Numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”
Uma cena que fez tremer o meu amigo Otílio
Comecemos pelo princípio de uma história a que tive oportunidade em assistir. Recém chegado à Guiné, envergando o rótulo de “piriquito”, eis a malta a caminho do centro nefrálgico da cidade de Bissau. Na altura, creio, que o meu companheiro de aventura era o camarada ranger Ramos, um rapaz de Cabo Verde e cuja façanha por ele protagonizada um dia aqui já comentei.
Relembro, só num curto atalho de foice, que o Ramos, um dos meus camaradas nas instalações do QG, o Biafra como era apelidado pela malta, foi um rapaz que a certa altura rumou para o PAIGC e que após a Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974, regressou a Bissau e logicamente ao seu torrão sagrado.
Passeávamos pela “baixa” de Bissau, neste caso nas proximidades do imenso Oceano, sendo que ali por perto se localizava o cais de Pindjiguiti, local onde se concentravam alguns dos muitos cafés e cervejarias, quando a dada altura nos deparámos com uma enorme algazarra.
Um soldado comando que estava sentado numa das mesas dessas esplanadas, travou-se de razões com o empregado, um rapaz de cor, e a zanga resvalou para o torto, tendo o fim da cena terminado com cadeiras e mesas pelo ar e de vidros partidos, de entre o emaranhado pugilato por nós observado.
Nós, com as divisas ainda luzidias, assistimos impávidos e seremos ao acontecimento que meteu a PM, a ida do soldado comando, já cacimbado devido ao tempo de guerra e de tanta porrada travada nos matagais da Guiné, para o posto policial militar num dos jipes da força da ordem, onde terá sido depois interrogado e mandado embora, penso eu.
Sei que a cena ficou-me na memória e que no final da minha comissão, reduzida face ao histórico acontecimento de Abril, me vi envolvido numa situação parecida como aquela que tinha visualizado aquando da minha chegada à Guiné.
Numa tarde e noite de copos predispus-me a visitar o meu grande amigo Otílio Costa Guerreiro, meu companheiro dos bancos da Escola Industrial e Comercial de Beja, um rapaz que estava sediado em Bissau como elemento da Marinha Portuguesa e desafiei-o para uma visita à casa das ostras.
Claro que o Otílio, meu camarada da boémia nas noites de Beja, não se fez rogado e caminhámos rumo ao objetivo previamente traçado. Começámos nas ostras, seguiram-se outras viagens de estroinice e terminámos já noite dentro numa marisqueira a saborear o famoso camarão tigre grelhado.
Escusado será dizer que a embriaguez resvalou para uma ocorrência de pancadaria que fez tremer o meu camarada Otílio. Sei que o empregado, rapaz de cor, ter-me-á mandado uma “boca” que não suou bem aos meus tímpanos e a partir dali deu-se um grande desaguisado.
Lembro-me que em princípio a discussão fora apenas entre os dois, só que o evoluir da agudizada conversa resvalou para o ajuntamento de mais dois ou três amigos do meu rival, sendo que as minhas forças físicas e mentais se tornaram então ferozes perante a quantidade de álcool já ingerido.
Não me importou o número de sujeitos com os quais lutei, sei que saquei do cinturão, enfrentei com audácia os “adversários”, descarreguei umas fortes cinturadas nas costas dos “inimigos”, os rapazes perante a minha agilidade não desarmaram e deram-me de facto luta à séria.
O meu amigo Otílio entrou em pânico, não estava à espera do sucedido e nem tão-pouco conhecia os meandros da “postura” guerrilheira, quer ela fosse no mato, quer ela mourejasse na cidade e só me pedia para ter calma. Eu, qual desenfreado leão à solta, não parava o combate e nem me acomodei diante daqueles rapazolas que me terão tirado do sério.
Recordo ouvir pequenas provocações durante a ocorrência, sendo uma delas do tipo: “o gajo é maluco e é ranger, olhem a placa no ombro que diz operações especiais!”. Tudo dito num português atabalhoado. Fixei a finalidade do palavreado.
Mas não estava em causa a especialidade, fosse ela qual fosse, todas me mereceram respeito, em causa esteve a forma agreste como fora tratado como cliente a que acresce o efeito da bebida já ingerida e que era já muita.
Tudo porém acalmou e no final pagámos a despesa, os rapazes desobstruíram a nossa saída, aliás, decidiram rumar, quiçá envergonhadamente, aos seus poisos, ficando nos registos que nessa luta deveras titânica não houve vencidos nem vencedores, mas sim um jovem militar que sozinho conseguiu dominar uma situação que bem poderia ter resvalado para males bem piores.
Ainda hoje Otílio comenta, amiúde, esse acontecimento onde diz “que dentro daquela marisqueira poder-nos-iam ter matado”. Eu, conscientemente, respondo: “Matado? Não! Lembra-te “quem tem cu tem medo” e naquela situação prevaleceu o meu ar cacimbado e o arrojo como enfrentei o inimigo a exemplo, aliás, como a ocorrência observada no início da minha estadia na Guiné.
A cena que relato numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”, passou-se quando já aguardava transporte que me enviasse de regresso a Lisboa.
Para trás ficaram imensas histórias que são hoje meras lembranças “encaixotadas” numa prateleira já impregnada de corucho, mas que reúne um rol de acontecimentos numa Guiné onde me foi ofertada a possibilidade de conhecer a guerra e a paz.
Num profícuo apronto final sobre o moral de uma história, história esta incentivada com um post de Luís Graça no nosso blogue acerca de uma cena onde a pancada imperou, remeto-vos camaradas para os paradigmas de uma guerra que trouxe dissabores de diversa ordem.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS
do BART 6523
Mini-guião de
colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 DE
MAIO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19761: Estórias
avulsas (95): O meu atribulado começo de comissão: eu, alguns homens e três
viaturas carregadas de géneros alimentícios, desembarcados no Xime, e deixados
para trás, com destino ao Saltinho (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701,
Saltinho, 1970/72)
3 comentários:
Algumas observações destes relatos que eram frequentes mesmo entre os nossos militares, a pancadaria entre os varios ramos das FAP, por acaso nunca assisti a uma única, e passei tanto tempo em Bissau, naturalmente andava pelo Pilão, onde aí a porrada era outra.
Esses empregados 'de cor' queres dizer eram guineenses, pretos? não conheço essa raça de homens de cor, parece que temos complexos em falar de brancos e pretos.
Essas guerrilhas foram já no pós 25A, acho eu?
Não havia as marisqueiras e camarão tigre grelhado, eram só ostras e camarão, nos cafés.
Pergunto mais uma vez pelo Azevedo, comandante do Pelotao de Morteiros em Nova Lamego, nos anos de 1967-68, há por aí algumas fotos minhas com ele.
No meu tempo o Biafra só tinha casernas para oficiais milicianos, muita coisa mudou para os lados de Santa Luzia.
Relembro com saudade tantas coisas, quando ainda era uma criança, nessa terra gravada no nosso coração para sempre.
Virgilio Teixeira
Zé Saúde
Não me lembro, no meu tempo, dos muitos cafés e cervejarias no Cais de Pidjiguiti.
De certo, passado uma tarde e até horas da noite no bioxene, daria em molhada e mocada.
Parece que a placa RANGER não serviu pra muito, não fora o cinturão surgir a talho de foice as coisas complicavam-se.
Admira-me andarem fardados nessas andanças, assim como os djubis meterem-se com os
clientes ao ponto de haver porrada.
Bons tempos aqueles, o mais não seja pela nossa idade e das travessas de ostras, que camarão-tigre grelhado nunca lhe pus a vista em cima.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Zé, obrigado por partilhares connosco essa história... Às vezes, acabam mal, muito mal, as "bocas foleiras" e a resposta às provocações...
Recordo-me, ainda há muito poucos anos, no Cais do Sodré, na rua "Cor de Rosa", a Rua Nova do Carbalho, um amigo do ,meu filho, a viver na Hungria, morreu de uma "naifada"... Um bando de desordeiros, com o "bioxene", provocou uma das miúdas,que estavam com ele... Ele levantou-se da cadeira, para cair logo fulminado com uma "naifa" no coração... Chegou já morto ao hospital...
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