Hospital Militar Principal em Lisboa.  

E os socorristas Paraquedistas ficaram mais bem preparados, e de forma mais adequada e mais eficaz, para poderem cuidar dos seus camaradas quando feridos ou doentes, até o Helicóptero chegar e os levar para o hospital.

Deixaram assim os “enfermeiros” da Força Aérea, sossegados nas suas Bases Aéreas,  a fazerem precárias tarefa tal como lhes ensinaram.

Foram três enfermeiras paraquedistas que, em anos diferentes, foram nomeadas para darem formação adequada aos seus camaradas socorristas paraquedistas e os acompanharam no seu estágio no Hospital Militar da Estrela em Lisboa.

Quando chegou a minha vez, após dar à formação aos nossos socorristas paraquedistas, com respetivo acompanhamento do estágio feito no Hospital Militar da Estrela, aproveitei e formulei um pedido ao nosso comandante, sr. coronel Fausto Marques, autorização para fazer o curso de instrutores e monitores, tal como a enfermeira Manuel França o tinha feito 2 ou 3 anos antes. 

Fui autorizada e concluí-o com muito gosto. Fiz este curso apenas pelo prazer de saltar e considero ter sido mais um contributo para o meu próprio equilíbrio. Devo este prazer de saltar ao meu instrutor do curso de paraquedismo, na altura o senhor sargento pqdt Nogueira, meu querido instrutor, que me estimulou o prazer de saltar.

Sempre me disse que eu saltava muito bem da torre e por isso podia perfeitamente tirar partido desses momentos mágicos que os saltos nos proporcionam. Dizia-me ele; 

–   Primeiro logo que larga a porta,  mantem o corpo recolhido e conta 232, 233, 234, que é o tempo para a calote se soltar do arnês e abrir. Depois é necessário verificar se todos os cordões não estão enrolados, e saber de que lado vem o vento. Com os pequenos minutos que lhe restam,  aproveita para olhar mais longe, ver o horizonte, ver a terra de cima. Depois certifica-se de que lado vem o vento e,  se necessário,  fazer trações, para que este não a leve para zonas não aconselhadas, evitando assim acidente.

Sempre fiz isso, tudo como ele me ensinou. Apenas me surpreendeu o silêncio, que o “escutei“ com surpresa e foi maravilhoso. Razão por que anos mais tarde pedi ao nosso primeiro comandante Fausto Marques, para fazer o curso de instrutores e monitores só pelo prazer de saltar. Foi meu instrutor neste curso o sr. capitão pqdt João Costa Cordeiro que, quando acabei o curso me convidou para um jantar em Abrantes com ele e com a sua esposa.

Fiquei tristíssima quando,  poucos anos depois,  ele foi para a Guiné e morreu num salto de queda livre.

Fiz vários saltos, sendo o último feito na Beira,  em Moçambique. quando de passagem para Lisboa, vinda de Mueda no fim da minha comissão, aguardando no BCP 32 pelos feridos, que vinham de Lourenço Marques. 

O primeiro foi um salto automático e,  acabada de chegar a terra e logo de seguida,  vi a filha do engenheiro Jardim, a Carmo, junto a um Helicópetro da Força Aérea,  equipada para fazer um salto manual, eu que estava junto de um paraquedista perguntei-lhe se havia um paraquedas para eu fazer um salto manual. Como foi buscar de imediato um, eu informei o piloto, que estava já dentro da aeronave,  que também eu ia saltar. 

Assim foi,  entrámos as duas, e a Carmo nem “tugiu nem mugiu", simpática pensei eu, mas ignorei a presença da dita filha do engenheiro Jardim, entrámos. Ela ficou mais perto da porta quando já estávamos numa altura suficiente,  já não sei a quantos metros de altitude, ela saltou e, de seguida, saltei eu. Foram os dois últimos saltos que dei e a última comissão que fiz. Fins de dezembro de 1973.

É de notar que nunca viemos como passageiras, mesmo em fim da comissão, sempre viemos prestando cuidados e assistência aos feridos durante toda a viagem até Lisboa.

(...) 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas: LG]

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Notas do editor:

(...) Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri… (...)



(...) Perguntaram-me, no Hospital de Cascais onde estive recentemente internada, onde trabalhei, e ficaram admiradas, as enfermeiras, quando desfiei os vários locais e as experiências que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista. (...)