1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU
Camaradas,
A guerra tem contornos quiçá impensáveis. Na obra “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, dou conta de um antigo camarada, milícia local, de nome Jaló, que segundo o ex furriel miliciano, Amílcar Ramos, um velho amigo com quem partilhei a messe de sargentos em Nova Lamego, me elucidou sobre o fim de um homem que muito bem conhecemos.
Transmitiu-me o camarada Amílcar que em finais do século passado visitou Gabu e teve conhecimento profícuo que o Jaló era então mais um dos militar do PAIGC.
Ziguezagueou e sobrou-lhe a audácia para se salvar das amarras do passado.
Jaló, um milícia dúbio
Homem feito com o sistema
A sua imagem era sobejamente conhecida! Obeso, bonacheirão e com uma túnica normalmente branca, o Jaló era o homem típico da tabanca. Porém, a sua conduta pessoal diferenciava-o do restante pessoal com o qual quotidianamente convivíamos: era um homem dúbio, ambíguo, desfazia-se em sorrisos, em cobrar favores e na sua arte inigualável não perdia a oportunidade de tudo pedir. Era um convicto pedinchão!
O Jaló era demasiadamente conhecido no Quartel e no seio da população civil. As lérias do camarada africano enterneceriam o mais descuidado militar se porventura não meditasse de imediato no seu doce e embalador palavreado. Mostrava-se acolhedor, pronto a fazer favores e, de seguida, propunha como recompensa: cobrar alguns pesos ou uma dádiva em arroz.
Lembro as ocasiões, e foram muitas, em que o Jaló chegava à nossa beira com uma quantidade de moços atrás mendigando favores e depois lá vinha a súplica de uma alcova de arroz, alimentação preponderante da população para os rapazes transportarem para a sua tabanca! Claro que esse pedido não era em vão, havia uma recompensa para o velho milícia: a maior quantidade da dádiva era para ele. Não dava ponto sem nó.
O homem proclamava, amiúde, o seu dever cívico e militar para com a tropa branca. A sua mensagem passava fluidamente na população. O Jaló era reconhecido como odeus da tabanca. O seu dom de palavra impunha-se a gentes que viviam de paredes meias com a guerra. Não podia ouvir falar dos turras.
O mal da população passava pelas suas carências alimentares. O Jaló, vivaço, sabia as regras do jogo e jogava com pedras bases que puxavam ao equilíbrio. Dar para depois receber era a sua filosofia.
Como milícia, sempre assumido, o seu papel determinante era comandar um pequeno grupo que assegurava um posto avançado de segurança da tabanca durante a noite.
Sempre que me encontrava de serviço, como sargento dia, acontecia que durante a noite era-nos familiar as nossas rondas noturnas. Controlávamos as entradas das estradas de Bafatá e Piche, sendo que na tabanca que nos conduzia a Pirada o serviço era feito pelo grupo do Jaló. Um grupo onde se destacava a perseveração daquele militar nativo que se entregava de peito aberto em defesa do hino nacional português.
Não me recordo se alguma vez ouvi o seu atabalhoado som vocal pronunciar a portuguesa “heróis do mar, nobre povo…”. O Jaló, era moço que se ajeitava a tudo.
A guerra tem, contudo, contornos que disparam em diversas direções. As surpresas das suas decisões finais tocam na rama de deveres anteriormente levados à letra e, depois, desprezados.
Segundo informações do camarada Amílcar Ramos, ex furriel miliciano que no ano de 1999 visitou Gabu, o bom do Jaló, a tal figura vacilante que muito bem conheci em plena altura do conflito, após a independência foi, alegadamente, um dos primeiros a virar o bico ao prego: mudou-se para o PAIGC, alvorando-se, quem sabe, em guerrilheiro mor de um partido que lutou no terreno pela sua autodeterminação.
O Jaló, em meu entender, não enganava ninguém. Estudei-o ao pormenor e tracei-lhe o caminho do seu destino: morto ou vivo. VIVO terá gritado o bom do Jaló no preciso momento em que resignou às novas forças da ordem!
Confesso que fui seu amigo! Gostei sempre da ligeireza das suas presunções. Sobreviveu! Ah, grande herói.
As árvores, o mato e o arame farpado eram paisagens que o milícia Jaló muito bem conhecia
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
16 DE JULHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13406: Memórias de Gabú (José Saúde) (40): Libaneses!
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