sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13453: Notas de leitura (618): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,

Num país onde as memórias políticas são frugais, onde há uma percetível sensação de que os políticos do passado se refugiaram no silêncio, este punhado de reflexões é de primordial importância enquanto olhar sobre as décadas de 1980 e 1990, é um olhar panorâmico sobre a ascensão militar e a queda da importância da direção política.

Nesta aceção, as memórias de Delfim da Silva iluminam os dirigentes políticos do tempo e deixam claro que eram uma pálida herança para pôr em prática o sonho de Amílcar Cabral, o autor desvela expetativas em torno de Chico Mendes e Filinto Barros, por exemplo e dá-se como completamente provado de que Cabral não teve titulares à altura.

Depois, foi o ajuste de contas e a edificação do golpismo permanente.
Livro bem documentado e que mostra a coragem de Delfim da Silva. Aqui e acolá, infelizmente, volta aos estafados chavões como o assassinato de Amílcar Cabral perpetrado por Momo Touré e companhia, o que raia o inconcebível, percebe-se que a matéria do assassinato ainda é ferro em brasa.

Um abraço do
Mário


Fernando Delfim da Silva: Memórias e considerações de um político guineense (2)

Beja Santos

“Guiné-Bissau, Páginas de história política, rumos da democracia”, por Fernando Delfim da Silva, Firquidja Editora, Bissau, 2003, é um relato indispensável de um dos protagonistas proeminentes que trabalharam à volta de Nino Vieira no chamado processo da transição democrática. Em jeito confessional, aquele que foi por duas vezes ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau narra o seu grau de confiança e entusiasmo no referido processo de transição.

Depois das eleições de 1994, pareceu-lhe que o horizonte político guineense estava a conhecer o desanuviamento. Para trás, tinham ficado o golpe de 1980 e o caso Paulo Correia que terminou com os fuzilamentos de julho de 1986 que se saldaram no triunfo da componente militar sobre a componente política do PAIGC, a partir de 1980 os militares e a segurança do Estado assenhorearam-se da Guiné. Daí o modo exaustivo como ele analisa esses acontecimentos, profundamente crítico. Nino Vieira, de quem ele se tornará indefetível colaborador a partir de 1990, é acusado de conspirador, de ser déspota e fator de divisão do PAIGC. É uma crítica demolidora:

“Entre o golpe de Estado de 1980 e os fuzilamentos de 1986, a Guiné-Bissau tinha conseguido completamente descapitalizar-se no plano diplomático. Internamente, o país tinha entrado na espiral negativa de golpes sucessivamente anunciados. Externamente, o presidente Nino não deixou de apoiar todos os golpes militares que ocorreram na nossa sub-região porque, afinal, não sabia distanciar-se deles sem se deslegitimar. A diferença política com Cabo Verde só se foi acentuando. Aliás, não deviam ser muitos os que ainda acreditavam subsistir qualquer laço entre o regime político guineense e o reivindicado legado político comum de Amílcar Cabral. Seguramente, só ficou uma imagem de deceção, de desilusão, enfim, do drama de uma guerra civil fria já instalada entre os próprios combatentes da liberdade de Pátria”.

Nino cedo aspirou ao poder absoluto: em 1982, deu um sinal de semipresidencialismo, era criado o cargo de primeiro-ministro, mas em 1984 o Presidente do Conselho da Revolução passou a ser primeiro-ministro, Victor Saúde Maria foi varrido da cena política. Nasceu depois a “ameaça tribalista”, o perigo balanta, não identificado mas rapidamente difundido. O planeamento de Estado falhou, no mesmo ano dos fuzilamentos de Paulo Correia, Viriato Pã e outros, a Guiné desvalorizou o peso e com o apoio do FMI arrancou a liberalização económica. Funda-se o Movimento Bâ-fatá, a oposição torna-se realidade.

É neste contexto que Delfim da Silva especula à volta de uma figura que ele classifica como profeta: o artista José Carlos Schwarz, alguém que se desilude rapidamente depois da apoteose da independência nacional, apercebeu-se que Luís Cabral não tinha timbre de líder e que Filinto Barros não conseguia descolar para a liderança. O artista previu a tragédia nacional, denunciou a rápida degradação política do “combatente da liberdade da pátria”.

Mais adiante, Delfim da Silva refere uma composição de José Carlos Schwarz dedicada aos combatentes, uma recordação a Djon Farim, é muito claro: “Sabes, as dificuldades não acabam com o silêncio das armas. Aparecem sob outra forma como o rasgar da terra dos radis e dos tratores ou com o matraquear pesado das primeiras máquinas que se montam nas fábricas. Não é mais que uma crise de dentição que logo passará, posto ainda que dê muito trabalho”. Esta esperança não se concretizou.

Delfim da Silva refere ainda as figuras de Francisco Mendes (Chico Té), então primeiro-ministro (ou comissário principal) precocemente falecido num desastre na região de Bafatá, em julho de 1978. A sua geração voltou a interrogar-se sobre a degradação que atingira o sistema político, dominado pelo laxismo e a incompetência. Salum Sanhá, um militante do PAIGC, dias depois da morte de Chico Mendes comentou: “Chico Té morreu, PAIGC acabou”.

Estavam criadas, observa Delfim da Silva, as condições para o golpe militar de novembro de 1980, a liderança política colapsara, os militares já rilhavam os dentes. Outro caso apontado é o da morte do major Robalo de Pina que andara colado ao golpe de Estado de 14 de novembro de 1980. Delfim da Silva sente que a confrontação entre fações atingira o seu auge. Em 1990, o apoio a Nino mudara de natureza. Dez anos antes, quem apoiara Nino mandara para as prisões quadros valorosos, outros partiram para o exílio forçado. Nesse período, Delfim irá estudar filosofia na URSS e regressará para participar no processo político ao lado de Nino.

Ao escrever este punhado de reflexões em 2003, Delfim da Silva confessa as ilusões em que viveu acreditando que havia amadurecimento para a transição democrática, esquecera que por detrás do golpe de novembro de 1980 estava uma ascensão militar ao serviço do poder cesarista do dia, neste caso de um Nino que distribuía prebendas no seu círculo de apoios.

Mudando completamente de agulha, Delfim da Silva analisa com os números o comportamento eleitoral dos guineenses e avança com um novo modelo de círculo nacional, círculos regionais e círculos eleitorais locais, matéria que não tem sentido ser apreciada aqui.

De grande utilidade revela-se a grelha de análise que ele faz sobre o sistema político-partidário da época. Começa pelo PAIGC e afere do desastre eleitoral de 1999. O PAIGC refundara-se com o golpe de Estado de novembro de 1980, ao longo dos anos, seguramente com o apoio das etnias Fula e Mandinga, Nino foi montando a psicose do “perigo Balanta”, começou a ser visto como um partido que já não abrangia todas as etnias, o que leva a explicar a ascensão do PRS – Partido da Renovação Social, de Koumba Yalá. No termo da guerra civil, o PRS tornou-se num vencedor minoritário, acima do Movimento Bâ-Fatá. Inicialmente considerado um partido Balanta, a sua geografia eleitoral expandiu-se. Em 2003, o contestado Koumba Yalá fora forçado a abandonar a Presidência da República, punha-se o problema da sucessão de liderança. Eram enormes as incógnitas sobre o futuro deste partido (como se sabe, Koumba irá manter-se na penumbra durante muito tempo, e será mesmo considerado um discreto apoiante dos autuais militares no poder.

O Movimento Bâ-Fatá fora a grande promessa na transição democrática, talvez por ter perdido importantes apoios na etnia Balanta, perdeu votos entre as eleições de 1994 e 1999. Na sua análise, Delfim da Silva acreditava que o partido estava longe do esgotamento político, tudo dependeria no futuro da capitalização de queixas das comunidades étnicas, Fula e Balanta. A análise do autor prossegue com outros partidos: União para a Mudança, o PDC de Vitor Mandinga, a FLING, a Frente Democrática Social, que contara inicialmente com Rafael Barbosa, o Partido Social Democrata, a União Nacional para o Desenvolvimento e Progresso, a Liga Guineense de Proteção Ecológica, o Partido Unido Social Democrata, o Fórum Cívico Guineense, o Partido Manifesto do Povo, a Aliança Socialista, o Partido da União Nacional.

Memórias de um responsável político que tece críticas implacáveis à era de Nino Vieira mas que, anos depois, quando Nino Vieira é novamente eleito presidente, voltará ao poder, como, mais tarde, será membro da governação dos militares golpistas.
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Nota o editor

Último poste da série de 28 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13439: Notas de leitura (617): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

É de relembrar que o Sr. Delfim da Silva era o embaixador da Guiné em Portugal durante a guerra civil de 98.
Apresentava-se na TV, quando era entrevistado, com fatos de refinado corte, uma pulseira de ouro ? em cada punho e uns "cachuços" nos dedos..entretanto..a população guineense...vivia e vive ..como todos sabemos..
Com a "queda" de Nino Vieira..refugiou-se em Dakar..

Sobre a democracia e respectivos rumos estamos conversados..amen.

C.Martins

Anónimo disse...

PS
Rectifico.. era o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné..mas estava em Portugal.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

Estes políticos guineenses desde Nino até ao seu chaufer não foi bem política que faziam.

Em vez de política devia chamar-se "intriga".

Só não caricaturo certos gestos e intrigas daquela gente do PAIGC nos anos 80, porque depois vim trabalhar para Portugal e Madeira e vi fazer as coisas mais sem vergonha a alguns ministros nossos, que qualquer régulo se envergonharia de fazer.

Amigo C. Martins, os "cachuchos" e pulseiras de oiro, também Nino teve um relógio de oiro como o "Sinhozinho Malta" e dizia ele nos comícios que foi a Soares da Costa que ofereceu.

Mas dizia que não era corrupção, e teve que aceitar por delicadeza.

C. Martins, aproveito sempre que posso para dizer que a nossa sem-vergonhice ultrapassa a guineense ou brasileira que eu vi ao vivo.

C. Martins desculpa ter usado o teu ponto de vista.