terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

 

 


Mapa geral da antiga província  portuguesa da Guiné (1961) > Escala: 1/ 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, Canhámina e Cambajú, setor de Contuboel, na fronteira norte com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras. Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989).


1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte III (*)



(vii) Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...


Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança,  não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel  de Fajonquito  estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.

Tcherno!... Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.

−  Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 

−  Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.


(viii) O rabo de um macaco pode ser muito comprido 
mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado


Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se, pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto,  que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:

−  Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:

−  Eu sou!..


O Comissário perguntou-lhe:

− Tu és o quê?
−  Eu sou! − respondeu.
−  Tu és da FLING, não é? −  sugeriu o Comissário.
−  Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.





No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual,  estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:

−  Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... − .  E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que, alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. 

Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: "O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado".

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

Cherno Baldé

Bissau, Junho de 2010  (**)


[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Contimua)
___________

Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série


7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Estas crónicas foram escritas em meados de 2010, cerca de 3 décadas e meia depois dos "acontecimentos": a (mu)dança das bandeiras em 1 de setembro de 1974, em Fajonquito, o fim das "mordomias" dos "djubis", como o Chico, que viviam das "sobras" do quartel em troca de pequenos serviços aos militares que tanto lhes davam pontapés no traseiro como os protegiam...

Depois as Kalash, as Akas, "subiram ao poder", e as G3 partiram, para sempre, para o lugar donde tinham vindo... Portugal fechava um grande capítulo da sua história... Mas para o Chico e outros "djubis" de Fajonquito, de Canhámina ou de Cambaju, junto à fronteira norte com o Senegal, a vida continuava...Como diz o Cherno, a criança ou o adolescente não sabe o que é isso da "saudade"...

Felizmente que o Chico pôde continuar a estudar, até ser hoje um quadro superior, útil ao seu país... Esteve no estrangeiro e voltou, contrariamente a outros guineenses (médicos, engenheiros, professores, enfermeiros...) que ficaram nos países onde estudaram... Muitos radicaram-se em Portugal: médicos, por exemplo.

Aos 50 anos, o Cherno Baldé decide esrever (ou publicar, no nosso blogue) as memórias de infância, adolescência e juventude. E não deixa de ser crítico para com os "senhores da guerra",primeiro a potência colonial e depois o PAIGC...

Em 2010 era presidente do PAIGC e 1º ministro, o Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Júnior", empresário, e que não tinha vindo da guerrilha... O ambiente, em Bissau, era então menos crispado... Espero que o Cherno Baldé nunca tenha sido (ou a venha a ser) molestado ou prejudicado pelo que aqui escreveu, com tanta sinceridade, humanidade, humor, ingenuidade até, mas também inteligência e coragem... (É bom não esquecer que ele vive em Bissau, com a família...)

É um dos documentos que nos honram a todos, a começar pelo seu autor... Como eu já aqui expliquei, entrou para a Tabanca Grande em meados de 2009 e passado um ano "abriu o livro"... É pena que testemunhos como estes, da parte dos guineenses, sejam tão raros... É por isso que eu penso que estas crónicas mereciam passar a livro... Lamentavelmente não há "olheiros" editoriais na lusofonia... O que se publica nas redes sociais é importante, mas é sempre precário...

Mantenhas, Cherno!... Saúde e longa vida para ti e os teus.

Eduardo Estrela disse...

Tenho-me deliciado a ler as crónicas do Cherno Baldé.
São verdadeiros retratos duma época e duma realidade que merece efectivamente passar a livro tal como tu mencionas Luís.
O Cherno escreve duma forma que nos transporta à Guiné, contando a vida dum determinado tempo e lembrando sempre a cultura e os costumes dos Guineenses.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O que o Cherno conta confirma-me a boçalidade dos "heróicos" guerrilheiros que enfrentámos.
Podem censurar-me, mas em situações como esta apetece perguntar:
- "Era para isto que querias a independência? Foi por isto que morreram tantos guineenses?"
A FLING? Que é isso? Também existiu o MING que nem deixou rasto. O PAIGC já a tinha liquidado há mais de 10 anos. Como é que se justifica que um "responsável local" vá perguntar a um "prisioneiro" se ele pertencia à FLING?
É uma imbecilidade que só se pode justificar pela necessidade de "apresentar serviço" ao Partido, prática que, a cada passo, temos vindo a confirmar que era corrente na vida diária do dito.
Continuo a dizer que nada tenho a ver com isso, nem quero ter, mas não sou ignorante e insensível ao ponto de poder aceitar uma situação como esta. Mataram-no, certamente, e deram descaminho ao cadáver...

Um Ab.
António J. P. Costa

Eduardo Estrela disse...

A guerra nunca devia ter começado. É do conhecimento geral que o Amilcar Cabral colocou à consideração das autoridades portuguesas a hipótese de haver um período de transição longo, de modo a preparar a saída para a autodeterminação. E isso terá sido antes do início das hostilidades.
A ser aceite a proposta, não teríamos combatido os heróicos guerrilheiros e ter-se-iam poupado muitas vidas em ambos os lados.
Os efeitos duma guerra deixam sempre resquícios de ódio, mas infelizmente e desde tempos imemoriais que os homens se guerreiam.
Abraço fraterno.
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Caro amigo Luis Graça,

Obrigado pela (re)publicação da série das minhas memórias de infância. Queria precisar que uma parte desta série foi escrita durante o periodo que passei em Fajonquito a quando do conflito politico militar de Junho98. O regresso forçado a minha terra fez revivar a memória do passado. Outra parte, como o texto publicado hoje, já foram textos inspirados por imagens e leitura do Blogue da TG.

O meu gosto pela escrita já vinha da juventude em Bafatá e, na altura, tinha uma espécie de Diário que, infelizmente, se extraviou com alguns poemas (revolucionários) da década de 70 e outros escritos na minha passagem pela URSS.

Este texto é dedicado aos nossos pais que lutaram, defendendo a sua terra de Sancorla, o único regulado que conseguiu resistir aos assaltos da guerrilha naquela zona depois de devastar toda a região desde Oio até Fajonquito. De acordo com o testemunho de Inácio Maria Gois da CCAÇ 764 (64/66), entre Agosto e Setembro de 1964 o Paigc efectuou 4 ataques seguidos, alguns dos quais em pleno dia e outros durante dias inteiros com pequenos intervalos pelo meio. Na minha opinião, se Sancorla tivesse cedido na altura, então toda a zona Norte das regiões de Bafatá e Gabú entrariam no olho do furacão e Contuboel e Sonaco não seriam os Oásis de paz que vocês conheceram. Em 1975 a casa de Canhámina, capital do regulado de Sancorla foi decapitada com o fuzilamento de Sambel Coio Baldé (1915-1975), dos seus irmãos Demba Juldê e Nharô, todos Alferes ou Tenentes de segunda linha que estiveram na linha da frente contra os insurgentes em 1963/64.

Eu, como qualquer ser vivo tenho medo, mas não se pode ter medo eternamente e é necessário deixar o nosso testemunho a posteridade para não deixar que seja só o vencedor a contar a nossa história, como defende o grande timoneiro do blogue, Luis Graça.

Obrigado a todos pelos comentários aqui deixados.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sabia, Cherno, que irias fazer um comentário, com a frontalidade do costume. Vou aproveitá-lo, já não me lembrava das circunstâncias em que escreveste essas memórias sobre Fajonquito e Canhámina em 1974, por altura da "dança das bandeiras"...

Estou cansado, vou-me deitar, levantei-me cedo às 5h da manhã. Não me leves a mal se sou breve. E é apenas para te dizer que a vida só vale a pena ser vivida se soubermos lutar pela liberdade e pela justiça... Gostei muito do teu comentário e da coragem física e moral que é preciso ter, um guineeense, para participar ativamente, como tu o tens feito, num blogue de antigos combatentes.

Infelizmente, os antigos guerrilheiros estão mortos e não deixaram nem testemunho nem testamento...Os vindouros poderão pintá-los das cores que entenderem...

Mantenhas. Dorme bem. Luis

Anónimo disse...

Amigo Cherno
Sempre li o teus posts e comentários com um misto de admiração e de alguma preocupação, dada a situação conhecida em Bissau. Admiro a forma como descreve o teu passado, sem medos e sem amarras, bem como comentas a situação atual na sua terra, que amas, de forma assertiva e nunca acomodado numa trincheira. Dada a tua formação poderias ter feito, como muitos, a tua vida noutras paragens com melhor qualidade de vida e mais segurança, mas resolveste por ao serviço da tua terra todos os teus saberes e capacidades.
Naturalmente, nem sempre de acordo com o que escreves mas sempre de acordo contigo como escreves. Invejo a tua coragem.
Prova da minha admiração pelo Cherno, está vertida no meu livro: “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”- páginas 74, 78 e 79
Um grande abraço e tudo de bom para ti, para a tua família, para a tua terra e para as tuas gentes.
Joaquim Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim Costa:

Espero que haja mais gente, da nossa Tabanca Grande, a mostrar a sua admiração e apreço pelo Cherno Baldé...que continua a viver num país, o seu, que está muito longe de ser a Pátria que tantos homens e mulheres sonharam, e por que lutaram, e muitos morreram, de Amílcar Cabral a Domingos Ramos, de Titina Silá a Amélia Araújo ("Maria Turra"), do Pepito a Leopoldo Amado...

Deus, Alá e os bons irãs das florestas sagradas protejam a "nossa" Guiné-Bissau!

Anónimo disse...

Cherno Baldé

O que nos tem vindo a escrever não são nada menos que preciosos capítulos de um livro de incomensurável valor para a história dos primórdios da Guiné como país independente. Há muitos livros sobre a guerra da Guiné, grande parte deles eivados da visão portuguesa, outros há maculados pela perspectiva ideológica do PAIGC, mas a tua abordagem é menos confessional e mais genuína e realista, não lhe chamarei isenta porque isso não existe, posso dizer, sem lisonja, que a Guiné deveria ser governada por gente boa, justa e sábia como tu.
Um grande abraço

Carvalho de Mampatá