Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde era o salão de futebol de cinco e a Casa (comercial) Ultramarina onde foi instalada a messe dos oficiais
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Posto de vigilância permanente equipado com uma metralhadora.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Inscrição da CCAÇ 2435, a companhia que construiu o aquartelamento em 1969
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o poste da bandeira; à esquerda as ruínas do refeitório com a padaria
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > O antigo forno na padaria. Na foto,o filho mais velho do Cherno
Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares; em primeiro plano, de bruços, : Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda.
Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Apontamentos autobiográficos:
O Cherno Abdulai Baldé entrou para a Tabanca Grande em 18/6/2009 (*). Ouçamo-lo a falar, resumidamente, dos seus primeiros anos:
(...) Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito.
(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente.
(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...)
(...) Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)
(...) Em 1968, o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família.
Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única, do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes. (...)
O comentário que ele deixou no Poste P22912, obriga-nos a reproduzir, em três postes, já a partir de hije, o seu poste P6864 (*), um verdadeiro de antlogia, que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.
Faz parte da série de que ele é autor, "Memórias do Chico, menino e moço", e que já há muito merecia publicação em livro, por constituir um notável documento humano, escrito por um guineense que nasceu e cresceu com a guerra e, que, como tal, deve ser partilhado pelo universo, mais alargado, da lusofonia.
Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho e o de Agosto de 1974, tinha sido marcado por:
Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas, os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção.
Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.
Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé, um ex-guerrilheiro arrependido, que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.
Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino à região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.
O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando- na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo bubu azul celeste bordado e suas babuchas árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação.
Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?!”, estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.
A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero (1) e logo que chegaram dispersaram-se, desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:
− Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco.
Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleta de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do Partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes...Por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.
Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar.
Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal.
_________
No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.
Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)
(...) Em 1968, o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família.
Em Fajonquito nasceram os meus irmãos mais novos: Barbosa, Aissatú e Cántaba; e, mais tarde, os filhos da segunda mulher do meu pai, Assiatu Embalo: Umo, Rosa, Mariama e Mamadu-Bobo.
(...) Eu era desses raros pequenos rafeiros do quartel impossíveis de controlar e muito menos de afastar. Quando se fechavam os portões do quartel entrava, mesmo assim, por baixo do arame farpado. O dia e a noite faziam pouca diferença. Apanhava porrada de um ou outro quando deambulava pelo quartel, mas também, dava alguns trocos com emboscadas e pedradas a noite.
A língua ? Isso importava menos. Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava "Hó Chiiico já limpaste as minhas botas?", eu respondia de imediato "Sim senhor, já limpaste... e depois ?"... (...)
2. Comentário do editor LG:A língua ? Isso importava menos. Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava "Hó Chiiico já limpaste as minhas botas?", eu respondia de imediato "Sim senhor, já limpaste... e depois ?"... (...)
No poste P22969 (**), escrevemos o seguinte:
(...) Ninguém, civil ou militar, português ou guineense, conseguiu até agora, como o nosso Cherno Baldé, descrever, com tanta minúcia, vivacidade, humor, ironia, perspicácia e apreensão em relação ao futuro, o que foi a retração do dispositivo militar português e a ocupação, pacífica, pelo PAIGC dos nossos aquartelamentos e destacamentosdas NT e povoações sobre o nosso controlo, na sequência dos acordos de Argel, de 25 de agosto de 1974, entre o Governo Português e o PAIGC.
Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única, do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes. (...)
O comentário que ele deixou no Poste P22912, obriga-nos a reproduzir, em três postes, já a partir de hije, o seu poste P6864 (*), um verdadeiro de antlogia, que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.
Faz parte da série de que ele é autor, "Memórias do Chico, menino e moço", e que já há muito merecia publicação em livro, por constituir um notável documento humano, escrito por um guineense que nasceu e cresceu com a guerra e, que, como tal, deve ser partilhado pelo universo, mais alargado, da lusofonia.
3. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I (***)
(i) Os sinais de uma mudança anunciada
Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho e o de Agosto de 1974, tinha sido marcado por:
(i) a chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael;
(ii) a visita dos primeiros elementos da guerrilha;
e a (iii) saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito, em 1 de Setembro.
Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.
No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe do que fechavam o ciclo do ensino primário elementar. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.
Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados dillé. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta.
Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante se não estivesse fora do seu contexto normal, e que foi transmitida pelo Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973.
Encontrou-me perto do salão, preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:
− Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!
Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:
− Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?
− Não, pá, é o Cabral!
Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, aliás, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premónitório
Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas-
Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.
No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe do que fechavam o ciclo do ensino primário elementar. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.
Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados dillé. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta.
Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante se não estivesse fora do seu contexto normal, e que foi transmitida pelo Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973.
Encontrou-me perto do salão, preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:
− Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!
Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:
− Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?
− Não, pá, é o Cabral!
Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, aliás, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premónitório
Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas-
(ii) Os recados vindos de Oio ou a delegação
que voltou bredouille (ou de mãos a abanar)
Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas, os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção.
Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.
Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé, um ex-guerrilheiro arrependido, que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.
Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino à região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.
O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando- na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo bubu azul celeste bordado e suas babuchas árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação.
Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?!”, estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.
A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero (1) e logo que chegaram dispersaram-se, desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:
− Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco.
Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleta de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do Partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes...Por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.
Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar.
Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal.
[ Revisão, fixação de texto, adaptação, para efeitos de publicação neste poste: LG]
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(i) Instrumento de música tradicional dos fulas, feito de fios de cabelo extraídos do rabo de cavalo.
(Continua)
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(Continua)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje quadro superior em Bissau...
(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)
(***) Adapt. de poste de 17 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974
6 comentários:
Olá Cherno boa tarde!
Fiz grande parte da minha comissão em Cuntima cujo sector operacional limitava com o de Fajonquito na bolanha de Buro.
Fui 3 ou 4 vezes a encontros nessa bolanha com malta da guarnição de Fajonquito. Isto em 1970.
Salvo erro em 1972 esteve integrado na guarnição de Fajonquito o Fur. Mil. Rendeiro, que mais tarde foi meu colega de seguros na Axa.
Lembras-te dele?
Abraço fraterno.
Cherno!!
Rectificação!
Fur. Mil. Tendeiro e não Rendeiro.
Abraço.
Eduardo Estrela
Vamos continuar a publicar mais alguns excertos das crónicas do Cherno Baldé centradas à volta da saída das tropas portuguesas da subsetor de Fajonquito, e de toda a Guiné, e do novo pais que se tornou independente sob a bandeira do PAIGC mas sem a liderança de Amílcar Cabral, assassinado em 20 de Janeiro de 1973... Enfim, uma independência manchada pelo sangue do Pai morto pelos filhos renegados... E esse terá sido o "pecado original" da Guiné-Bissau, que até hoje não tem podido dormir descansada...
Na altura, as "Memórias do Chico" ( de que se publicaram mais de meia centena de postes) não tinham um fio cronológico rigoroso... Um dia, a publicarem-se em livro, o autor poderá reorganizá -las por outra ordem e sequência... Oxalá se arrange um editor para o livro...
caros amigos, caros camaradas
camarada Cherno Baldé
camarada Luís Graça
Tem sido com muita atenção que tenho lido os post que têm vindo a ser publicados no nosso blogue.
Neste particular , sobre a nossa retirada da Guiné,gostaria de dizer que somente acreditei quando coloquei os meus pés na plataforma da escada que dava acesso ao avião.Aí dei vivas ao paigc, entoando uma canção que tinha aprendido nos dias que antecederam a nossa partida de Bissau.
Agora tantos anos passados encontrei na igreja evangélica de que sou membro várias pessoas , meus irmãos em Cristo, que vieram da Guiné . Alguns deles de Bissorã e já me confessaram que tinham uma grande alegria de estarem nos quarteis dos portugueses.Também eram jovens como o Cherno.
O meu filho que no ano passado frequentava o 9ºano tinha uma amiga "colorida" que era nascida em Bissau.
Quando abandonei Farim um dos faxinas da enfermaria chorou muito, outro mais pequeno queria vir comigo.
Não existe qualquer dúvida que a fraternidade entre os dois povos é muito grande.
lamentávelmente também me confessaram o desprezo com que foram tratados os homens grandes da tabanca.
Não quero alongar mais o meu "discurso" para não ser enfadonho.
Um grande abraço.
José Emídio Marques
No comentário anterior referi a amiga colorida do meu filho.
Quero referir que o termo se restringe a identificar uma relação de amizade.
obrigado
Lindas cronicas recordar o passado e viver Um grande abraco para todos os ex camaradas que andamos por esta Guine
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