Queridos amigos,
Pergunto-me muitas vezes quantos investigadores vieram beber a este trabalho de longa cifra e decifra de Senna Barcelos, João Barreto, que escreveu a primeira História da Guiné, seguramente que o consultou à exaustão. Este brioso oficial da Marinha foi não só meticuloso com os factos e feitos que a História registou como nunca se escusou a dar opiniões, releva as situações de incúria e desleixo, as traquibérnias e assaltos, as incompetências e o estado de hostilidade permanente à volta das praças e presídios. Agora apertam-se as pressões da França a norte e da Inglaterra a sul, dentro de décadas iremos legalmente perder a nossa presença no Casamansa (estava praticamente circunscrita a Ziguinchor) e os brigues ingleses destroem e até matam em Bolama ou na Ilha das Galinhas, sonham deter a hegemonia no Rio Grande de Buba. A figura que sobressai é a de um político exemplar, Honório Pereira Barreto, e todo o período que Senna Barcelos a seguir vai descrever tem algo de tétrico, a rapina estrangeira cerca o que resta da Senegâmbia Portuguesa, Lisboa está praticamente indiferente, há um deputado alarve que nem sabe o que era o Casamansa e Alexandre Herculano, que se estreava nas lides parlamentares, zurziu a animália. O leitor que se prepare, a intimidação e a gula estrangeira vão ganhar intensidade.
Um abraço do
Mário
Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (7)
Mário Beja Santos
São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.
Avançamos para o material restante da parte IV dos Subsídios para a "História de Cabo Verde e Guiné" que conheceram edição em 1910. A figura central deste período é Honório Pereira Barreto. Sabe-se de todas estas sublevações, assassinatos, roubos, intromissões e ingerências de potências estrangeiras graças aos relatórios que Senna Barcelos leu atentamente. O ex-Governador da Guiné Gonçalves Barbosa entregou um relatório referente à Guiné em 1841, mas dois anos antes Honório Barreto já tinha dito verdades como punhos e dava um quadro bastante cru da situação:
“As possessões portuguesas na Senegâmbia compõem-se dos Estabelecimentos seguintes: no rio de Geba, a Praça de Bissau; e nas dependências, Nova Peniche (Ilhéu do Rei), Geba, Fá; e Bolama no Arquipélago dos Bijagós; no Rio de S. Domingos o presídio de Cacheu e dele dependentes Farim, Bolor, Ziguinchor e Gonzo, tudo com uma população de 3 a 4 mil almas entre brancos, pretos, livres e escravos. Estes estabelecimentos todos são hoje de pouca importância pela indiferença culpável com que a maior parte das autoridades da província olham para as elites, indiferença que produz muitas outras causas para a sua decadência. Antigamente Bissau e Cacheu formavam dois governos separados, mas desde 1834 ficaram debaixo de um só governo. A sede é Bissau”.
E segue-se a descrição de Bissau como residência do governador, apresentada como uma praça de guerra regular, quadrada, tendo cem toesas de cada lado e estando ao tempo guarnecida com 70 baionetas e 22 peças de artilharia; dentro da Praça havia um quartel para 300 praças, mas em mau estado, e que ameaçava já ruína; o quartel para oficiais também estava degradado, havia uma pequena igreja, um armazém e falava-se mesmo num vergonhoso quartel do governo. Fora dos edifícios da Praça estava a povoação onde havia apenas cinco casas cobertas de telha, todas as outras eram de barro, cobertas de palha, indicando tudo o maior atraso e miséria. A figura de Honório Pereira Barreto agiganta-se como governante, com o seu elevado patriotismo, pelo seu timbre de lealdade. Adquiriu a amizade das populações, dava sinais de revolta contra a ociosidade, fosse dos Grumetes, fosse dos cristãos, sonhava com guineenses competentes e bons profissionais. Veja-se o teor de uma carta que manda ao Ministro da Marinha em Cacheu a 16 de dezembro de 1845:
“Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor,
O bem do meu país é o único alvo a quem se dirigem todos os meus esforços, e todas as minhas vistas. Eu o promoverei com as poucas forças que tenho.
Por mim pouco ou nada posso fazer; mas eu tenho conhecido que Vossa Excelência também deseja e promove a felicidade das possessões ultramarinas.
Não posso ver sem dor a ociosidade, ou por melhor me explicar, a selvagem indolência em que vivem os habitantes deste presídio, chamados Grumetes. Nenhum deles sabe ofícios mecânicos; para se fazer a mais pequena obra é preciso mandar vir obreiros da Gâmbia. O governo sem dúvida quer propagar a civilização em África, e para isso tem mandado fundar escolas primárias: sem dúvida é um passo muito acertado, mas não é menos necessário que haja oficiais mecânicos. O país ganha com isso e é também um passo para a civilização.
Tenho observado que ensinados aqui os Grumetes, nada aprendem: porque cedo se dão à embriaguez ou à crápula e tornam-se por isso estúpidos. Proponho, pois, a Vossa Excelência que expeça ordens para que eu lhe remeta pelos navios do Estado, que vierem buscar madeira, um número de rapazes livres para aí se aplicarem a diversos ofícios.
Dir-me-á Vossa Excelência talvez de que Bissau se enviaram há tempos uns poucos de rapazes que estiveram no Arsenal, e nada aproveitaram do ensino. Permita-me porém que lhe observe que os Grumetes de Bissau são diferentes dos deste governo; e que lhes ensinaram a ler, e por isso desprezaram o ofício que aprenderam e se tornaram mercadores; eu creio ainda que quando eles foram para esse, já tinha uma idade suficiente para levarem consigo ao menos uma insuperável disposição para todos os vícios dominantes nestas praças; e por fim direi – a crer o que eles afirmam, nem os trataram bem, nem o seu ensino era muito rigoroso.
Outro tanto não acontecerá agora; porque eu escolherei a gente que mandar e estou inteiramente certo que Vossa Excelência vigiará sobre a sua aplicação. Deus guarde Vossa Excelência”.
Voltando ao espírito destes relatórios, não é difícil concluir a existência de um quadro permanente de incúria, incompetência e detenções permanentes com as populações limítrofes, tanto em Bissau como em Cacheu. Lê-se constantemente queixas sobre a indolência, a perda de respeito à bandeira portuguesa, o gentio só obedece aos régulos: “O gentio insulta quotidiana e impunemente os habitantes sujeitos ao governo, espancando-as dentro das suas casas”. E concretamente em Bissau fala-se do que é o descontentamento militar:
“Os pagamentos às Praças de Pré são feitos em toda a colónia em pólvora, tabaco e algumas outras mercadorias; e aos empregados oficiais, inclusive o governador, metade como aos soldados e outra metade em cédulas que são umas notas emitidas por Manuel António Martins quando Prefeito. Ora, esta maneira de pagar bem mostra a desgraça do país; não há uma botica, e isto num país onde o clima é letal; a casa que serve de hospital é própria para fazer adoecer os que têm saúde e para matar os que estão doentes”.
Falou-se anteriormente na chegada a Bissau de Alois de Rolla, Dziesaski. Polaco, tal como de Chelmicki, nascido naquele país em 1997, veio para Portugal ao serviço da rainha em junho de 1883, depois de promoções sucessivas foi tenente-coronel em 1882. Revelou-se um oficial brioso, tendo prestado relevantes serviços à Guiné, pugnando sempre pelos interesses da sua pátria relativa.
Os ingleses voltam a cometer tropelias, raptos e destruições. Senna Barcelos regista a queixa do agricultor, que foi coronel de milícias e antigo Governador, Joaquim António de Matos, proprietário na Ilha das Galinhas, contra o comandante do vapor inglês Pluton, a tripulação praticou extorsões e destruições em série na ilha, roubaram-lhe a casa e tiveram a barbaridade de assassinar a filha mais velha. A queixa foi endereçada a António Tavares da Veiga Santos, então Major Governador de Bissau, em março de 1842. Nesse mesmo ano, o ministro inglês em Lisboa, Lord Howard de Walden, reclamou do Duque da Terceira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, contra as ordens expedidas pelos governadores de Bissau e Cacheu para que os navios estrangeiros não pudessem subir os rios Geba e Cacheu, e isto na ocasião em que se negociavam os tratados de comércio e navegação e em que se procurava pôr termo à escravatura. Acontece, como informou o Ministro da Marinha e Ultramar ao Duque da Terceira, estava proibida aos navios estrangeiros por direito estabelecido e reconhecido por todas as nações e continuaria a ser, com exceção dos casos de arribada forçada. Os apetites ingleses não paravam. Em maio desse ano chegava novo vapor inglês cujo comandante vinha reclamar os direitos de Inglaterra à soberania e posse da ilha. A questão de Bolama ganhava intensidade. A bandeira inglesa será arreada e até 1848 os ingleses não exercerão mais nenhum ato de pirataria em Bolama. Depois sim, no período até 1853 voltarão à carga, não querem só apossar-se de Bolama, querem também o rio Grande de Bolola, é a região de Buba.
Vejamos agora em síntese alguns acontecimentos relevantes apontados por Senna Barcelos no período correspondente a 1843 até 1853.
(continua)
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
____________Nota do editor
Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Olá Camaradas
Mais uma vez fica demonstrada a displicência, para não dizer pior, com que as autoridades de Lisboa geriam, neste caso, a Guiné durante o Séc. XIX. Estes textos escritos sem censura e procurando transmitir informação a quem de direito, são fundamentais para a compreensão do que lá se passava. Os ingleses, como se viu, até assassinaram e não só nativos, numa perspectiva colonialista e escravisante. As autoridades portuguesas assobiavam para o lado... na atitude cobarde do costuma. Depois...
Um Ab e bom FdS
António J. P. Costa
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