quarta-feira, 30 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Consta que a época estival traz lazeira e menor apetência para a escrita.
Faço uma curta remessa de colaboração avulsa, começo pela Guiné, depois pela poesia anticolonial em livro descoberto na Feira da Ladra, depois pela exaltação do romancista Mickey Spillane e o seu portentoso detetive Mike Hammer, mostrarei fotografias tiradas em viagens por Inglaterra, e talvez outras coisas mais que andam por aqui dispersas e que talvez vos interessem em tempos de puro desfastio.
Oxalá não me engane.

Um abraço do
Mário


Quem quer que tenha captado este fulgurante fim de dia está de parabéns, e até há amanheceres muito semelhantes, são momentos genesíacos e todos nós tivemos o privilégio de assistir ao encantatório da natureza a apagar-se de rompante, como se aquela luz fosse dispendiosa, rara e mágica, pondo em comunhão o céu e a terra.


Biblioteca em férias (1)

Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné

Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala em Francisco António Marques Geraldes, que começou a sua carreira militar na Guiné como comandante do presídio de Geba, nos anos 80 do século XIX. O nosso prezado camarada José Martins, num texto publicado no nosso blogue em 23 de Fevereiro de 2013 (Guiné 63/74 - P11143: Para que a memória não se perca (1): Histórias da dobragem do século XIX para o século XX (José Martins)) refere as operações de pacificação no Geba e refere o desempenho de Marques Geraldes. Eu próprio usei o seu nome, a propósito de umas páginas que encontrei no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e que muito me comoveram, a ponto de parcialmente terem sido reproduzidas também no nosso blogue. O que me impressionou na época foi o destemor e o elevado sentido do dever deste brioso militar português.

No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.

Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá, queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.

Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.

Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho, também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.

No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.

Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança. A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.

No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.

Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,

Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.

Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.

Deus guarde a vossa excelência.

Fotografia constante no álbum “José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo de guerra português, campanhas de 1907-1908”, organizado por Mário Matos e Lemos

A fortaleza de São José de Amura, Bissau, gravura do início do século XIX

4 comentários:

José Marcelino Martins disse...

O exemplar que adquiri, é duma edição de apenas 500 exemplares.

Mas vale a pena.

Luís Graça disse...

Mário, parabéns pela tua iniciativa... As férias são isso mesmo: calaceira!... O blogue ressente-se em agosto. Haja uns bravos grã-tabanqueiros como tu, com apetite voraz pela leitura e pela escritra, para alimentar este "monstro" que nós criámos e que tem mais de 6 mil visualizações... por dia, cerca de 200 mil por mês...

Boas férias, se for caso disso!... Eu vou dar (à) sol(a), à minha perna nova!... Um alfabravo!

LG

Cherno Balde disse...

Caro amigo MBS,

Na minha serie de memorias, em 27/03/12 com o titulo: "Cherno Fanca, Cherno Comando alias Cherno Amadu...As peripecias de um jovem fula nos labirintos da Guerra colonial", ja falei do Cap. Marques Geraldes cuja legenda, juntamente com a do Sousa Lage, manteve-se viva durante muito tempo no meio das populacoes fulas do Nordeste guinense.

O historiador Rene Pelissier no seu livro sobre a historia da Guine (...) faz referencia a estes primeiros embates, de resto pouco importantes, entre fulas e portugueses na Senegambia, mostrando muita capacidade de analise e de discernimento para uma pessoa que nunca tinha pisado o chao Guineense, relativamente aos toponimos e nomes dos protagonistas da epoca.

Assim, sabemos que o chefe do grupo que atacou S. Belchior nao eh Deusa, como esta escrito, mas Dansa. A localidade senegalesa referida com Selho eh Sedio (hoje departmento da regiao de Ziguinchor).

Tambem sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmaos de Alfa Molo, rei de
Firdu que fez a Guerra aos Soninques/mandingas de Gabu e em consequencia disso eram serios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarao frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidarios sao destrocados M. Geraldes tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados).

Com um abraco amigo

Mário Beja Santos disse...

Meu Estimado Cherno Baldé, Peço desculpa de só hoje responder às tuas amáveis observações, como se diz na Guiné, estive em viagem, regresso ao trabalho. Sobre Marques Geraldes, como observas, muito há a dizer. Encontrei trabalhos dele na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, género de memórias. Talvez valha a pena um dia dar-lhe aqui espaço, foi um militar brioso e que teve uma relação impecável com a população guineense. Devíamos pensar em usar o nosso blogue para cimentarmos a nossa história comum, a que consta da narrativa oral e da documentação numerosa e tantas vezes valiosa.
Aproveito para te pedir, dentro dos teus conhecimentos, informações sobre os nomes dos regulados na transição do século XIX para o século XX. Se olharmos para os mapas, na área correspondente ao Oio e Cuor encontramos o Oio mais reduzido e em vez de Cuor encontramos Gufió. Não se percebem os contornos claros de Joladu e Ganadu, no entanto já existiam. A outra informação que gostaria de te pedir é se tens elementos sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, seguramente que estava no Gambiel, procurei por todos os sítios e só encontrei vestígios de grandes armazéns em pedra em Aldeia do Cuor, perto do Geba estreito. Renovo a minha oferta de me encontrares portador para os livros que eu gostaria muito de te oferecer. Um abraço do Mário