Assim se faz a guerra e a paz... Dez anos depois, em 1982, o António Graça de Abreu, então a viver na China, vê, pela televisão, um general chinês a colocar, no Regimento de Comandos da Amadora, antigo RI 1, "uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China".
1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de 29/05/2019 à(s) 02:24:
Meu caro Luís
Mais uns textos do meu inédito Diário (secreto) de Pequim, para eventual publicação no blogue.
Publica o que quiseres.
Forte abraço,
António Graça de Abreu
2. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu)
Mais uns excertos do "diário chinês, secreto", ainda inédito, do nosso camarada António [José] Graça de Abreu. Recorde-se que ele viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Na altura, ainda era, segundo sabemos, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduímno Gomes), alegadamente o único recomhecido pela República Popular da China.
Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. (*)
Pequim, 20 de Maio de 1981
Agora veio à China uma delegação da Frelimo, encabeçada pelo moçambicano Marcelino dos Santos, ministro da Economia. Li Shunbao, o intérprete desta delegação, trabalha comigo na secção portuguesa das Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras e contou-me, com algum desgosto, a visita dos camaradas de Moçambique ao Armazém da Amizade, a maior loja de Pequim reservada apenas a estrangeiros.
Chegaram às sete da tarde, os chineses fecharam a loja para servir apenas os distintos africanos e a comitiva por lá permaneceu durante duas horas. Compraram, compraram, compraram, as senhoras moçambicanas abasteceram-se, em quantidade, dos mais variados produtos, artesanato chinês de qualidade, jades, jóias e até colecções de casacos de peles. No fim, à saída, tiveram o privilégio de não gastar um tostão.
A conta, extraordinária e exorbitante, era para ser paga pelas autoridades chinesas, pelo
generoso e mais do que irmão Partido Comunista da China, tudo em nome do socialismo, da amizade entre os povos e do internacionalismo proletário.
Li Shunbao, humilde chinês, meu amigo e camarada, não gostou do que viu.
Pequim, 22 de Agosto de 1981
Mas quando é que eu ganho juízo? Hoje descubro outra mulher chinesa, quase a beldade perfeita, no lugar certo, passeando-se pelo Vale das Cerejeiras, por detrás do Wo Fo Si卧佛寺, o templo do Buda Deitado, na Colina Perfumada, arredores oeste de Pequim. Dela, pouco mais fiquei a saber do que o seu nome, Liu Xiaochun, sendo Liu刘 o apelido de família e Xiaochun小春, o nome próprio que significa "pequena Primavera, ou Primavera Breve."
Fixei-lhe o rosto (como é possível uma mulher ser tão serenamente bonita!…), as formas do corpo, os seios perfeitos sob a blusa branca, justa, e as calças bem cintadas, azuis, arredondando o primor das nádegas. Não lhe toquei com um dedo sequer, mas apetecia-me tocar-lhe com todos os dedos, das mãos, dos pés, com todas as células do meu corpo, beijá-la até a polpa dos meus lábios sangrar de prazer e exaustão. Quatro anos na China, a olhar para as meninas chinesas e a não ter nenhuma. Xiaochun, em tempo de Verão, a "Primavera Breve." O avançar por dentro das estações do ano, o perpassar da natureza.
Pequim, 30 de Agosto de 1981
Dia de, no Yuanmingyuan圆明园, o Jardim da Perfeição e da Luz, antigo Palácio de Verão que data dos séculos XVIII e XIX, encontrar uma chinesinha que pega na minha mão, a pousa sobre o seu joelho bonito -- a palma da mão voltada para cima --, e que me lê a sina. Um portento, a mulher, Wu Mei 吴美de seu nome, nascida em Nanquim, 23 anos, aluna do Instituto de Cinema de Xangai. Bruxa. Com toda a aprendizagem e tiques de actriz, mais a percepção do essencial das coisas da vida.
Nunca me tinham lido a sina. Foi preciso viver em Pequim para encontrar uma "cigana de Nanquim" disposta a tal tarefa, cheia de saber e segurança.
Num excelente mandarim à mistura com um macarrónico inglês, a Wu Mei foi-me explicando o significado dos traços na palma da minha mão. Mais ou menos nestes termos:
"Tu és muito forte, na cabeça. Tens uma carreira importante que será interrompida aos cinquenta anos por um acidente grave, de que recuperarás, quanto ao teu trabalho. Tens três mulheres na tua vida, a primeira aconteceu há alguns anos, a segunda e a terceira vão seguir-se uma à outra. Não foste feliz com a mulher com quem casaste, gostas muito dos teus irmãos e da tua família."
Pedi à Wu Mei (Wu吴, apelido de família, associado ao antigo reino de Wu, actual província de Jiangsu cuja capital é Nanquim onde ela nasceu, e Mei美 que significa "bonita"), pedi à Wu Mei que dissesse a minha idade. Confessa que não está escrita na palma da mão, mas ela aponta para 29 anos. Face à minha negativa, corrige de imediato para o número certo, 34 anos. Voltou a insistir que eu era inteligente, mas mal aproveitado pelas outras pessoas, mesmo assim descobriu que eu tenho um futuro brilhante à minha frente. Quero acreditar que sim.
Wu Mei, a bruxa chinesa de Nanquim! Miguel de Cervantes, nas Novelas Exemplares, bem avisou: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay".
Bruxas bonitas, até na China…
Pequim, 18 de Novembro de 1981
Esta manhã chego à embaixada da União Soviética e o tovarich de serviço na Intertourist recebe-me com as seguintes palavras:
"Good morning, do you have american dollars?"
Eu tinha porque já ia avisado que, depois de fazer a viagem no Transsiberiano, devia pagar a estadia das quatro noites em Moscovo nessa maldita (e tão amada!) moeda dos reacionários e capitalistas filhos do tio Sam. Logo depois segui para a embaixada da Mongólia para pedir outro visto no passaporte, para a passagem do comboio pela república mongol. A primeira coisa com que me deparei à entrada da porta foi o letreiro: "Visas must be paid in USA dollars or Swiss francs, only."
Na China, ao longo destes mais de quatro anos vi, "claramente visto", compreendi a "superioridade" do sistema socialista. Com os parceiros russos e o seu filhote mongol basta entrar nas respectivas embaixadas para entender que os dólares norte-americanos são excelentes para olear o socialismo e ajudá-lo a singrar.
Amadora, 15 de Abril de 1982
Comia sossegadamente o meu bife à hora do almoço quando vi, no pequeno écrã da TV, um general chinês, de visita a Portugal, a depositar um ramo de flores no monumento aos soldados Comando mortos em combate em África, aqui ao lado no Regimento de Comandos da Amadora, o antigo RI 1 que tão bem conheci há dez anos atrás.
As voltas que o mundo dá, ou simplesmente o doce-amargo do fluir dos dias….
Quando em 1972 parti deste quartel para a guerra na Guiné levava o desgosto de, pequeno alferes miliciano, ir combater por uma causa em que não acreditava. Iria encontrar guerrilheiros que, melhor ou pior, lutavam pela independência das suas terras. Depois, em Teixeira Pinto e em Mansoa, no meu Comando de Operações, estive com as 35ª. e 38ª. Companhias de Comandos, impressionantes tropas de combate com quem fiz amigos e com quem cheguei a sair para o mato.[1] Unidos, camaradas, lutávamos pela sobrevivência, pela vida.
Na Guiné-Bissau, em Mansoa, em Junho de 1973, após uma missão da 38ª. Companhia de Comandos, na estrada Jugudul-Bambadinca, vi-os chegar com quatro espingardas Kalashnikov capturadas aos guerrilheiros mortos numa emboscada, duas delas ainda com sangue fresco. Tomei uma das armas na mão, culatra atrás, bala na câmara e apontei para o céu. Eram quatro Kalashs fabricadas na República Popular da China, oferecidas pelos comunistas de Mao Zedong para matar tropas portuguesas.
Dez anos depois, um general chinês coloca uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China. (**).
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[1] Ver o meu Diário da Guiné, 72-74, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2007, pags. 51 a 53.