1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2019:
Queridos amigos,
Com a visita à exposição da coleção Wolfers pôs-se termo ao primeiro dia em Bruxelas, seguiu-se um belo passeio nos jardins da comuna de Watermael-Boitsfort, um grande amigo octogenário anda com as forças derribadas, decidiu ir viver para uma residência, receia dar tombos em casa. Não deixa de ser uma opção dolorosa, confidencia ao viandante.
E na manhã seguinte, esse mesmo viandante parte por sua conta e risco para andarilhar no bairro popular de Bruxelas, Marolles, sobretudo a Feira da Ladra, mas passear-se por lugares icónicos, que lhe são muito familiares, como a Rue Haute, Rue des Minimes, Rue des Tanneurs, será aqui que irá almoçar num tasquinho económico, ajoujado de alguma tralha adquirida no mercado. E como se verá adiante, mesmo ajoujado não resistiu a investir nas livrarias de obras em segunda mão, para ele uma espécie de paraíso na terra.
Um abraço do
Mário
Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (2)
Beja Santos
O viandante anda pela exposição dedicada à joalharia dos irmãos Wolfers em deslumbramento, talvez mesmo em transe hipnótico, são artes decorativas de valor excecional, sempre que visita em Lisboa o Museu Gulbenkian demora-se no espaço reservado as artes decorativas de outro génio, René Lalique, Philippe Wolfers foi contemporâneo de Lalique. Mas o viandante não só se enamora da ourivesaria e objetos decorativos, compraz-se com a articulação do mobiliário concebido por outro génio, o arquiteto Victor Horta, alguém que deixou edifícios públicos e privados sem paralelo, pode bem acontecer a todos aqueles que vão a reuniões a Bruxelas que não saibam que a Gare Central é projeto de Victor Horta, como o Palácio das Belas-Artes, como a celebérrima Maison du Peuple, criminosamente deitada abaixo. E noutra oportunidade já aqui se enalteceu o Museu Horta, situado na Comuna de Saint-Gilles, em Bruxelas, a casa e ateliê do génio, figura de proa do vanguardismo arquitetónico mundial.
O viandante não está interessado em fatigar o leitor, deixam-se aqui algumas imagens destes tesouros, pode dar-se o caso de o leitor um dia visitar Bruxelas, pode vir até ao Museu do Cinquentenário e usufruir destas belezas, algumas delas fazem parte da coleção permanente do museu.
O segundo dia, o viandante continua em Bruxelas, é dia de semana, a Place du Jeu de Balle, onde se situa a Feira da Ladra de Bruxelas, está entregue a pequenos comerciantes árabes que compram os recheios das casas, tudo se encontra, desde restos da casa de banho, caixas com fotografias, vestuário da avó, as mais inconcebíveis tralhas de sótão, e livros, discos compactos, quadros, esta praça é uma exposição pública de cavernas de Ali Babá de interiores muito incómodos para os herdeiros que tudo despejam a pataco, atenda-se ao que se vê nestas imagens.
Manhã trabalhosa para o viandante, trabalhosa e rendosa, sai daqui com uma caixa de leques completa, um prato de Companhia das Índias com cabelo, um lenço de pescoço de senhora da casa Dior, do final dos anos 50, pedaços de rendas, uma edição encadernada de Balzac, com belas ilustrações, segue agora para o almoço e a penalizar-se da sua falta de juízo, os voos low cost são implacáveis, não pode andar com esta traquitana avulsa em exibição. Agora é tarde, as compras estão feitas e a verdade é que dias depois embarca com uma caixa de leques a tiracolo e este imenso saco de tralha, que não lhe dá mais saúde à sua tão maltratada coluna. Paciência, é o preço de ser um acumulador desenfreado.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19891: Os nossos seres, saberes e lazeres (332): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 22 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19909: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXIV: Manuel Carlos Conceição Guimarães, cap art (Lisboa, 1937 - Geba, Guiné, 1967)
Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > O cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães, primeiro comandante da CART 1690 (Geba, 1967), então com 29 anos. Foi um dos 26 capitães que morreram no TO da Guiné (*). Neste caso, em comabte, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C. Tem 4 referências no nosso blogue. (**)
Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (***)
Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
Morais da Silva foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar. É membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 784, desde 7 do corrente.
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Notas do editor:
(*) Vd.poste de 22 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19315: Os 26 capitães que tombaram no CTIG (1953-1974), por combate, acidente e doença: lista corrigida e aumentada (Jorge Araújo)
(**) Vd. poste de 25 de setembro de 2014 > Guiné 53/74 - P13650: In Memoriam (195): Cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães (1938-1967), morto na estrada Geba-Banjara, região de Bafatá... As suas irmãs, Teresa e Ana descobrem agora, emocionadas, as referências sobre ele no nosso blogue e encontraram-se há dias, em Lisboa, com o A. Marques Lopes, seu amigo e companheiro de infortúnio
(***) Último poste da série > 29 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19841: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXIII: Luís António Andrade Âmbar, alf cav (Ponta Delgada, Açores, 1944 - Moçambique, 1967)
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Guiné 61/74 - P19908: Parabéns a você (1642): Coronel Art Ref António José Pereira da Costa, ex-Alf Art da CART 1692 (Guiné, 1968/69), ex-Cap Art, CMDT das CARTs 3494 e 3567 (Guiné, 1972/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de Junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19904: Parabéns a você (1641): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro, Engenheiro e Gestor de Projectos, natural da Guiné-Bissau
Nota do editor
Último poste da série de 20 de Junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19904: Parabéns a você (1641): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro, Engenheiro e Gestor de Projectos, natural da Guiné-Bissau
sexta-feira, 21 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:
Queridos amigos,
Estamos ainda nos primeiros meses da Comissão do BCAV 490, agosto e setembro de 1963. A batalha do Como ainda vem longe, será em fevereiro do ano seguinte. Aí teremos documentação suficiente, basta pensar nesse arauto que é o Armor Pires Mota e o seu magnífico "Tarrafo". Mas não só. Na biografia de Alpoim Calvão, intitulada "Honra e Dever", os três autores descrevem minuciosamente a Operação Tridente, a participação da Marinha e as belas páginas escritas pelo mais condecorado Oficial da Marinha Portuguesa.
António Santos Andrade repertoria os primeiros acidentes graves, recorda os jogos de futebol, fala em guerrilheiros capturados e no muito terror que por ali se espalhou, o muito sofrimento de vítimas inocentes, como é uso e costume em todas as guerras.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (11)
Beja Santos
“O Alferes Brasil foi ferido.
Que triste coisa passaram,
o Teodomiro e o Peixeiro
nessa rodada calharam!
Saindo para a missão
que tinha a desempenhar,
teve grande azar
o Alferes do 1.º Pelotão.
No lado oposto ao coração
um tiro lhe foi metido.
O homem deu um gemido
não há ninguém que se esqueça
e com estilhaços na cabeça,
o Alferes Brasil foi ferido.
Apanhámos muitos prisioneiros:
um deles, sapador,
fez umas coisas de terror.
Ele e os seus companheiros
malvados e traiçoeiros,
duma infeliz preta abusaram,
e uma pobre rapariga cegaram.
Aquilo metia dó,
a seguir a Mamboncó
que triste coisa passaram.
Um dia de manhã cedo,
nesse dia eu não fui lá,
entre Bissorã e Mansabá,
os rebentamentos metiam medo.
No meio daquele arvoredo,
feriu-se o Cassifre, bom companheiro,
o Gaimota do morteiro
foi ferido noutra altura;
e sofrendo grande amargura,
o Teodomiro e o Peixeiro.
Agora vou-lhes contar
qual era a minha distracção.
Quando havia ocasião
a bola ia jogar.
Também gostava de conversar
com os bandoleiros que se aprisionaram.
Um dia uma mina armaram
dando-se um rebentamento que estremecia
e três rapazes da Companhia
calharam nessa rodada.”
********************
Bissorã e Mansabá são sinónimos, logo em 1963, de que a região do Morés dinamizava a guerrilha, espalhava-se o terror, raptava-se, destruíam-se tabancas, executavam-se os recalcitrantes, são regras de ouro do caos, as populações abandonam haveres, os seus lugares, recolhem-se aos destacamentos militares ou atravessam as fronteiras. O bardo dá notícias de gente ferida, temos aqui nova oportunidade para voltar à companhia de “As Ausências de Deus”, de António Loja:
“Depois de uma emboscada sofrida na estrada Mejo-Guileje fiz seguir de helicóptero para o Hospital Militar de Bissau, gravemente ferido, o Cabo Calçada, um dos mais genuínos cavalheiros que encontrei na guerra. Apanhara uma rajada de metralhadora no tórax e olhei apreensivo para a ferida. O furriel-enfermeiro não me encorajou:
- É muito grave, disse.
Há homens que morrem antes da morte chegar, outros que a recusam com convicção, mesmo quando ela se agarra vorazmente ao corpo da sua vítima, dedos enclavinhados e dentes afiados de vampiro. Calçada era um desses homens. Na estrada, quando lhe dirigi uma palavra de encorajamento, ao ajudar a içá-lo para o helicóptero, ele olhou-me bem a direito, olhos nos olhos, tentou fazer um sorriso que pareceu um esgar e (cúmulo da malícia para espantar a morte) piscou-me o olho. Não conseguia falar mas o gesto expressivo não poderei jamais esquecê-lo.
O contacto com o hospital, que fiz posteriormente através de um alferes que se deslocou a Bissau, foi optimista mas ainda problemático: tinham-lhe extraído um pulmão e ele estava por um fio. Mas o alferes referiu a imensa vontade de viver que transbordava da sua atitude, posto que não das suas palavras. É que a falta do pulmão o impedia ainda de falar e só a sua atitude de desafio face à morte convencia quem o encontrava que o homem era invencível.
Dois meses depois fui chamado ao Quartel-General em Bissau e inclui no meu itinerário uma passagem pelo hospital para visitar os meus soldados lá internados, entre eles o Calçada. Na recepção identifiquei-me, colhi informação do quarto onde ele se encontrava e para lá me dirigi. A cama onde ele deveria estar, impecavelmente arrumada, fez-me pensar no pior. Teria morrido e nada me teria sido comunicado? Saí para o corredor em direcção à recepção, para uma informação precisa. De repente, vejo avançar em sentido oposto um homem magro, em pijama, agarrado a um suporte metálico com rodízios onde se suspendia um invólucro transparente com soro. O homem olhava fixamente para mim, que de tão perturbado, mal via o que se passava à minha volta. Mas, quando levantei para ele o meu olhar descobri a cara risonha do Calçada, que de novo me piscava o olho e me dizia, arfando:
- Ainda cá estou, meu capitão.
E estava. Para ficar. Porque era mesmo invencível. Dera um pontapé na morte. Dispensado da guerra veio lutar por uma causa mais digna: o dia-a-dia de um ser humano com vontade de viver.”
A guerra é farto pasto para desentendimentos entre armas, hierarquias, desenvolve contenciosos que têm na raiz a petulância do estatuto, vaidade das vaidades. E António Loja conta um episódio quase parente de uma ópera-bufa vivido entre um alferes de infantaria e um tenente dos helicópteros:
“O dia seguinte, em Mejo, iniciou-se sem novidades. Como previsto, o helicóptero de apoio à nossa operação veio pousar no campo de futebol anexo ao quartel e, montada a segurança àquele, o piloto veio confraternizar com o Alferes Ávila, que o tratou com a maior urbanidade possível no cu de Judas que era Mejo. Em chegando a hora de almoçar, o Ávila, que não escondia as dificuldades de providenciar uma hospitalidade mais generosa, convidou o piloto para uma ração de combate. O que obviamente desagradou ao tenente, habituado às mordomias da messe da Força Aérea em Bissau. E disse, com o ar superior de quem fez exame de condução de helicópteros e tem por isso o rei na barriga, que ia almoçar a Bissau. Aí as coisas aqueceram. O Alferes Ávila, Comandante interino do quartel de Mejo, olhou de frente o tenente, que apenas comandava o helicóptero e disse-lhe, nariz no ar:
- O meu tenente veio a Mejo para dar apoio à operação e está às ordens do meu capitão, que o chamará, se for preciso. E só sai daqui quando eu receber instruções dele e para o local que ele indicar.
O aviador achou que chegava ostentar os galões e voar para a capital:
- Vou até Bissau e volto quando acabar de almoçar.
Mas estava enganado. Ávila respirou fundo e deu um berro:
- Não vai, não! O meu tenente sabe onde tenho montada a doze sete? Na casamata que fica sobre o campo de futebol. Mesmo em frente do seu ‘brinquedo’.
Parou para tomar fôlego e deu outro berro, já noutra direcção:
- Cabo Chico, vai para a metralhadora e, se o helicóptero levantar, dá-lhe uma rajada das grossas.
Chico era a obediência em pessoa. Levava à risca o princípio de que ordens são para obedecer. E ninguém se lembrava de desobedecer ao Ávila.
O cabo correu para a casamata e preparou-se para actuar. O tenente-aviador viu as coisas mal paradas. Voltou cabisbaixo para a messe onde o Ávila, generosamente, lhe ofereceu um uísque. E com este abriu o apetite para a ração de combate que era ainda pior do que dobrada desidratada”.
O nosso bardo fala em jogos de futebol, há muita literatura avulsa sobre lazeres desta natureza, era uma belíssima forma de descarregar a tensão. Não havia destacamento sem campo de futebol, as unidades, grandes e pequenas, formavam equipas, combinavam-se encontros para o tempo de folga. Recordo da minha vida em Missirá (no Cuor) que se incentivava jogos entre caçadores nativos e milícias, a pequenada tinha todos os apoios possíveis, os candidatos a guarda-redes até se podiam ufanar de ter luvas e joelheiras e bonés, indumentária a preceito para aqueles tempos. Deverá ter ficado memória entre gerações, dos jogos e respetivos equipamentos, pois quando ali regressei, em janeiro de 1990, um dos bilhetinhos trazia o pedido de equipamentos, bola, redes, como no passado. E comovi-me muito, mesmo sabendo como pesa a narrativa oral e o desfiar da memória africana. Em Bambadinca, houve jogo entre oficiais e sargentos, guarda-se fotografia no blogue, fui para guarda-redes e comportei-me como um bom frangueiro. A equipa incluía o 2.º Comandante do BCAÇ 2852, Major Ângelo da Cunha Ribeiro, o nosso médico, David Payne Pereira, o Ismael Augusto, o Fernando Calado, o Abel Rodrigues e o Carlão, da CCAÇ 12, entre muitos outros. E foi num jogo de futebol que o nosso oficial de transmissões, o Fernando Calado, se acidentou com gravidade, ele aparece numa fotografia com um braço engessado, numa parede bem estilhaçada durante a flagelação de 28 de maio de 1969.
A guerra também passava pelo campo de futebol…
(continua)
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Notas do editor:
Poste anterior de 14 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19900: Notas de leitura (1188): Uma história antiga, do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", da autoria de Francisco Baptista, com lançamento no próximo dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Mogadouro
Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (163): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)
Parte V - De Catedi (dia 15) a Indornal (dia, 16)
Parte IV - De Salicocum (dia 14,) a Catedi (dia 15, pernoita)
Parte III - Menino Cundá (dia 13, pernoita) a Salicocum (dia 14, pernoita)
Parte I - De Geba, dia 11 de março de 1883, a Sede Cundá (dia 12, pernoita)
Percurso seguido pelo alferes Francisco Marques Geraldes entre Geba e o Indornal, de 11 a 16 de março de 1883 (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)
1. Comentários (ao poste P19905), de Cherno Baldé, Armando Tavares da Silva e Mário Beja Santos (*):
(i) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando da Silva,
No dia 17 do corrente fiz um comentário num Poste de Luís Graça sobre a região de Ganadu/Joladu e do seu primeiro régulo Fula, Mbucu ou Umbucu, contemporâneo do ten Marques Geraldes, nos seguintes termos:
Luís,
O Régulo de Joladu que é o mesmo que dizer Ganadu, seria da linhagem do régulo M'bucu ou Umbucu que, em 1886, ofereceu a logística e o serviço dos seus homens para apoiar o ten Marques Geraldes na Batalha de Fanca (Sancorlã) contra os homens de Mussa Molo, rei de Fuladu, com a capital em N'dorna ou Indornal (grafia portuguesa), tendo mudado mais tarde para Hamdalaye, localidades situadas entre o rio Gambia e o rio Casamansa.
Mbucu ou Umbucu era de ascendência Fula-Forro e por isso as suas relações com o Mussa Molo, rei de Fuladu, de ascendência Fula-preto, não eram muito amistosas pelo que a sua aliança com a administração portuguesa através do presídio de Geba era uma forma subtil de recusar a vassalagem ao Mussa Molo, rei do Fuladu que tinha destronado o seu tio, Bacar Demba (vulgo Dembel). De notar que o mesmo (estes conflitos de poder) não acontecia na época de Alfa Molo, pai de Mussa Molo e fundador do reino, que respeitava muito e permitia uma larga autonomia aos Fulas-forros a quem ele próprio tinha entregado a gestão de vastos territórios, muitos dos quais ainda por conquistar às mãos dos mandingas / soninques como era o caso de Joladu.
Abraços,
Cherno Baldé
17 de junho de 2019 às 17:31
Observando atentamente o conteúdo do Poste de hoje e a descrição do percurso seguido até Ndorna (Indornal), a capital do império de Fuladu ou Firdu (ver parágrafo seguinte).
"Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá".
Deve ter havido algum mal entendido nesta descrição, pois as localidades de Saré-Minine (Menino-Cunda), Banco e Solucocum (Salicocum) que ainda existem e habitadas, estão localizadas na margem direita do rio Farim e não na margem esquerda como esta aqui descrito. Com a Convenção Luso-Francesa de 1886, Solucocum estaria mesmo junto à linha da fronteira e perto de Sitato, entre as localidades de Cuntima e Cambaju.
É muito interessante notar que alguns meses após a passagem do ten Marques Geraldes ao Indornal, mais precisamente a 3 de Novembro de 1883, o mesmo Mussa Molo assina um tratado de amizade e de protecção com representantes da França presentes no presídio de Sedio (Selho) e deste modo garantir o apoio das forças francesas para destronar o seu tio (Bacar Demba) e afastar o irmão Dicory Cumba, também pretendente ao trono. Mas, daí para a frente estaria em guerra permanente com os régulos Fulas-Forros de Sancorlã, Joladu e de Gabu/Forreá que, aliando-se aos portugueses em Farim e Geba, não reconheciam a autoridade de Mussa Molo sobre esses territórios.
Estou a terminar um texto sobre esta parte menos conhecida da história da Guiné e de Casamança, conhecida como o reino de Fuladu, ou a tentativa da construção do último império na África ocidental.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 13:29
PS - Há uma grande probabilidade de a designação de Ganadu ter a sua origem a partir da localidade de Saré-Gana, onde residia o régulo Mbucu, aliado dos portugueses, em detrimento de Joladu, a antiga designação do regulado
(ii) Armando Tavares da Silva:
Caro amigo Cherno Baldé,
Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.
As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.
Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.
“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.
A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.
Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?
Com um abraço amigo,
Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06
(iii) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando,
Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.
Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".
A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.
Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.
Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.
Um forte abraço,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05
(iii) Mário Beja Santos
Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.
Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html
Um abraço aos dois, Mário Beja Santos
21 de junho de 2019 às 12:43
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Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.
As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.
Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.
“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.
A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.
Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?
Com um abraço amigo,
Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06
(iii) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando,
Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.
Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".
A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.
Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.
Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.
Um forte abraço,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05
(iii) Mário Beja Santos
Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.
Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html
Um abraço aos dois, Mário Beja Santos
21 de junho de 2019 às 12:43
_________________
Notas do editor:
(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)
(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné
(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,
Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.
Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.
Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.
Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.
Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.
Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.
Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.
Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.
Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.
Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.
Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.
No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.
O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.
Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.
No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.
O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.
No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.
Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,
Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.
Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.
Deus guarde a vossa excelência.
(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."
(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)
(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné
(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,
Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.
Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.
Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.
Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.
Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.
Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.
Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.
Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.
Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.
Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.
Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.
No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.
O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.
Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.
No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.
O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.
No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.
Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,
Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.
Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.
Deus guarde a vossa excelência.
(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."
quinta-feira, 20 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (162): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)
Imagem nº 1 > Guiné > Carta de 1889 da Comissão de Cartografia. Detalhe
Imagem nº 2 > Guiné > Carta de 1889 da Comissão de Cartografia. Detalhe: assinalado o percurso de Marques Geraldes e as povoações por onde transitou.
Parte III
Parte II
Parte I
1. Mensagem de Armando Tavares da Silva
Data - Domingo, 16/06, 00:12 (há 1 dia)
Assunto - Marques Geraldes: De Geba ao Indornal
Luís,
Anexo um texto, já em tempos prometido, relativo a uma diligência de Francisco Marques Geraldes, chefe do presídio de Gebam que o levou de Geba ao Indornal.
É um texto que dedico ao Cherno Baldé, por ocasião do seu próximo aniversário, e que gostava que fosse publicado no dia 20 de
Junho.
Seguem também 3 imagens, sendo 2 reproduções parciais da Carta da Guiné da Comissão de Cartografia de 1889, destinadas a ilucidar o percurso realizado na referida diligência.
Com um abraço, agradece,
Junho.
Seguem também 3 imagens, sendo 2 reproduções parciais da Carta da Guiné da Comissão de Cartografia de 1889, destinadas a ilucidar o percurso realizado na referida diligência.
Com um abraço, agradece,
[ (i) Membro da Tabanca Grande; tem cerca de 5 dezenas de referências no nosso blogue:
(ii)engenheiro, historiador, prof catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra;
(iii) "Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo" (, atribuído pelo seu livro “A Presença Portuguesa na Guiné — História Política e Militar — 1878-1926”, vd. imagem da capa a seguir); (iv) presidente da Secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa]
2. No meu comentário de 16 de Janeiro do ano passado, em resposta a um comentário do Cherno Baldé, ao meu post P18216 de 15 de Janeiro de 2018, prometi que mais tarde iria falar de uma diligência de Marques Geraldes – o chefe do presídio de Geba ‒ junto do régulo Dembel. Esta diligência iria ter lugar em sequência das muitas correrias de Densá, que era filho daquele régulo, e que estavam já a causar dissidências entre os próprios fulas-pretos.
É o que agora faço por ocasião do aniversário do Cherno Baldé (*) e como singela homenagem que lhe presto pela sua participaçãp neste blogue e seus comentários sempre muito apropriados e elucidativos.
Sucedera que em Março de 1883 a pequena povoação de S. Belchior, situada na margem direita do rio Geba, tinha sido atacada pelos fulas-pretos capitaneados por Densá, sendo aprisionados todos os cristãos, e as suas casas reduzidas a cinzas.
Densá, de pouca idade, filho do régulo Dembel, que ainda não havia muitos meses fizera um tratado de amizade com o governo, envia ao comandante do presídio de Geba, alferes Francisco Marques Geraldes, uma vaca de presente, ao mesmo tempo que diz dedicar-lhe amizade. Porém, Marques Geraldes ordena-lhe a entrega, “sem mais delongas” dos cristãos aprisionados, ao mesmo tempo que devolve “o presente”.
(ii)engenheiro, historiador, prof catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra;
(iii) "Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo" (, atribuído pelo seu livro “A Presença Portuguesa na Guiné — História Política e Militar — 1878-1926”, vd. imagem da capa a seguir); (iv) presidente da Secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa]
2. No meu comentário de 16 de Janeiro do ano passado, em resposta a um comentário do Cherno Baldé, ao meu post P18216 de 15 de Janeiro de 2018, prometi que mais tarde iria falar de uma diligência de Marques Geraldes – o chefe do presídio de Geba ‒ junto do régulo Dembel. Esta diligência iria ter lugar em sequência das muitas correrias de Densá, que era filho daquele régulo, e que estavam já a causar dissidências entre os próprios fulas-pretos.
É o que agora faço por ocasião do aniversário do Cherno Baldé (*) e como singela homenagem que lhe presto pela sua participaçãp neste blogue e seus comentários sempre muito apropriados e elucidativos.
Sucedera que em Março de 1883 a pequena povoação de S. Belchior, situada na margem direita do rio Geba, tinha sido atacada pelos fulas-pretos capitaneados por Densá, sendo aprisionados todos os cristãos, e as suas casas reduzidas a cinzas.
Densá, de pouca idade, filho do régulo Dembel, que ainda não havia muitos meses fizera um tratado de amizade com o governo, envia ao comandante do presídio de Geba, alferes Francisco Marques Geraldes, uma vaca de presente, ao mesmo tempo que diz dedicar-lhe amizade. Porém, Marques Geraldes ordena-lhe a entrega, “sem mais delongas” dos cristãos aprisionados, ao mesmo tempo que devolve “o presente”.
Decorridos 3 dias, são apresentados dez dos cristãos aprisionados, tendo o cavaleiro que os acompanha pedido desculpa do acontecido em S. Belchior, pois Densá ignorava que esta povoação estivesse sob a protecção do governo português. Faltavam, contudo, duas mulheres que tinham sido enviadas para o Indornal.
Marques Geraldes, que tinha “a vontade de salvar as duas desgraçadas cristãs que seguiram para o Indornal, onde em breve iriam ser vendidas para a Gâmbia a troco de cavalos, e o desejo de acabar com as dissidências que já iam lavrando entre os fulas-pretos por causa das demasias praticadas por Densá”, decide empreender uma “tão longa e quão espinhosa viagem ao Indornal, tendo em vista o ser útil ao [seu] país e aos povos que administrava”.
Assim, larga de Geba a 11 de Março, e enceta uma longa caminhada a cavalo, acompanhado de um intérprete e de um enfermeiro (que conhecia as línguas mandinga e fula), e de quatro grumetes para carregadores. Começa por atravessar as povoações Calicundá, Bindangar, San-Jenó, e chega a Carantabá, onde o rei de Umbucú se manifesta cansado de “aturar os despotismos e roubos de Densá”, e lhe pede para interceder junto do régulo Dembel para que este mande recolher seu filho Densá ao Indornal, sem o que se poderia dar “de um momento para outro […] uma guerra entre fulas-pretos”.
O rei de Umbucú oferece a Marques Geraldes três cavalos e põe à sua disposição o seu filho Sambel e 4 fulas armados. A expedição foi assim composta de 4 cavaleiros e 8 homens de pé, estando, do total de 12, apenas 6 armados com espingardas e os outros somente de espadas.
Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá.
No dia 16, depois de atravessar o rio de Selho, chega pelas 8 da noite ao Indornal.
No dia seguinte realiza-se, na tabanca do régulo Dembel, que se apresenta “cercado pelos seus grandes”, uma longa interpelação de Marques Geraldes, em que este, entre outros aspectos, lembra que o próprio régulo Dembel tinha estado em Geba, não havia ainda 5 meses para consolidar o tratado de paz e boa amizade feito por Moló, seu antecessor. Recorda ainda os sacrifícios que o governo português tinha feito em Buba, por causa da protecção concedida aos fulas-pretos – o mesmo governo que não tivera dúvida, em 1880, de se declarar abertamente contra os fulas-forros – e pede-lhe para mandar recolher ao Indornal o seu filho Densá, “onde ele não aparecia havia um ano, tirando-lhe ao mesmo tempo a gente de guerra que o acompanhava”.
No dia seguinte, dia 18, depois de se ter aconselhado com os seus grandes, Dembel, considerando o exigido pelo governo, comunica que iria mandar entregar as duas mulheres de S. Belchior e, ao mesmo tempo, intimar Densá a recolher ao Indornal “sob pena de ser expulso do território dos fulas, não querendo obedecer”. No entanto, só a 24 Densá chega à presença do pai e procede à entrega das duas mulheres.
Marques Geraldes, no seu circunstanciado relatório apresentado ao governo, acrescenta que o régulo Dembel, de cerca de setenta anos, é de carácter “bastante pusilânime”, o que poderia dar azo a que houvesse alguma ocorrência desagradável, se não fosse Mussá, seu sobrinho, de 30 anos, que lhe haveria de suceder no governo, “bastante enérgico e idolatrado pelos fulas-pretos”. Diz ainda que: “É ele o principal cabo-de-guerra, a quem em tempo de guerra, velhos e moços, todos à porfia lhe obedecem”.
E continua, referindo que no Indornal, onde encontrou muita gente conhecida de Buba e Geba, viviam em perfeita harmonia, os mais variados povos: mandinga, fula-forro, futa-fula, seruá, soninqué, entre outros. E acrescenta que foi “belíssimo” o tratamento recebido, e a “muitos causava admiração o ter chegado àquele lugar, [pois] era a primeira vez que um branco ali tenha ido”.
No dia 26, pelas 3 horas da tarde, Marques Geraldes sai do Indornal de regresso a Geba, onde chega no dia 31 pelas 8 horas da noite. Na partida, Mussá e alguns guerreiros vieram despedir-se dele, dizendo-lhe aquele que “o governo português podia contar com ele sempre [que] tivesse precisão”. E Marques Geraldes oferece a Mussá como presente uma espingarda de repetição que possuía.
Tinha sido uma viagem calculada em 160 léguas, de “10 horas de marcha por dia, sob um calor abrasador”. Em resultado do relevante serviço que acabara de prestar ao país, a 7 de Junho de 1883, El-rei D. Luís atribui a Marques Geraldes o grau de cavaleiro da Torre e Espada.
Mais tarde, já no final do ano, Marques Geraldes é levado a nova intervenção junto do régulo Dembel. Sucedera que este, estando em inimizade com “os mouros de Bigine e os beafadas de Cossé” e desejando “reduzi-los à fome para assim os vencer”, mandara fechar os caminhos que conduziam ao presídio de Geba, impossibilitando que nele entrassem géneros alimentícios. E parece que esta intervenção terá tido os seus resultados pois, a 1 de Dezembro, enviados de Dembel, ao afirmarem que este régulo “estivera sempre de boas relações com o chefe [alferes Marques Geraldes], a ponto de lhe mandar dizer que tudo quanto ele precisasse lhe seria fornecido, bem como ao juiz do povo”, anunciam que aquele régulo “dera ordens precisas para que os caminhos ficassem imediatamente livres”, pedindo somente para que o chefe fizesse “com que os de Bigine” não fossem ao seu território.
A expedição de Marques Geraldes ao Indornal não teve a importância e o reconhecimento que alguns anos antes havia tido a expedição de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que exploraram o interior de Africa entre Angola e Moçambique. Mas insere-se, com a sua dimensão própria, entre aquelas que portugueses realizaram para melhor conhecimento de Africa.
A atestar a sua importância para o conhecimento do interior da Guiné, temos o facto de, a seguir à mesma, a carta da Guiné editada pela Comissão de Cartografia do Ministério da Marinha e Ultramar, na sua edição de 1889, ter passado a incluir as povoações por onde tinha transitado Marques Geraldes, assim como o caminho por este percorrido.
Anexa-se uma imagem com o percurso seguido por Marques Geraldes entre Geba e o Indornal (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)(Imagem nº 3).
Anexa-se ainda uma imagem com parte da carta de 1889 da Comissão de Cartografia onde se encontra assinalado o percurso de Marques Geraldes e as povoações por onde transitou.
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Marques Geraldes, que tinha “a vontade de salvar as duas desgraçadas cristãs que seguiram para o Indornal, onde em breve iriam ser vendidas para a Gâmbia a troco de cavalos, e o desejo de acabar com as dissidências que já iam lavrando entre os fulas-pretos por causa das demasias praticadas por Densá”, decide empreender uma “tão longa e quão espinhosa viagem ao Indornal, tendo em vista o ser útil ao [seu] país e aos povos que administrava”.
Assim, larga de Geba a 11 de Março, e enceta uma longa caminhada a cavalo, acompanhado de um intérprete e de um enfermeiro (que conhecia as línguas mandinga e fula), e de quatro grumetes para carregadores. Começa por atravessar as povoações Calicundá, Bindangar, San-Jenó, e chega a Carantabá, onde o rei de Umbucú se manifesta cansado de “aturar os despotismos e roubos de Densá”, e lhe pede para interceder junto do régulo Dembel para que este mande recolher seu filho Densá ao Indornal, sem o que se poderia dar “de um momento para outro […] uma guerra entre fulas-pretos”.
O rei de Umbucú oferece a Marques Geraldes três cavalos e põe à sua disposição o seu filho Sambel e 4 fulas armados. A expedição foi assim composta de 4 cavaleiros e 8 homens de pé, estando, do total de 12, apenas 6 armados com espingardas e os outros somente de espadas.
Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá.
No dia 16, depois de atravessar o rio de Selho, chega pelas 8 da noite ao Indornal.
No dia seguinte realiza-se, na tabanca do régulo Dembel, que se apresenta “cercado pelos seus grandes”, uma longa interpelação de Marques Geraldes, em que este, entre outros aspectos, lembra que o próprio régulo Dembel tinha estado em Geba, não havia ainda 5 meses para consolidar o tratado de paz e boa amizade feito por Moló, seu antecessor. Recorda ainda os sacrifícios que o governo português tinha feito em Buba, por causa da protecção concedida aos fulas-pretos – o mesmo governo que não tivera dúvida, em 1880, de se declarar abertamente contra os fulas-forros – e pede-lhe para mandar recolher ao Indornal o seu filho Densá, “onde ele não aparecia havia um ano, tirando-lhe ao mesmo tempo a gente de guerra que o acompanhava”.
No dia seguinte, dia 18, depois de se ter aconselhado com os seus grandes, Dembel, considerando o exigido pelo governo, comunica que iria mandar entregar as duas mulheres de S. Belchior e, ao mesmo tempo, intimar Densá a recolher ao Indornal “sob pena de ser expulso do território dos fulas, não querendo obedecer”. No entanto, só a 24 Densá chega à presença do pai e procede à entrega das duas mulheres.
Marques Geraldes, no seu circunstanciado relatório apresentado ao governo, acrescenta que o régulo Dembel, de cerca de setenta anos, é de carácter “bastante pusilânime”, o que poderia dar azo a que houvesse alguma ocorrência desagradável, se não fosse Mussá, seu sobrinho, de 30 anos, que lhe haveria de suceder no governo, “bastante enérgico e idolatrado pelos fulas-pretos”. Diz ainda que: “É ele o principal cabo-de-guerra, a quem em tempo de guerra, velhos e moços, todos à porfia lhe obedecem”.
E continua, referindo que no Indornal, onde encontrou muita gente conhecida de Buba e Geba, viviam em perfeita harmonia, os mais variados povos: mandinga, fula-forro, futa-fula, seruá, soninqué, entre outros. E acrescenta que foi “belíssimo” o tratamento recebido, e a “muitos causava admiração o ter chegado àquele lugar, [pois] era a primeira vez que um branco ali tenha ido”.
No dia 26, pelas 3 horas da tarde, Marques Geraldes sai do Indornal de regresso a Geba, onde chega no dia 31 pelas 8 horas da noite. Na partida, Mussá e alguns guerreiros vieram despedir-se dele, dizendo-lhe aquele que “o governo português podia contar com ele sempre [que] tivesse precisão”. E Marques Geraldes oferece a Mussá como presente uma espingarda de repetição que possuía.
Tinha sido uma viagem calculada em 160 léguas, de “10 horas de marcha por dia, sob um calor abrasador”. Em resultado do relevante serviço que acabara de prestar ao país, a 7 de Junho de 1883, El-rei D. Luís atribui a Marques Geraldes o grau de cavaleiro da Torre e Espada.
Mais tarde, já no final do ano, Marques Geraldes é levado a nova intervenção junto do régulo Dembel. Sucedera que este, estando em inimizade com “os mouros de Bigine e os beafadas de Cossé” e desejando “reduzi-los à fome para assim os vencer”, mandara fechar os caminhos que conduziam ao presídio de Geba, impossibilitando que nele entrassem géneros alimentícios. E parece que esta intervenção terá tido os seus resultados pois, a 1 de Dezembro, enviados de Dembel, ao afirmarem que este régulo “estivera sempre de boas relações com o chefe [alferes Marques Geraldes], a ponto de lhe mandar dizer que tudo quanto ele precisasse lhe seria fornecido, bem como ao juiz do povo”, anunciam que aquele régulo “dera ordens precisas para que os caminhos ficassem imediatamente livres”, pedindo somente para que o chefe fizesse “com que os de Bigine” não fossem ao seu território.
A expedição de Marques Geraldes ao Indornal não teve a importância e o reconhecimento que alguns anos antes havia tido a expedição de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que exploraram o interior de Africa entre Angola e Moçambique. Mas insere-se, com a sua dimensão própria, entre aquelas que portugueses realizaram para melhor conhecimento de Africa.
A atestar a sua importância para o conhecimento do interior da Guiné, temos o facto de, a seguir à mesma, a carta da Guiné editada pela Comissão de Cartografia do Ministério da Marinha e Ultramar, na sua edição de 1889, ter passado a incluir as povoações por onde tinha transitado Marques Geraldes, assim como o caminho por este percorrido.
Anexa-se uma imagem com o percurso seguido por Marques Geraldes entre Geba e o Indornal (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)(Imagem nº 3).
Anexa-se ainda uma imagem com parte da carta de 1889 da Comissão de Cartografia onde se encontra assinalado o percurso de Marques Geraldes e as povoações por onde transitou.
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Guiné 61/74 - P19904: Parabéns a você (1641): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro, Engenheiro e Gestor de Projectos, natural da Guiné-Bissau
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19901: Parabéns a você (1640): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74) e Leopoldo Amado, Amigo Grã-Tabanqueiro, Historiador, natural da Guiné-Bissau
Nota do editor
Último poste da série de 19 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19901: Parabéns a você (1640): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74) e Leopoldo Amado, Amigo Grã-Tabanqueiro, Historiador, natural da Guiné-Bissau
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19903: Historiografia da presença portuguesa em África (161): "Curiosidades de um Africanista", um manjar de príncipe para etnógrafos e estudiosos da linguística (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2018:
Queridos amigos,
Na chamada secção dos Reservados o investigador deve estar preparado para surpresas e industriado pela paciência, pois nem tudo o que cai na rede é peixe. No caso vertente era peixe e do graúdo, ainda que com destinatários bem direcionados. Estas Curiosidades de um Africanista denotam um homem profundamente interessado na diversidade cultural, no conhecimento das tradições, nos provérbios, no registo de recomendações de índole prática. Fica-nos a incógnita se este autor desconhecido conheceu um cientista guineense de grande valor, o padre Marcelino Marques de Barros, que se dedicava a matérias afins. Pouco importa que esta questão fique definitivamente sem resposta, está aqui um manjar de príncipe, quem quiser dirija-se à Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Um abraço do
Mário
Um manjar de príncipe para etnógrafos e estudiosos da linguística
Beja Santos
Nos Reservados da Sociedade de Geografia consta um documento intitulado “Curiosidades de um Africanista”, apresentado como caderno sobre o crioulo de Cabo Verde, Guiné e Sul de Angola, um apanhado de termos de crioulo e português, poemas e orações em crioulo, provavelmente obra elaborada ainda no século XIX e publicado no início do século XX.
Seja-se etnógrafo ou filólogo, lê-se este conjunto de registos, de autor desconhecido, com imensíssimo prazer, foi alguém que viajou e teve a pertinência, a imensa curiosidade em registar uma imensidade de manifestações culturais, tudo apresentado numa forma de almanaque, como se sintetiza.
Aparece o crioulo da ilha Brava, ele registou a lamentação de uma viúva, do crioulo de Santo Antão aparece-nos um provérbio: Quem quiser trabalhar que trabalhe, que eu não estou para destemperar o meu corpo; mais adiante temos uma tradição oral do século XVIII, A confissão por um canudo.
Se é verdade que há apontamentos sobre o manatuto (Timor), Cabo Verde e Sul de Angola, a Guiné tem a fatia do leão. Logo a poesia Mandinga, escreveu o seu autor:
“Um dia lembrou-se uma serpente de se transformar num elegante mancebo e foi pedir a mão de uma donzela que teimava em não casar se não com aquele a quem a natureza dispensasse a fatal necessidade de dejecções fáceis e das secreções dos rins; feito o exame, obteve a noiva que levou para sua casa, mas de improviso as caravanas que iam passando ouvem uma voz que se parecia com a de um náufrago à beira-mar: Ó da caravana, ó da caravana! Digam a meus pais que o homem que me deixaram em casamento transformou-se numa serpente que me traz ligada nas suas roscas, não sei se me esmagará, não sei se me devorará”.
Nessa mesma página, o autor anota recomendações para o desembarque:
“Sempre que se desembarque em qualquer ponto em África, deve-se tomar uma cápsula de quinino antes do desembarque, embora a viagem seja de um porto africano para outro. Não tendo cápsulas, divide uma mortalha de cigarro em duas partes, deita-lhe o quinino, enrola as quatro pontas. Em qualquer dos casos, bebe água para facilitar que a cápsula passe para o estômago”.
Este autor desconhecido esteve atento à poesia Biafada, e deixa-nos um curioso registo:
“No tempo de uma horrorosa fome, uma pequena deu a seu irmãozinho uns feijões para o acalentar; chega a mãe, que se enfurece tanto que a pequena foge e vai esconder-se no tronco de uma árvore que ensombra uma linda fonte. Todos os que vinham do povoado buscar água ouviam esta voz inocente, saudosa e de uma feição primitiva: o que desperta os ecos desta fonte aceita o recado que lhe dou. Dizei a minha mãe que foi por causa de uns feijões que dei ao meu irmãozinho que vivo metida neste poilão há tanto tempo que já estou muito crescida, o meu cabelo já se arrasta pelo chão, e os meus seios já estão pendentes e o meu nome é Sirá”.
Como todas estas páginas se organizam em forma de almanaque, temos a seguir uma informação para quem vivia naqueles trópicos: o Sr. General Henrique Dias de Carvalho era da opinião que se devia tomar um cálice de conhaque antes de se sair de casa para equilibrar o interior do corpo com o calor exterior.
Segue-se uma elegia aos Balantas, é talvez o texto mais terno e de melhor organizada estrutura poética. Diz assim:
“O dia mais sombrio que enluta a alma dos mancebos Balantas é aquele em que são obrigados na idade dos seus 20 a 25 anos a irem ao centro dos bosques para serem circuncidados, a fim de entrarem na classe dos homens sérios pelo casamento. Oiçamos a voz de um blufo de Nhala que vai seguindo para o bosque sagrado: Ai dos meus! Sobreveio uma calamidade às terras de Nhala! Ah! Já declina o sol! Sinto uma coisa que me consterna imenso. Ai! Já declina o sol! Sigo com os meus companheiros o caminho da floresta. Ah! Já declina o sol! Ai, meu pai! Esta lembrança entristece-me muito! Ah! Já declina o sol! E depois enumera o nome de vários mancebos que o acompanham neste caminhar para a floresta. E termina dizendo: Não resta dúvida que me levam à floresta! Ah! Já declina o sol!”
O dicionário feito em Bolama vai entusiasmar todos aqueles que estudam línguas étnicas comparadas. O que este autor desconhecido fez foi listar termos em português, em Mandinga, em Manjaco da Costa de Baixo e Pexixe e língua Papel. O assunto interessará particularmente a estes filólogos mas talvez os historiadores se interessem na razão da escolha dos termos que este autor desconhecido selecionou. Como é óbvio, não houve acaso nas palavras consideradas mais relevantes: pataco, peso, shilling, laranja, panela, vai buscar, cedo, pela manhã, além, noite, garrafa, casa, açúcar, café, pão, vinho, carne, carneiros, vender, salgado, seco, chuva, bom dia, sem álcool. E não se incomoda mais o leitor com estas curiosidades de alguém que vai ficar eternamente desconhecido, que pisou a Guiné e esteve atento a provérbios, a poesia, registou conselhos e pretendeu fazer um dicionário. Não se perca de vista que por essa época o padre Marcelino Marques de Barros, natural da Guiné, onde foi seu vigário-geral, sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, produziu o primeiro dicionário de crioulo guineense, ficará por saber até que ponto este autor desconhecido não terá sido influenciado pelo primeiro grande mestre da cultura guineense.
Nota do editor
Último poste da série de 24 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (159): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Na chamada secção dos Reservados o investigador deve estar preparado para surpresas e industriado pela paciência, pois nem tudo o que cai na rede é peixe. No caso vertente era peixe e do graúdo, ainda que com destinatários bem direcionados. Estas Curiosidades de um Africanista denotam um homem profundamente interessado na diversidade cultural, no conhecimento das tradições, nos provérbios, no registo de recomendações de índole prática. Fica-nos a incógnita se este autor desconhecido conheceu um cientista guineense de grande valor, o padre Marcelino Marques de Barros, que se dedicava a matérias afins. Pouco importa que esta questão fique definitivamente sem resposta, está aqui um manjar de príncipe, quem quiser dirija-se à Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Um abraço do
Mário
Um manjar de príncipe para etnógrafos e estudiosos da linguística
Beja Santos
Nos Reservados da Sociedade de Geografia consta um documento intitulado “Curiosidades de um Africanista”, apresentado como caderno sobre o crioulo de Cabo Verde, Guiné e Sul de Angola, um apanhado de termos de crioulo e português, poemas e orações em crioulo, provavelmente obra elaborada ainda no século XIX e publicado no início do século XX.
Seja-se etnógrafo ou filólogo, lê-se este conjunto de registos, de autor desconhecido, com imensíssimo prazer, foi alguém que viajou e teve a pertinência, a imensa curiosidade em registar uma imensidade de manifestações culturais, tudo apresentado numa forma de almanaque, como se sintetiza.
Aparece o crioulo da ilha Brava, ele registou a lamentação de uma viúva, do crioulo de Santo Antão aparece-nos um provérbio: Quem quiser trabalhar que trabalhe, que eu não estou para destemperar o meu corpo; mais adiante temos uma tradição oral do século XVIII, A confissão por um canudo.
Se é verdade que há apontamentos sobre o manatuto (Timor), Cabo Verde e Sul de Angola, a Guiné tem a fatia do leão. Logo a poesia Mandinga, escreveu o seu autor:
“Um dia lembrou-se uma serpente de se transformar num elegante mancebo e foi pedir a mão de uma donzela que teimava em não casar se não com aquele a quem a natureza dispensasse a fatal necessidade de dejecções fáceis e das secreções dos rins; feito o exame, obteve a noiva que levou para sua casa, mas de improviso as caravanas que iam passando ouvem uma voz que se parecia com a de um náufrago à beira-mar: Ó da caravana, ó da caravana! Digam a meus pais que o homem que me deixaram em casamento transformou-se numa serpente que me traz ligada nas suas roscas, não sei se me esmagará, não sei se me devorará”.
Nessa mesma página, o autor anota recomendações para o desembarque:
“Sempre que se desembarque em qualquer ponto em África, deve-se tomar uma cápsula de quinino antes do desembarque, embora a viagem seja de um porto africano para outro. Não tendo cápsulas, divide uma mortalha de cigarro em duas partes, deita-lhe o quinino, enrola as quatro pontas. Em qualquer dos casos, bebe água para facilitar que a cápsula passe para o estômago”.
Este autor desconhecido esteve atento à poesia Biafada, e deixa-nos um curioso registo:
“No tempo de uma horrorosa fome, uma pequena deu a seu irmãozinho uns feijões para o acalentar; chega a mãe, que se enfurece tanto que a pequena foge e vai esconder-se no tronco de uma árvore que ensombra uma linda fonte. Todos os que vinham do povoado buscar água ouviam esta voz inocente, saudosa e de uma feição primitiva: o que desperta os ecos desta fonte aceita o recado que lhe dou. Dizei a minha mãe que foi por causa de uns feijões que dei ao meu irmãozinho que vivo metida neste poilão há tanto tempo que já estou muito crescida, o meu cabelo já se arrasta pelo chão, e os meus seios já estão pendentes e o meu nome é Sirá”.
Como todas estas páginas se organizam em forma de almanaque, temos a seguir uma informação para quem vivia naqueles trópicos: o Sr. General Henrique Dias de Carvalho era da opinião que se devia tomar um cálice de conhaque antes de se sair de casa para equilibrar o interior do corpo com o calor exterior.
Segue-se uma elegia aos Balantas, é talvez o texto mais terno e de melhor organizada estrutura poética. Diz assim:
“O dia mais sombrio que enluta a alma dos mancebos Balantas é aquele em que são obrigados na idade dos seus 20 a 25 anos a irem ao centro dos bosques para serem circuncidados, a fim de entrarem na classe dos homens sérios pelo casamento. Oiçamos a voz de um blufo de Nhala que vai seguindo para o bosque sagrado: Ai dos meus! Sobreveio uma calamidade às terras de Nhala! Ah! Já declina o sol! Sinto uma coisa que me consterna imenso. Ai! Já declina o sol! Sigo com os meus companheiros o caminho da floresta. Ah! Já declina o sol! Ai, meu pai! Esta lembrança entristece-me muito! Ah! Já declina o sol! E depois enumera o nome de vários mancebos que o acompanham neste caminhar para a floresta. E termina dizendo: Não resta dúvida que me levam à floresta! Ah! Já declina o sol!”
O dicionário feito em Bolama vai entusiasmar todos aqueles que estudam línguas étnicas comparadas. O que este autor desconhecido fez foi listar termos em português, em Mandinga, em Manjaco da Costa de Baixo e Pexixe e língua Papel. O assunto interessará particularmente a estes filólogos mas talvez os historiadores se interessem na razão da escolha dos termos que este autor desconhecido selecionou. Como é óbvio, não houve acaso nas palavras consideradas mais relevantes: pataco, peso, shilling, laranja, panela, vai buscar, cedo, pela manhã, além, noite, garrafa, casa, açúcar, café, pão, vinho, carne, carneiros, vender, salgado, seco, chuva, bom dia, sem álcool. E não se incomoda mais o leitor com estas curiosidades de alguém que vai ficar eternamente desconhecido, que pisou a Guiné e esteve atento a provérbios, a poesia, registou conselhos e pretendeu fazer um dicionário. Não se perca de vista que por essa época o padre Marcelino Marques de Barros, natural da Guiné, onde foi seu vigário-geral, sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, produziu o primeiro dicionário de crioulo guineense, ficará por saber até que ponto este autor desconhecido não terá sido influenciado pelo primeiro grande mestre da cultura guineense.
Cartão-postal da primeira igreja de Bolama, cerca de década de 1900
Fachada da Igreja atual de Bolama em 2017
____________Nota do editor
Último poste da série de 24 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (159): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)
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