sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1418A): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.

Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.

Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.

Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.

Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.

Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.

O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

7 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Que Deus Nosso Senhor te valha, Mário Beja Santos...
As análises e entendimentos datados, marxistas, semi-marxistas e marxistas coisa nenhuma, falharam em África, falharam em todo o mundo. De utopia em utopia, a realidade como cemitério de todas as utopias, e depois a luta fratricida, milhares de mortos. Lágrimas na face de gente honesta e boa.
Após a Guiné, 72/74, e de Amílcar Cabral,eu tenho seis anos de vida, trabalho, aprendizagem num país do socialismo real, República Popular da China, 1977/1983.
Marx, Amílcar Cabral, ou Deng Xiaoping? Enriquecer é glorioso! Este enriquecer não é individual, trata-se de enriquecer o país, a comunidade, um povo. Pois, Amílcar Cabral enterrado no museu da História.

Um abraço,

António Graça de Abreu

JB disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JB disse...

Já que estamos “n’uma” de invocações divinas e tendo em conta residuais(?) influências políticas de um passado já distante,só me vem à memória uma frase muito repetida pelos Inquisidores Dominicanos aquando das muito eficientes torturas a Judeus e Cristãos Novos:

“Que a Santíssima Trindade nos salve dos……arrependidos!”

Um abraço do J.Belo

Antº Rosinha disse...

Como uma terra geograficamente tão minúscula como a Guiné, inspira tantos analistas políticos, religiosos, econômicos, antropólogos, historiadores, marxistas, capitalistas etc,...portugueses, ingleses, franceses, caboverdeanos, italianos e até guineenses.

Graças a Beja Santos, que os passa a todos a ferro, temos o privilégio de nos deliciarmos a olhar para os guineenses de uma maneira diferentemente dos nossos pontos de vista de colonialistas.

Claro que Beja Santos, que hoje sabe mais da Guiné do que esses analistas que ele nos passa a ferro, para nosso passatempo, merece toda a nossa gratidão por tanta paciência.

Eu gosto muito dessa gente que Beja Santos nos traz, principalmente porque a maioria são de vários paises (muitos paises) que andaram a tentar "colonizar" a Guiné nestes 40 anos, após a ausência do colonialista tuga.

Cada país a quem a Guiné "estendia a mão", os tais amigos que nos vão ajudar como diziam os Cabrais, colonizou um seu bocadinho à sua maneira.

E esses analistas são um pouco as testemunhas dessa tentativa de colonização.

Obrigado Beja Santos.

JB disse...

Como sempre,palavras sensatas meu caro António Rosinha.

A colaboração de Beja Santos para este blogue,interessante,diversificada,abrangedora e,não menos,num já longo período sem desfalecimentos, malgrado algumas críticas desnecessariamente pessoais por parte de alguns que aparentam sérias e constantes dificuldades em aceitar factos e análises políticas que não coincidam com as suas certezas.

Análises passíveis de discrepâncias de fundo mas que por isso não se tornam candidatas às tão fáceis fogueiras sempre tão próximas dos defensores de ortodoxismos irredutíveis.
Como António Rosinha estou grato a Beja Santos pelas interessantes leituras feitas chegar ao blogue e,através dele,aos que desde longe não terão as mesmas oportunidades de “rebuscar” localmente algumas das obras publicadas.

Um abraço do J.Belo

antonio graca de abreu disse...

As teses marxistas falharam em África, como falharam em todo o mundo. Haverá sempre quem acredite no inacreditável.

Abraço,

António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

Irra!

A questão é velha.
O Mário Beja Santos, vai trazendo para aqui, constantemente, artigos variados.
Registos de viagens (há outros também a fazê-lo), visitas a locais com ilustração e divulgação dos seus recantos, apreciações a livros, divulgação de livros, de estudos, estes de natureza variada.
O que seria "normal" (para pessoas normais) era observar o conteúdo, gostar, não gostar, ler, não ler, sem ser preciso fazer grande esforço para separar o conteúdo do que se apresenta do que, eventualmente, poderá ser a opinião do apresentador.
É simples.
Mas há quem, recorrentemente, assim não entenda e não perca, nunca, seja a que pretexto for, oportunidade para manifestar o seu azedume ao Beja Santos.
Não chateia, mas é triste.
"Que Deus Nosso Senhor nos valha"!

Hélder Sousa