Prezado Luís Graça:
Antes de mais, saúde, e votos de BOAS FÉRIAS.
Depois, para alimentar o Blogue durante as férias, e dar, até, oportunidade aos psicólogos, e etnólogos, ou especialistas em cultura africana, para divagarem sobre o assunto, tomo a liberdade de enviar um texto bastante longo que, se o entender conveniente, poderá inserir no Blogue.
Um abraço
Domingos Gonçalves
MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966)
- REPORTAGENS DA ÉPOCA
4 - A MORTE O FURRIEL MOREIRA
Novembro de 1966
Dia 1
Pouco passava das oito horas quando, com os meus homens, parti em direção a Binta.
É o adeus ao céu de Guidage... Aquilo a que chamamos estrada, mas que de facto não passa de um caminho estreito, simples picada feita de lama e buracos, está num estado miserável.
Mesmo assim, a viagem decorreu com normalidade.
Às onze horas já estávamos no local do destino.
Ao partir, senti pena da população de Guidage. Quando as viaturas estavam para arrancar para Binta juntou-se quase toda a gente junto à porta d’armas e, muitos deles, ficaram a chorar. E as lágrimas são uma coisa muito delicada e bonita, digna de admiração. Na hora da despedida, a população brindou-nos com aquilo que nós, os humanos, temos de mais precioso, ou seja, as lágrimas.
Em Bissau, no Hospital Militar, faleceu, doente, o Nansú Camarã. Foi evacuado de Guidage por duas vezes. Sofria de mal-estar geral e de um abatimento psicológico muito grande.
Vou contar a história da doença do rapaz, do combatente leal, esforçado, solidário e corajoso.
É a história do pássaro maldito.
***
A morte do furriel Moreira
O Nansú Camará, ou o furriel Moreira, como nós lhe chamávamos, era um negro de pele relativamente clara, alto e magro, pertencente à milícia local, que aprendi a admirar desde os primeiros dias da minha estada em Binta.
Chamávamos-lhe o furriel Moreira, alcunha de que gostava, e que terá recebido da boca de alguém que, por certo, lhe admirava a lealdade, a dedicação e o grande espírito de sacrifício. E ele gostava da alcunha. Sentia mesmo orgulho quando lhe chamavam furriel...
Regra geral os furriéis eram sempre brancos. Atribuir-lhe a categoria que só os brancos possuíam dava-lhe um estatuto diferente, fazia dele alguém muito especial e respeitável. Para ele, chamar-lhe furriel, nada tinha de ofensivo. Entendia a alcunha quase como uma distinção. Gostava mesmo de que o chamássemos assim, e ficava vaidoso e contente com um nome tão distinto.
Possuidor de uma admirável resistência física estava sempre pronto a auxiliar qualquer de nós, nas horas mais difíceis. Muitas vezes, quando regressávamos das operações, das patrulhas, ou das emboscadas, ele aproximava-se dos mais cansados e ajudava-os a transportar a arma, as munições, ou as granadas. Era, em tudo, um homem bom e generoso. Uma daquelas pessoas que nasceram para ser desinteressadamente solidárias e amigas.
Um dia, logo ao amanhecer, veio procurar-me muito aflito, expressando medo e angústia. Nos seus olhos meigos adivinhava-se um sofrimento enorme, ou visionava-se mesmo o limiar da morte. Trazia uma expressão dolorosa, onde se adivinhava qualquer coisa de transcendente, ao mesmo tempo terrível e grande. Naquele momento vi nele um homem que estava a chegar, vindo não da sua casa simples e pobre, mas de um mundo diferente e desconhecido. O Nansú que tinha ali em minha era já outro homem. Tudo nele se me afigurava estar alterado.
Ele estava diferente nos gestos, nas palavras, no aspecto e nas atitudes. Era um homem triste, tímido e distante, longe da realidade do nosso dia a dia, irremediavelmente perdido para a vida.
Por entre lágrimas e tremores conseguiu dizer-me:
- Alfero... Durante a noite, quando estava de sentinela, eu vi Irã.
Estas palavras saíam-lhe bem do fundo da alma, murmuradas com serenidade cadavérica e sinceridade profunda.
E eu perguntei-lhe:
- E quem é Irã? - Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. - Como te apareceu? Que foi que te disse?
Ele, receoso e triste, murmurou:
- Irã, é o mal. É um espírito negro e terrível. Só pode trazer-nos a morte. Agora sei que vou morrer. A vida para mim já terminou. Quem vir Irã não pode mais ficar aqui... Tem mesmo de morrer. Nas suas asas negras ele traz a mensagem do inferno. O meu futuro já não existe. Para mim tudo vai terminar muito depressa.
E tiveste medo, perguntei-lhe?
- Tive, respondeu-me. Mas não abandonei o posto nem a arma. Não fugi...
No seu rosto adivinhava-se qualquer coisa de mistério, uma amargura profunda, a tristeza de quem teve, naquela trágica noite, a visita de um anjo mau que lhe veio trazer a mensagem da morte, ou qualquer coisa bastante pior, indesejável para qualquer de nós, pobres mortais. ... E aquele rapaz já não seria mais o soldado corajoso, leal e destemido que sempre soubera ser. Aquela visão terrível, alucinante, traçara-lhe bruscamente o destino. Era a visão da morte.
Eu continuei:
- E como era Irã?
- Era, disse-me, uma espécie de pássaro negro, muito grande, que se manteve perto de mim, durante muito tempo, como que a dançar, em movimentos loucos e sucessivos, mas sempre fora da rede de arame farpado.
- E que te disse, perguntei-lhe?
E o Furriel Moreira, numa voz quase imperceptível, murmurou:
- Não me disse nada. Mas eu entendi tudo o que tinha para me dizer.
- E porque não disparaste, perguntei-lhe, uma rajada de G3, para o afugentar? Um bicho desses mata-se de imediato, sem qualquer receio.
Mas ele, com toda a seriedade, e com uma voz branda, nascida bem do fundo da sua alma amargurada, respondeu-me:
- Alfero! Tiro de espingarda não mata Irã. O deus do mal tem muita força e poder. Ninguém pode matar Irã.
Enquanto falávamos, todo ele tremia e transpirava. O suor escorria-lhe, em gotas enormes, pelas faces escuras, enquanto que do seu olhar meigo escapava um desespero triste profundo. E eu fui conversando com ele, durante bastante tempo, tentando retirar-lhe da mente aquela imagem tenebrosa que nem o deixava respirar. Mas foi tudo em vão. Aquela ideia sinistra dominava-lhe por completo a mente, apossara-se dele com tanta força, que iria ser muito difícil restituir-lhe o equilíbrio mental e a vontade de continuar a viver, e a ser pessoa. Estava dominado por uma alucinação terrível, que se apossou daquela mente rústica de uma forma indizível.
Depois, acompanhei-o ao refeitório da companhia e pedi que lhe dessem o pequeno-almoço, pensando que fosse a fome e a má nutrição a causar-lhe aquelas alucinações. Mas ele quase não comeu. Depois, retirou-se para casa. Uma casa simples, coberta de capim, como quase todas as casas que na Guiné se constróem. Retirou-se macambúzio, triste.
Durante a tarde mandei chamar o régulo da tabanca, - o Mamadu -, um homem já de bastante idade, muçulmano fervoroso e crente. Contei-lhe a história da visão que o Nansú tivera durante a noite, e perguntei-lhe:
- Quem é Irã? Que tipo de crença o povo tem e guarda nessa suposta divindade, ou anjo do mal?
E o régulo, discretamente, como que assustado com a história que lhe contara, lá me foi dizendo:
- Irã, é uma superstição. É uma crença antiga, pertencente às antigas religiões do nosso povo, na qual alguns de nós ainda acreditamos. É uma espécie de demónio, que só pode fazer mal às pessoas. Mas um bom muçulmano não pode acreditar em Irã, nem ter medo dele. Allah protege-nos contra os poderes do mal. Quem acreditar no nosso Deus está livre para sempre dos malefícios dessa crença. Mas, é verdade... Muitos de nós ainda acreditamos que Irã existe e domina este mundo obscuro, habitando algures, no coração da selva. É uma crença que permanecerá ainda por muito tempo na tradição do povo, sem que seja possível erradicá-la de todo. E, intimamente, todos nós temos ainda medo. Mesmo muito medo.
Depois, pausadamente, e como que dominado, também, por um estranho receio, continuou:
- ... No entanto, eu sei, que essa crença antiga já não devia subsistir. Ela é incompatível com a crença em Allah, o Deus em que acreditamos. Mas ainda são muitos os que acreditam e têm medo... Mesmo quando em público dizem que não acreditam, eles continuam presos a essa superstição.
E os dias foram-se passando. E o furriel Moreira começou a ficar mais doente... Deixou de se alimentar... Deixou de comparecer ao serviço... Definhava a olhos vistos, num desmoronar muito rápido e implacável da saúde física e mental de que antes parecia gozar quase em plenitude. A vivacidade que o caracterizava deu lugar a um homem amorfo e triste, em cujo olhar que se perdia a fixar, tenuemente, algo distante, só aflorava, imensa, uma amargura profunda e misteriosa.
Uma certa manhã, acompanhado pelo enfermeiro da companhia, fui mais uma vez visitá-lo e dei-lhe para tomar, um xarope e algumas vitaminas. Mas o rapaz não melhorava... Ia passando os seus dias, a pensar que já não seriam muitos, metido em casa, a merecer a compaixão de todos os que o visitavam.
Dada a limitação de que dispúnhamos para o tratar, pediu-se uma evacuação, de helicóptero, e o Nansú foi internado em Bissau, no hospital militar. Talvez, pensei, longe do local da aparição fatídica, e beneficiando de razoável assistência médica, fosse ainda possível que a saúde voltasse de novo. Eu estava, aliás, bastante convencido de que se tratava apenas de um pequeno problema de natureza psíquica, que a intervenção de um psiquiatra resolveria com facilidade.
E os dias foram-se passando. Ao fim de quinze dias de internamento deram-lhe alta hospitalar e ele regressou a Binta. Mas não vinha curado. A visão de Irã não o abandonava... E, pouco a pouco, continuou a definhar... E foi-se lentamente apagando...
Já quase no fim pediu-se um novo internamento e ele regressou ao hospital militar, onde viria a morrer, ao fim de poucos dias, assassinado pela visão sinistra de um pássaro negro, cujo habitat permanece bem fundo, no inconsciente colectivo deste povo.
E numa qualquer tarde, quente e tristonha, vieram dizer-me:
- Morreu o furriel Moreira...
E eu pensei:
- Foi Irã, o pássaro maldito, quem o matou!...
Domingos Gonçalves
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Notas do editor
A propósito dos Irãs, do poste de 11 de Abril de 2012, de Cherno Baldé > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano transcrevemos os seguintes parágrafos:
O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.
Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.
O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.
Último poste da série de 27 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (3): Viagem a Madina do Boé
5 comentários:
Gostei de ler, quer o texto quer a nota do Editor com o que o Cherne disse.
Falamos aqui pouco da vida - dos usos, costumes e cultura ancestral de povos com os quais convivemos, como povo, tanto tempo...séculos de convivência. Nós só dois e, felizmente, muitos preocuparam-se com a sua cultura.
O viver nas Tabancas, o partilhar conversas com "gente sábia" foi, para mim claro, um previlégio. Recordo o Régulo António Bonco Baldé, o Leonardo e outros mais que me ensinaram bastante. Aquela guerra, guerras como aquela não seriam nunca para vencer. Não o foram na Indochina, na Argélia e muito menos ali. Contudo teria sido preferivel uma maior integração nossa a partir dos anos sessenta. Estariam hoje melhor eles e nós. Entrava noutro "campo" e só escrevi para dizer que gostei e respeito e respeitarei sempre a cultura de alguns povos que conheci.
Abraço,T.
Os Irãs existem mesmo! Convivi com
um, enorme e vermelho, que às vezes
ainda me aparece...
J.Cabral
Caro amigo Domingos Goncalves,
Acabo de ler o texto e confesso que fiquei surpreendido e maravilhado primeiro pelo assunto versado e depois por ser um portugues, de cultura europeia, que nos brinda com uma narrativa digna de um bom observador.
Como introducao e, de acordo com a crenca popular no meio tradicional africano, o ira so rarissimamente aparece ao ser humano, mesmo se vivem lado a lado, podendo no entanto manifestar-se e mostrar a sua existencia, transmitir mensagens e/ou exigencias sobre diferentes formas e sinais compreensiveis somente aos iniciados.
Quanto ao conteudo propriamente dito desta singela e triste narrativa, assemelha-se a um caso bastante curioso e passivel de varias interpretacoes sobre as quais, por razoes obvias, nao poderei aqui invocar.
Uma coisa parece-me bastante logica, tarde ou cedo a morte acaba sempre por prevalecer e a forma como anuncia a sua chegada eh sempre unica e diferente para cada ser vivo.
Outra observacao pertinente eh que, nas crencas mais profundas e no imaginario colectivo dos africanos, a imagem do passaro negro esta fortemente ligado ao fenomeno da feiticaria que, a partida, nao tem nada a ver com o ira, mas, na realidade, as fronteiras (semelhancas e diferencas) sao tao tenues que se tornam quase impossiveis de destrincar e apreender na integra.
Enfim, trata-se da historia do fim de uma vida, que para a mente e cultura tradicional africana devera sempre ter uma explicacao compreensivel e plausivel para consume/consolo das familias e das sociedades no seu manto permanente e sagrado de crencas e de mitologias de existencia.
Com um abraco amigo,
Cherno Balde
O Grande Pássaro da Morte, surge em muitas culturas...Maias, Incas...não tendo,segundo creio,uma relação directa, com os Irãs,que podem ser bons ou maus..
Pelo menos foi isso que me ensinaram os Balantas da Tabanca de Mero.
Abraço. J.Cabral
Os que foram anos e anos "colonialistas" tiveram uma sorte danada não ter aparecido em África a SIDA antes do 25 de Abril de 1974.
Não seria já este mal o tal Grande pássaro da Morte que já pairava na Guiné naquele tempo?
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