Parte V - De Catedi (dia 15) a Indornal (dia, 16)
Parte IV - De Salicocum (dia 14,) a Catedi (dia 15, pernoita)
Parte III - Menino Cundá (dia 13, pernoita) a Salicocum (dia 14, pernoita)
Parte I - De Geba, dia 11 de março de 1883, a Sede Cundá (dia 12, pernoita)
Percurso seguido pelo alferes Francisco Marques Geraldes entre Geba e o Indornal, de 11 a 16 de março de 1883 (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)
1. Comentários (ao poste P19905), de Cherno Baldé, Armando Tavares da Silva e Mário Beja Santos (*):
(i) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando da Silva,
No dia 17 do corrente fiz um comentário num Poste de Luís Graça sobre a região de Ganadu/Joladu e do seu primeiro régulo Fula, Mbucu ou Umbucu, contemporâneo do ten Marques Geraldes, nos seguintes termos:
Luís,
O Régulo de Joladu que é o mesmo que dizer Ganadu, seria da linhagem do régulo M'bucu ou Umbucu que, em 1886, ofereceu a logística e o serviço dos seus homens para apoiar o ten Marques Geraldes na Batalha de Fanca (Sancorlã) contra os homens de Mussa Molo, rei de Fuladu, com a capital em N'dorna ou Indornal (grafia portuguesa), tendo mudado mais tarde para Hamdalaye, localidades situadas entre o rio Gambia e o rio Casamansa.
Mbucu ou Umbucu era de ascendência Fula-Forro e por isso as suas relações com o Mussa Molo, rei de Fuladu, de ascendência Fula-preto, não eram muito amistosas pelo que a sua aliança com a administração portuguesa através do presídio de Geba era uma forma subtil de recusar a vassalagem ao Mussa Molo, rei do Fuladu que tinha destronado o seu tio, Bacar Demba (vulgo Dembel). De notar que o mesmo (estes conflitos de poder) não acontecia na época de Alfa Molo, pai de Mussa Molo e fundador do reino, que respeitava muito e permitia uma larga autonomia aos Fulas-forros a quem ele próprio tinha entregado a gestão de vastos territórios, muitos dos quais ainda por conquistar às mãos dos mandingas / soninques como era o caso de Joladu.
Abraços,
Cherno Baldé
17 de junho de 2019 às 17:31
Observando atentamente o conteúdo do Poste de hoje e a descrição do percurso seguido até Ndorna (Indornal), a capital do império de Fuladu ou Firdu (ver parágrafo seguinte).
"Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá".
Deve ter havido algum mal entendido nesta descrição, pois as localidades de Saré-Minine (Menino-Cunda), Banco e Solucocum (Salicocum) que ainda existem e habitadas, estão localizadas na margem direita do rio Farim e não na margem esquerda como esta aqui descrito. Com a Convenção Luso-Francesa de 1886, Solucocum estaria mesmo junto à linha da fronteira e perto de Sitato, entre as localidades de Cuntima e Cambaju.
É muito interessante notar que alguns meses após a passagem do ten Marques Geraldes ao Indornal, mais precisamente a 3 de Novembro de 1883, o mesmo Mussa Molo assina um tratado de amizade e de protecção com representantes da França presentes no presídio de Sedio (Selho) e deste modo garantir o apoio das forças francesas para destronar o seu tio (Bacar Demba) e afastar o irmão Dicory Cumba, também pretendente ao trono. Mas, daí para a frente estaria em guerra permanente com os régulos Fulas-Forros de Sancorlã, Joladu e de Gabu/Forreá que, aliando-se aos portugueses em Farim e Geba, não reconheciam a autoridade de Mussa Molo sobre esses territórios.
Estou a terminar um texto sobre esta parte menos conhecida da história da Guiné e de Casamança, conhecida como o reino de Fuladu, ou a tentativa da construção do último império na África ocidental.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 13:29
PS - Há uma grande probabilidade de a designação de Ganadu ter a sua origem a partir da localidade de Saré-Gana, onde residia o régulo Mbucu, aliado dos portugueses, em detrimento de Joladu, a antiga designação do regulado
(ii) Armando Tavares da Silva:
Caro amigo Cherno Baldé,
Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.
As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.
Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.
“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.
A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.
Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?
Com um abraço amigo,
Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06
(iii) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando,
Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.
Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".
A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.
Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.
Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.
Um forte abraço,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05
(iii) Mário Beja Santos
Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.
Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html
Um abraço aos dois, Mário Beja Santos
21 de junho de 2019 às 12:43
_________________
Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.
As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.
Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.
“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.
A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.
Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?
Com um abraço amigo,
Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06
(iii) Cherno Baldé:
Caro amigo Armando,
Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.
Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".
A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.
Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.
Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.
Um forte abraço,
Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05
(iii) Mário Beja Santos
Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.
Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html
Um abraço aos dois, Mário Beja Santos
21 de junho de 2019 às 12:43
_________________
Notas do editor:
(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)
(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné
(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,
Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.
Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.
Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.
Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.
Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.
Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.
Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.
Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.
Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.
Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.
Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.
No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.
O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.
Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.
No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.
O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.
No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.
Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,
Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.
Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.
Deus guarde a vossa excelência.
(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."
(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)
(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné
(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,
Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.
Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.
Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.
Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.
Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.
Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.
Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.
Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.
Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.
Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.
Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.
No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.
O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.
Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.
No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.
O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.
No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.
Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,
Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.
Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.
Deus guarde a vossa excelência.
(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."
1 comentário:
Caros amigos,
Com a permissao dos Editores, queria corrigir um erro que, provavelmente, eu proprio ajudei a introduzir, seja nos meus textos anteriores, seja nos comentarios posteriores a que tenho obrigaçao de tentar esclarecer.
Assim, por um lado, o Bacar Demba era irmao mais novo do Alfa Molo Baldé (fundador do reino) e Tio de Mussa Molo. Por outro lado, e conforme esta nos textos apresentados, o Dansa (Deusa) seria Filho do Bacar Demba (vulgo Dembel) a quem os notaveis, de acordo com as regras tradicionais de sucessao, acharam por bem entregar o reino apos a morte de Alfa Molo.
Mas, o titulo de régulo dado ao Bacar Demba (Dembel) pelos administradores portugueses na realidade nao corresponderia ao seu verdadeiro estatuto. O mais correcto seria a designaçao de rei, pois ele era o chefe de todos os outros régulos das provincias que foram entregues a homens de confiança e detentores de poderes e recursos para terminar a conquista e manter a nova ordem instalada como era o caso das familias de Mbucu (Ganadu), Buran-Jame (Sancola), Bacar Guidali (Gabu/Forrea) entre outros e num territorio que se estendia desde o rio Gambia até ao rio Corubal.
De notar que, apos a derrota dos Soninques pagaos de Gabu, a distribuiçao das provincias ou régulados foi feita de modo a tentar conciliar as possiveis divergencias entre Fulas-forros, da antiga linhagem nobre, e Fulas-Pretos ja na qualidade de homens livres, que surgiram depois.
O Alfa Molo morreu e foi enterrado na localidade de Dandum (15 km a Nordeste de Bafata, na antiga estrada para Jabicunda-Contuboel), respeitando o seu desejo de sempre e deixando como legado um vasto territorio que seria mais tarde repartido entre as potencias coloniais, fazendo parte dos actuais territorios do Senegal, Guiné-Conacry e a Guiné-Bissau.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
Enviar um comentário