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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26173: Nos 500 anos do nascimento do nosso poeta maior, Luís de Camões (c. 1524 - c.1579/1580) - Parte I: "Soube moldar o génio de todo um povo nessa língua portuguesa que, como escreveu Engels, é como as ondas do mar sobre flores e prados " (António Graça de Abreu. In "Diário Secreto de Pequim",. inédito, 12 de setembro de 1980)(



Camões (c. 1524 - c.1579/80)  e Engels (1820-1894)



António Graça de Abreu,
Pequim, 1980
António Graça de Abreu

(i) viveu na China, em Pequim e em Xangai, entre 1977 e 1983; 

(ii) foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras; 

(iii) na altura, ainda era, segundo julgamos saber, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduíno Gomes), alegadamente o único (dos portugueses) reconhecido pela República Popular da China;

 (iv) ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74);

 (v) membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de três centenas e meia de  referências;

(vi) compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais; 

(vii) é um cidadão do mundo, poeta, tradutor, reputado sinólog, escritor, autor de mais de 2 dezenas de títulos publicados;

 (viii) nasceu no Porto em 1947; 

(ix) é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro.
 

1. Mensagem do Antonio Graça de Abreu:

Data: 1 de novembro de 2024 01:05
 
Assunto: Camões, Engels e a China n
o meu 'Diário Secreto de Pequim0, inédito, escrito há 44 anos atrás.


Pequim, 12 de Setembro de 1980

No número deste Setembro de 1980, a revista China em Construção, edição em português, a propaganda, a divulgação oficial de tudo o que é China comunista, elaborada aqui nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras (onde, com a Adélia Goulart, trabalho há mais de um ano), saiu um extenso texto meu. 

Antes da publicação, o que escrevi e que passo agora integralmente a transcrever, foi traduzido para chinês e levado à consideração, ou chamemos-lhe assim, foi à censura dos nossos poderosos chefes chineses. Não me cortaram uma só palavra, não limparam uma vírgula, passou tudo pelo entendimento do pente de quem manda. Aí vai o meu texto:


4º  Centenário de Luís de Camões comemorado na China

Nos últimos dias de Junho passado, tive a honra de participar numa pequena reunião e convívio luso-chinês realizado na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim que teve como motivo a comemoração do 4º Centenário da morte do maior poeta português, Luís de Camões (1524-1580).

Foi um encontro muito simples, mas cujo significado e importância merecem destaque no contexo das relações culturais entre Portugal e a China. Quatro alunos dos cursos de Língua e Cultura Portuguesas da Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim disseram um soneto e uma redondilha de Camões, Alma minha gentil que te partiste e Descalça vai para a fonte, em português e numa bonita tradução para chinês.

Vieram a esta Faculdade, o embaixador de Portugal na China, Dr. António Ressano Garcia, o conselheiro da Embaixada, Dr. João de Deus Ramos, a profª Conceição Afonso, eu próprio, o vice-director da Faculdade e decano dos cursos de Estudos Ibero-Americanos, prof. Liu Zhengquan e, fundamental, as quase quatro dezenas de chineses que na capital da China estudam a língua portuguesa.

 Sob a égide de Camões, as pessoas encontraram-se, conversaram, deram conteúdo a uma das mais bonitas palavras da língua chinesa, youyi 友 谊,que significa “amizade”.

O Embaixador de Portugal na China referiu a satisfação que sentia, por, a propósito de Luís de Camões, se poder encontrar com tantos jovens chineses que estudam português e que, no futuro, desempenharão um papel importante nas relações não só entre Portugal e a China, mas entre a China e o vasto mundo da língua portuguesa.

Que interesse poderá ter hoje recordar, na República Popular da China, o grande poeta português quando este país se procura projectar no futuro através das “quatro modernizações”?

Os maiores poetas -  na China um Qu Yuan, um Li Bai, um Du Fu, em Portugal um Camões ou um Fernando Pessoa -, os nossos maiores poetas não morrem, são passado, presente e futuro e continuam, século após século, a ser a voz de todo um povo.

Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no extravagante diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.

Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou activamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.

Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. 

De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou o ilustre peito lusitano e os que entre gente remota edificaram "Novo Reino que tanto sublimaram.”

 Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido “no gosto da cobiça e da rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza". 

Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.

Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. 

Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, “um socialista antes do tempo”, como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:

Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…


Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, “Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante”:

Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:

Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.


Camões, um colonialista? 

Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo, praticamente, nos últimos anos da sua atribulada existência, de esmolas, de caridade, de amigos.

Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava e se abria a todos os homens.

Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as “memórias da alegria”, essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.

O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que “é como ondas do mar sobre flores e prados” e depois confessa-lhe que, de manhã cedo, gosta de “se sentar num jardim com o o sol batendo-lhe nas costas lendo Os Lusíadas.” 

O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas?

Um historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:

“O português de Camões foi moldadado pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e ao amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos os homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra.”[1]

Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua portuguesa que, como escreveu Engels, “é como as ondas do mar sobre flores e prados.”

António Graça de Abreu
__________

[1] Jaime Cortesão, História dos Descobrimentos Portugueses, III vol., Lisboa, Círculo de Leitores, 1979, pag. 219.

(Revisão / fixação de texto: LG / Não atualizámos a ortografia, do textro, que é de 1980)

sábado, 20 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25764: Os nossos seres, saberes e lazeres (637): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (162): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Não chegou a 20 anos, mas posso afirmar que conheço alguma coisa do chamado Pinha Interior, a área que melhor percorri abrangeu os concelhos de Figueiró dos VInhos, Pedrógão Grande, Oleiros e Sertã. Vindo de Lisboa, esta romagem de saudades, pois já não tenho idade para andar 2h30 de carro para cima e outro tanto para baixo fora os percursos à descoberta de curiosidades, era inevitável começar por Figueiró, um concelho aprazível, com belos recursos naturais e património edificado digno de visita. Por aqui começa a romagem, uma visita a uma exposição em que José Malhoa, que aqui viveu e morreu, pontifica. Esta foi a primeira etapa, prometo mais.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (162):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 1


Mário Beja Santos

Aí pelo virar do século, num daqueles jornais que então se publicavam sobre as diferentes regiões, vi a notícia de que estava à venda um casebre para reconstrução numa aldeola do concelho de Pedrógão Grande. Aproveitando uns dias de férias nas aldeias serranas da Serra da Lousã, no regresso para lá me encaminhei, massa florestal densa, marcas da interioridade chocantes com casas derruídas, lugares espectrais, largo era o abandono. Prosseguindo por terra batida, lá se encontrou a casa abandonada, e pronto começou um amor à primeira vista. O lugar chama-se Casal dos Matos, freguesia da Graça, reconstruiu-se aos poucos aquela casa de agricultor, o proprietário era conhecido por Manuel Arrependido, tinha mulher e quatro filhas, estas e os respetivos maridos irão comparecer na Conservatória de Pedrógão Grande para fazermos a escritura. Aos poucos a casa tornou-se um brinquinho, sub-repticiamente fui adaptando os espaços, fiz uma biblioteca, comprei dez estantes no mercado de Figueiró dos Vinhos, atulhei-a com milhares de livros. Lancei depois um olhar para uma outra casa abandonada numa encosta íngreme sobre a barragem do Cabril, a cerca de 7-8 km de Casal dos Matos. Novo empreendimento, dois deslumbramentos, mas psicologicamente não era confortável cuidar da casa de Casal dos Matos, fechá-la pouco tempo depois abrir outra. Felizmente que apareceu um casal de professores de ginástica com a proposta de trocar uma fração num condomínio junto a Tomar, proposta irrecusável, houve disponibilidade para ficar mais tempo na barragem do Cabril e conhecer melhor toda aquela região de Sertã, de Oleiros, de Proença-a-Nova. Enfim, anos suficientes para deixarem boas memórias, agora que a idade convida a outras medidas de sensatez, assentei arraiais num lugarejo do concelho da Lourinhã, agora estou a cerca de uma hora de Lisboa, a atmosfera é outra, bem-parecida com a Foz do Arelho, onde passei férias em casa dos meus padrinhos.

Pois bem, delineei uns escassos dias de férias para romagem de saudades, contornei Tomar, entrei no que se chamava o IC3, parei em Cabaços para comer uma sopa de couve troncha, umas queixadas no forno, refastelado, avancei em direção a Valbom, um belo passeio na margem da barragem da Bouçã, Figueiró à vista, depois da Foz do Alge. Figueiró tem o encanto de parecer um jardim, a primeira etapa era mesmo ir visitar o Centro de Artes e a casa do pintor José Malhoa, chamada O Casulo. Era uma tarde um tanto chuviscosa, eu procurava indícios de recantos que sempre me fascinaram, azinhagas, quelhas, o campo quase em permanência dentro da vila.

A visita ao Centro das Artes era ponto assente, havia uma exposição de importantes naturalistas, sempre com o predomínio de obras de Malhoa, muitos empréstimos do Museu Nacional de Arte Contemporânea, da Casa-Museu Anastácio Gonçalves e de particulares, enfim, uma discreta homenagem a Malhoa que viveu tantos anos aqui em Figueiró. Um escultor da terra, Simões de Almeida, tio, conseguiu atrair jovens pintores que andavam ávidos por paisagens, queriam captar o sentimento na paisagem e os efeitos da luz na cor das casas, atraiu-me José Malhoa e Manuel Henrique Pinto, o aliciamento tinha a ver com os contrastes da paisagem e a boa luz. Estes jovens tinham o ávido por captar o “natural”, estavam convictos da verdade na arte, apreciavam imenso o trabalho de Silva Porto.

A exposição tem como envolvente os naturalismos, cenas de feira, vendedeiras, trabalhos em meio rústico, pormenores do património unificado, retratos, há muito Sol, há também cenas de motivação marítima, e em dado momento, frente a uma pintura de Malhoa, chamada Outono, questiono se aquela paisagem ao ar livre não anuncia de algum modo o impressionismo. Uma bela visita que recomendo a quem ali vive e arredores, a conservadora do Museu Nacional de Arte Contemporânea, Maria Aires Silveira, elaborou uns textos que melhor ajudam a compreender a reunião destas peças, fundamentalmente da primeira década do século XX, são um esplendor dos naturalismos, exatamente no tempo que começam a trabalhar os artistas da primeira geração do modernismo, que trazem uma profunda rotura estética.

E não adianto mais, aqui deixo um punhado de imagens tiradas do Centro de Artes, eu estava feliz da vida neste primeiro dia de romagem de saudades, pois esta Figueiró foi longamente visitada durante anos, quando ali estava era obrigatória a visita ao mercado aos sábados, e não havia visitante da minha casa que não viesse aqui ver a igreja matriz, o centro cultural recebia bons filmes aos fins de semana, percorriam-se as azinhagas e era indispensável ir até às Fragas de S. Simão, de onde se aprecia um deslumbrante panorama, a seu tempo, nesta romagem, haverá visita. Até breve!
Camões, escultura de Simões de Almeida, tio
José Malhoa, Inundação da Ribeira de Santarém
José Malhoa, Campanário de Figueiró de Vinhos
José Malhoa, À Beira-Mar
Ninfas do Mondego (Lusíadas, canto III), Simões de Almeida, sobrinho
Silva Porto, Paisagem
João Vaz, Barcos
José Malhoa, Retrato da minha mulher
José Malhoa, Clara
José Malhoa, Quelha de Figueiró
José Malhoa, Apoteose da Lagosta
José Malhoa, Outono

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 13 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25741: Os nossos seres, saberes e lazeres (636): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (161): As cores da primavera e cumprimentos a Velásquez na Gulbenkian (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25625: Efemérides (440): 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Excertos de "Em foco", por Ana Rita Carvalho, Jornal do Exército, nº 730, junho de 2023

(...) Comemora-se, a 10 de Junho, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. 

A celebração da data nacional remonta a 1880, ainda na vigência da Monarquia, quando se assinalou o tricentenário da morte do poeta Luís Vaz de Camões, devendo-se à iniciativa de Teófilo Braga e de uma comissão executiva, curiosamente composta, na sua maioria, por republicanos. Foi contudo o deputado Simões Dias  quem levou ao parlamento um projeto para que o dia 10 de Junho fosse considerado o dia festivo nacional e assim viria a ser. 

A evocação do poeta maior da Língua Portuguesa e a sua identificação com o Dia de Portugal adquiriam então um grande simbolismo, pautado também por forte marca ideológica, fazendo reemergir o lado épico da História, tendo nesse contexto particular um sentido regenerador, o de recuperar um passado glorioso. E assim prevaleceria. 

A figura inigualável de Camões desde há muito se tornou um símbolo de Portugal e é quase um lugar-comum citar o Poeta nos discursos oficiais, sendo ele um referente máximo dos valores e da cultura nacionais, convertido numa espécie de brasão, uma imagem representativa de um percurso de vida que condensa a nossa História, feita de ciclos de grandeza e decadência. 

A comemoração do tricentenário da morte do Poeta, em 1880, provém de um “culto da humanidade” e de um sentido laico (herdado da Revolução Francesa), veiculado em “representações simbólicas do Estado-Nação para consensualizarem o seu poder (…) substituindo formas e funções do ritualismo religioso para construir uma nova memória nacional” (...). 

Curiosamente, estas novas formas de ritualismo de cariz civil permanecerão, durante todo o século XX e até à atualidade, atravessando regimes políticos diversos e múltiplas representações sobre Portugal. 

 Já na vigência da República, em 1929, o 10 de Junho é decretado como feriado nacional, e durante o Estado Novo foi comemorado como “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”, sendo ainda presentes, na memória de muitos portugueses, os majestosos desfiles militares que decorriam na Praça do Comércio, em Lisboa, onde se homenageavam os combatentes em África e onde eram condecorados postumamente os militares mortos em combate. 

Depois do 25 de Abril de 1974, a data adquiriu nova designação, passando a “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, por decreto de 4 de março de 1977, assumindo novo simbolismo, ao abarcar as comunidades portuguesas espalhadas pelos cinco continentes, numa visão universalista, tendo a uni-las a Língua Portuguesa, com que o Poeta épico imortalizou os feitos do seu singular Povo.

A identificação com as Forças Armadas prevaleceu, atravessando regimes políticos diferentes e formas de celebração também diversas. Talvez porque a História de Portugal é indissociável das suas Forças Armadas e em particular do Exército Português, desde a fundação de Portugal até um passado mais recente. 

A associação do Exército ao Dia de Portugal sublinha, assim, o caráter eminentemente nacional da Instituição Militar. E também a sua crescente modernização e internacionalização, quando se pensa nos últimos 30 anos e na projeção de Forças Nacionais Destacadas, em que o Exército tem contribuído para a construção da Paz, a estabilização de territórios massacrados pela guerra, a reconstrução de Estados falhados, destacando-se na salvaguarda da vida humana, na defesa do Direito internacional humanitário e na promoção dos valores da liberdade e da democracia. 

Por outro lado, a participação do Exército em missões de apoio à paz, de cooperação e outras tem também reforçado o estatuto de Portugal em organizações internacionais, como a ONU, a UE e a NATO, bem como junto de países amigos e aliados, no âmbito da sua política externa.  

Porém, a identificação entre o Exército e a Nação, ou os Portugueses, subliminar ou explícita, através da celebração ritualizada de efemérides como o Dia de Portugal e de Camões, o Dia dos Combatentes ou o próprio Dia do Exército, significa também a partilha de uma identidade cultural, de um modo português de ser, de estar e de se relacionar com os outros. Um modo de ser e estar que tão bem têm caraterizado a atuação dos nossos militares além-fronteiras, facilitando a sua adaptação aos teatros de operações mais diversos, a integração entre povos e culturas em tudo diferentes, contribuindo inegavelmente para o sucesso das missões em que se têm envolvido. (...)

Também neste sentido a evocação de Camões ganha atualidade, tendo ele mesmo sido militar e percorrido os marítimos caminhos atravessados pelos navegadores, heróis da sua epopeia, Os Lusíadas, isto é, os Portugueses. E, como Poeta, cantado a viagem (e dispersão de uma alma errante) e abarcado a experiência de um momento entre todos glorificado na História de Portugal, fixando os mitos e as memórias mais vincados no coletivo da História, e convertendo a memória desse tempo em escrita poética, identificando-se ele próprio com o Portugal que cantou. Os Lusíadas são, por isso, o livro identificador de Portugal e não por acaso o seu autor é o rosto de uma Pátria que fez coincidir a data nacional com a da morte do Poeta. 

A viagem e a errância personificadas na vida e obra de Camões são também metáfora da História nacional e readquirem significado neste tempo de globalização e universalidade, em que as fronteiras tradicionais se esbatem e que as alianças de países – mormente a nível da Defesa e da Segurança, corporizadas pelas suas Forças Armadas – se torna uma realidade não só necessária mas imperiosa. É que, se por um lado se assiste ao fenómeno da globalização, por outro, reemergem separatismos regionais, cisões ideológicas e políticas e o acentuar de extremismos que resultam num processo contrário de fragmentação e atomização, numa lógica paradoxal. 

Comemorar o Dia de Portugal adquire renovado sentido num tempo de globalização, em que o País cumpre uma ancestral vocação, iniciada há seis séculos, quando se lançou ao “mar sem fim” como o definiu Fernando Pessoa, permanecendo, para além da memória histórica, uma comunidade de países unidos pela nossa língua. A Língua Portuguesa, que Camões elevou à mais apurada expressão, é hoje falada nos cinco continentes por cerca de 250 milhões de pessoas, sendo, como destacou o Chefe de Estado, “a quinta língua mais falada [no] mundo, a segunda língua mais falada no hemisfério sul, e, também, no hemisfério sul a segunda mais usada no digital.” 

Através da Língua Portuguesa e, muito para além do império territorial, permanecerá um espaço cultural que une os Países de Língua Oficial Portuguesa e neles encontra traços de identidade e  de afetividade reconhecidos num falar comum. 

A lusofonia constitui hoje o horizonte global de uma nova lusitanidade, onde o passado se reúne ao presente e a cultura e identidade nacionais dialogam com outras culturas, diálogo no qual sai reforçada a identidade indefetível entre Países de Língua Oficial Portuguesa. 

Neste espaço (e tempo) da lusofonia acentua-se igualmente a ligação entre os elementos da tríade “Portugal”, “Camões” e “Comunidades Portuguesas”, a que se acrescenta um quarto elemento comum e seu elo de ligação, as “Forças Armadas”, elementos todos eles convocados na data nacional.  (...)

Fonte: Excertos de Jornal do Exército > n.º 730, junho 2023 : Em foco > Ana Rita Carvalho  >  Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, pp. 6/10.

https://assets.exercito.pt/SiteAssets/JE/Jornais/2023/jun/730.pdf

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia...)

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quinta-feira, 30 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25582: O Cancioneiro da Nossa Guerra (25): Os Gandembéis - Canto IV, Estrofes de I a XI (Fim) (CAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)



Guiné > Região de Tombali >   Ponte Balana > CCAÇ 2317 (1968/69) >  Rio Balana  "O pequeno destacamento foi um bastião na defesa de uma ponte (sobre o rio Balana)n que a engenharia militar recuperaria, mas que também acabaria por ruir" > Álbum fotográfico de Idálio Reis > Foto 422 > "Aproveitando os restos da antiga ponte, davam-se belos mergulhos para banhos retemperadores"



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 (Gandembel, Ponte Balana, Buba e Nova Lamego, 1968/69) > Julho de 1969 > Foto do álbum de Idálio Reis: "Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos (...) Junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam-Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas. (...)".




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.


Fotos (e legendas): © Idálio Reis (2007).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Última parte de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco,
 parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010) (foto à esquerda): escrito em 1969,  retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*). Foi ecolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.) (*)


Sobre o Canto IV (úllima parte de "Os Gandembéis"), explicou-nos oportunamente  o Idálio Reis (**):


Depois de receber ordens para abandonar Gandembel, em 28 de janeiro de 1969, a CCAÇ 2317 passa por Aldeia Formosa e fixa-se em Buba, sede do COP 4 (comandado na altura pelo major Carlos Fabião). Em 14 de maio de 1969, deixa Buba e segue, de avião, para Nova Lamego, região do Gabu, onde irá terminar a sua comissão sete meses depois. Ali foram, finalmente, "gente feliz, sem lágrimas"... E ai tiveram tempo e talento para escrever Os Gandembéis.

Torna-se demasiado evidente que a Ilha dos Amores [Canto IX, Os Lusíadas, de Luís de Camões], tem nesta fase final uma emulação muito mais forte. E não poderia ser doutra forma, porquanto a nossa guerra de Nova Lamego também não tinha cotejo com a de tempos anteriores.

á uma forte razão para que entre um certo sentimento de lascívia neste poiso. A grande generalidade da Companhia, antes de chegar a Nova Lamego, não tinha visto uma qualquer mulher. A guerra tinha facetas pérfidas.

Em Gandembel, não havia população, e a visão de um rosto feminino só era propiciado aquando de alguma evacuação, onde ia sempre uma enfermeira paaquedista. Grotescamente, lembro que quando havia evacuações em que o pessoal sentia que o evacuado era um ferido ligeiro, tal até era motivo para que surgisse um maior aglomerado em torno do helicóptero, para bem visualizar a doce face da enfermeira.

Depois a tabanca de Buba era pequena, e atendendo à muita tropa que por lá andava, tudo estava sob controlo apertado. E um dia Spínola, a queixas do malogrado Carlos Fabião que lhe foi dizer que havia elementos da população que prestavam informações ao IN, o que até era verdade, fez um discurso inflamado à população traidora, e manda vir uma LDG, despachando-a rumo aos Bijagós. O nosso sueco José Belo, com mais tempo do que eu em Buba, talvez saiba melhor contar o enredo de tudo isto.

E depois a Companhia arriba a Nova Lamego, e houve forrobodó. Eu não fui com a Companhia para Nova Lamego, pois fiquei em Buba na entrega do material. Fi-lo voluntariamente, porquanto Carlos Fabião era um homem/militar excepcional; a sua conduta no PREC revela essa sua faceta humanista, e vem a acabar por ser postergado.

Fiquei talvez duas semanas em Buba, mais uma em Bissalanca nos Páras (foram as minhas férias), e quando arribo a Nova Lamego, a primeira notícia que recebo, é a seguinte:

- Meu alferes, metade da Companhia apanhou a venérea!

Os cuidados médicos lá foram sarando essas feridas. Sei de um que teve de ser evacuado para Bissau, e que de imediato foi recambiado para Lisboa. Como foi um homem que nunca mais deu notícias, não sabemos o que lhe aconteceu.

Mas Nova Lamego recuperou energias, aumentou consideravelmente a nossa autoestima, éramos gaiatos felizes. E as narrativas que impendem sobre aquela vila, tem forçosamente de conter essa situação de jovens, com pouco mais de 20 anos, a enlear-se com o sexo oposto, após 15/16 meses sem essa benesse. E, nos nossos convívios, vem sempre uma história de uma bajuda.



Canto IV - Estrofes de I a XI (Fim)

I
Deixando Buba, enfim, do doce rio
E tomando a mala já arrumada,
Fizemos desta terra certo desvio.
E para evitar qualquer cilada,
O Dakota tomámos, suave e frio,
Fazendo boa viagem e descansada:
Melhor é fazer uma viagem de avião
Que andar a pé de arma na mão.

II
Gabu se chama a terra aonde o trato
De melhor alimento mais florescia
De que tinha proveito grande e grato
O soldado que esse reino possuía.
Daqui à Metrópole, por contrato,
Não falta muito tempo à Companhia.
Por toda a parte um grito se apregoa:
“D´ora a sete meses estamos em Lisboa”.

III
Aqui, sublime, o descanso estava em cima,
Que a nenhuma parte se sustinha;
Daqui o fim da guerra sempre anima
O soldado que Nino, furtado tinha.
Logo após ele leve se sublima
A feliz mudança, que mais azinha
Tomou lugar junto do Batalhão
Mas continuamos a dormir no chão.

IV
Fulas são todos, mas parece
Que com gente melhor comunicavam:
Palavra alguma dele se conhece
Entre a linguagem sua que falavam,
E, com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro que de várias cores se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.

V
Já néscios, já da guerra desistindo,
Uma noite, de amor prometida,
Nos aparece de longe o gesto lindo
Da negra Bajuda, única, despida.
Como doidos corremos, de longe abrindo
Os braços para aquela que era vida
Deste corpo, e começámos os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

VI
Formosas são algumas e outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas,
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas triagas.
Ao pescoço e nos braços trazem cadeias
De contas feitas com sábias magas.
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.

VII
Alguns, por outra parte, vão topar
Com bajudas despidas que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

VIII
Todas de correr cansam, bajuda pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu de mim foges para a mata escura?
Quem te disse que eu era o que te digo?
Deixa-me ir contigo nesta aventura
E no capim vem sentar-te comigo.
Já que desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma.

IX
Já não foge a bela bajuda tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

X
Oh! Que famintos beijinhos na testa,
E que mimoso choro que suava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que amor com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

XI
Ao fim de tanto amor e falsas guerras
Finalmente chegou a hora desejada;
Das gentes nos despedimos e destas terras
Com furiosos gritos e alegria desusada,
Por voltarmos às metropolitanas serras,
Pois temos a comissão terminada.
Não se indigne o herói nem a Pátria querida
Que, por seu nome, aqui muitos deram a VIDA.

(Revisão / fixação de texto: ID / LG)

______________


Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25573: O Cancioneiro da Nossa Guerra (24): Os Gandembéis - Canto III, Estrofes de I a VIII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)


(**) Vdf. poste dfe 21 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9778: O Cancioneiro de Gandembel (8): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte VIII): Nova Lamego e Cansissé, a " Ilha dos Amores" do pessoal da CCAÇ 2317 (Idálio Reis)

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25552: O Cancioneiro da Nossa Guerra (23): Os Gandembéis - Canto II, Estrofes de I a XVI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)











Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da dura vida quotidiano dos homens-toupeira, que tiveram de construir de raíz e defender, num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana. Total de ataques e flagelações: 372.  

De abril a maio foram ainda auxiliados pelos veteranos da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)... com quem, entre outras subunidades,  fizeram, por ex., a Op Bola de Fogo... Na última foto, já de janeiro de 1969, "uns dias antes do abandono de Gandembel/Balana [ em 28 de Janeiro de 1969] Spínola também viria cá despedir-se". Mas a primeira visita terá sido em 26 de maio de 1968. 

Fotos do notável álbum de Idálio Reis e seus camaradas.


Fotos (e legenda): © Idálio Reis (2007). 
Todos os direitos reservados. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 



1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco, parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.) (*)


O lançamento do livro, uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné, foi feita feito no Palace Hotel, em Monte Real, em 21 de abril de , no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.(**)

Os Gandembéis > Canto II, Estrofes de 1 a XVI

 

Capa do livro do Idálio Reis



I
Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida;
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.

II
Dali para Changue-Iaia se parte (9)
Onde as tropas estavam temerosas
Para que à gente mande que se aparte
Da mata inimiga e terras suspeitosas
Porque mui pouco vale esforço e arte
Contra infernais vontades enganosas;
Porque na estrada rebentam fornilhos
E há mais noivas por casar e mães sem filhos.

III
Agora nestas partes se nomeia
Simões furriel, o africano Fome,
Coelho transmissões, que se arreia (9)
Das vitórias da Pátria sem nome.
Aqui, enquanto as minas não refreia
O soldado Pacheco fica informe.
Um braço do forte Quicão aparece
E o coração de todos, pela dor, escurece.

IV
Assim, nesta incógnita espessura
Para sempre deixámos os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura
Sempre connosco foram aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer negras terras, quaisquer outeiros
Estranhos, assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

V
Mas o magriço, que já então lhe convinha
Tornar a Bissau, acostumado, (10)
Que tempo concertado e ventos tinha,
Para ir buscar o descanso desejado.
Recebendo o piloto que lhe vinha
Foi dele alegremente agasalhado;
Rapidamente no helicóptero entrou
E, sadicamente, c'o a mão ligada acenou.

VI
Jorge de Moura, o forte Capitão (11)
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e altivo coração,
A quem a Cunha sempre favorece,
Para aqui se deter não vê razão,
Que sequiosa a terra lhe parece
Por diante passar determinava
E assim lhe sucedeu como cuidava.

VII
Tamanho o ódio foi e a má vontade,
Que ao soldado súbito tomou,
Sabendo ser sequaces da Verdade
Que o Filho de David nos ensinou.
Pois o Maia, com gana e virilidade (12)
Da companhia as rédeas tomou.
E foi assim, à base de mérito e favores
Que este se encheu de louvores.

VIII
Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Cremos nós, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora lusitano,
Que durara ele tanto obediente?
Porventura, o que será desta gente?

IX
Imagine-se agora quão cuidados,
Andaríamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados.
Por climas e por terras não sabidos!
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga da nossa Humanidade.

X
Enquanto os deuses do QG famoso
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em jantar lauto e guloso
Formando um concílio indiferente;
Bebendo vinho fino e espumoso
Vão para a piscina conjuntamente
Convocados da parte do Melhor
Onde domina o Chefe do Estado Maior.

XI
E enquanto isto se passa na formosa
Ilha do Bissau omnipotente,
Defendia a terra a gente belicosa
Lá da banda do Guilege muito quente,
Entre a fronteira da Guiné e a famosa
Base de Salancaur, o sol ardente
Queimava então os homens, que Tifeu
C'o temor grande em heróis converteu.

XII
E o velho careca, de aspecto venerando,
Chefe da Secretaria, cheia de gente,(13)
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes o lápis, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que em nós em volta ouvimos claramente,
C'um saber só de guerras feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

XIII
Ó gloria de mandar, ó vã cobiça,
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nos soldados experimentas!

XIV
A que novos desastres determinas
De levar esta Companhia e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas,
Debaixo de algum louvor proeminente?
Que promessas de paz e de minas
Levantadas, que lhe farás tão facilmente?
Que vida lhes prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

XV
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o quartel amigo,
Se enfraqueça e se vá deitando ao longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor inteiro
De Gandembel, do Balana e do Carreiro. (14)

XVI
E tu, Comandante, de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não olhes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
E mais, pois excedes em ligeireza
Ao vento leve e à bala bem mandada,
Não esqueças de defender o quartel
A que nós outros chamamos Gandembel.


(Continua)

(Revisão / fixação de texto: IR / LG)

__________________


Notas de IR/LG:

(9) Referência ao trágico dia 4 de agosto de 1968 em que a CCAÇ 2317 perde, em combate, 4 dos seus elementos, na sequência de uma coluna logística, proveniente de Aldeia Formos, perto da ponte sobre o Rio Changue Iaia. 

Foram eles o fur mil at inf Abel Gomes Simões (natural de Montemor-o-Novo), o sold at inf António Pereira Moreira e o sold at inf Eduardo Costa Pacheco, ambos de Paços de Ferreira, e ainda o sold trms inf Manuel Roxo Coelho, natural de Castelo Branco. Morreu ainda um soldado do Pel Caç Nat 69 (referência no poema ao "africano Fome" ?). Há ainda dois feridos graves, que serão evacuados para Lisboa.

(10) "Magriço": referência a Spínola ou mais provavelmenet ao capitão (mais ausente que presente) da Companhia ?... De qualquer modo, no dia 26 de Maio [de 1968]  Spínola, ainda com poucos dias no cargo das suas funções de comandante-chefe, visita Gandembel logo pela manhã e sem qualquer aviso prévio.

(11) Cap inf Jorge Barroso de Moura,  hoje ten-general,  terá ficado estava longos períodos em Bissau por razões de saúde.   Parece haver um contencioso (uma "pedra no sapato") entre ele e os seus homens.  Na prática foi substituído pelo alf mil at inf Mário Moreira Maia, o segundo comandante da companhia. Já no fim da comissão, em Nova Lamego,  a Companhia teve um capitão do quadro, de nome Pinto Guedes, e que fora integrado ab initio na CCS, segundo informação do Idálio Reis.

(13) O chefe de secrataria era o o 1º srgt inf  António Conceição Martins.

(14) Carreiro: corredor de Guileje, corredor da morte (NT), "carreiro do Povo" (PAIGC)...



Guiné > Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gandembel e Changue Iaia.
  
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

.

Leiria > Monte Real > Palace Hotel > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012 > 

Sessão de lançamento do livro do Idálio Reis,  "A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné - Gandembel / Ponte Balana" >  Os seis magníficos (Ou "gandembéis") gandembelenses presentes na sala... Ao centro, o Idálio Reis que, juntamente com o Joaquim Gomes Soares (o da ponta direita), eram os únicos representantes da CCAÇ 2317. Os restantes representam outras subunidades que passaram por (ou intervieram em) na mítica Gandembel/Ponte Balana: da esquerda para a direita,   o Eduardo Moutinho dos Santos, ex-cap mil grad inf  (que comandou a CCaç 2381,  "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Buba, Empada, 1968/70),  o José Manuel Samouco, ex-fur mil armas espadas, também da CCAÇ 2381 (e natural de Torres Vedras), o Hugo Guerra (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana,Chamarra e S. Domingos, 1968/70, hoje Cor DFA reformado, e que fazia anos nesse dia), o nosso Zé Teixeira, outro Maioral (que nos emocinou a todos, em 1 de março de 2008, na sentida homenagem que fez nas ruínas de Gandembel a todos os combatentes que ali, em pleno "carreiro" ou "corredor da morte" ( lutaram, morreram, foram feridos, sofreram, entre abril de 1968 e janeiro de 1969)... 

Esteve no encontro mas faltou à foto de grupo o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69)... Faltou também o Alberto Branquinho, que desta vez não pôde comparecer ao encontro. Faltou também, infelizmente para sempre, o João Barge (1944-2010)... Faltaram outros camaradas ligados à história de Gandembel, de 1968/69 (os páras do BCP 12, as enfermeiras paraquedistas, embora uns e outros estivessem representados, e bem,  no nosso encontro, etc.).

Foto (e legenda) © Luís Graça  (2012). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série >

21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25547: O Cancioneiro da Nossa Guerra (22): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de XII a XXVII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69

19 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)

(**) Vd. poste de 27 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9813: VII Encontro Nacional da Tabanca Grande (16): Um momento alto: o lançamento do livro do Idálio Reis (Parte I): um abraço solidário para todos os nossos amigos guineenses, na pessoa do Pepito e do Cherno Baldé, nossos grã-tabanqueiros, que estão em Bissau... Um voto de esperança e de confiança no futuro da Guiné-Bissau!!!

domingo, 19 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)



Leiria Monte Real > Palace Hotel Monte Real > 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional da Tabanca Grande > A paixão do teatro e da Guiné juntaram o João Barge e o Carlos Nery (n. Funvchal, 1933).... "Os Gandembéis", poema de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana.

Infelizmente o João Barge iria morrer uns escassos meses depois, no príncipio de dezembro de 2010.(*)





Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional  da Tabanca Grand3e > O saudoso João Barge (1944-2010), ao meio, com o Idálio Reis (à direita, segurando uma cópia das letras de "Os Gandembéis", o Cancioneiro de Gandembel, uma paródia de "Os Lusíadas", Canto I / 27 Estrofes, Canto II / 16 estrofes, Canto III / 8 estrofes e Canto IV / 11 estrofes) (**).

Do lado direito, o camarada Eduardo Moutinho dos Santos, ex-capitão miliciano (que comandou a CCaç 2381 "Os Maiorais", 1968/70),  hoje advogado e antigo presidente da Mesa da Assembleia Geral da ONG Tabanca Pequena (Matosinhos).

O João, já o conhecia, superficialmente, de um dos primeiros convívios da Tabanca do Centro. Natural de Aveiro, foi professor no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, o que não imaginava é que ele era também um dos homens-toupeira de Gandembel e um dos dois famosos letristas de "Os Gandembéis".

  

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Idálio Rodrigues F. Reis,
hoje eng. agr. ref.,
foi alf mil at inf, CCAÇ 2317 / BCAÇ 
2835 (Bissau, Bula, Mansabá,
 Guileje, Gandembel, Ponte Balana,
Aldeia Formosa, Buba,
Nova Lamego e Cansissé,
jan 68/ dez 69)

1. Não há nada parecido, até agora,  com a letra de "Os Gandembéis", dentro de "O Cancioneiro da Nossa Guerra"... É uma magnífica paródia de "Os Lusíadas", a obra-prima da  nossa literatura.

Arte, mestria, drama, tragédia, epopeia, humor de caserna!... Jã há muito que o dissemos: esta ma obra-prima mete o Cancioneiro do Niassa a um canto (sem desprimor para os anónimos autores, dos 3 ramos das forças armadas, da base de Metangula, que escreveram as letras das cerca de 4 dezenas de canções que integram o cancioneiro moçambicano).

Sabemos, pelo "cronista" da CCAÇ2317, o Idálio Reis, que estas estrofes foram  escritas, ou ou melhor, ultimadas, em 1969, já não no calor da batalha de Gandembel / Balana (abr 68 / jan 79), mas na retaguarda, na região de Gabu, para onde a companhia acabou a sua comissão de serviço no CTIG, em finais de nov 69)... 

Em todo o caso, ainda os bravos de Gandembel / Ponte Balana cheiravam a pólvora, a sangue, a suor e 
a  lágrimas:

(...) "Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida,
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida ?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. (...)

(Os Gandembéis, Canto II, Estrofe I. In: REIS, Idálio; A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana, ed. autor,. s/l, 2012, pág. 209)

Não temos dúvidas que isto foi escrito por gente com talento (literário), cultura, sensibilidade e... muitos dias de sofrimento e de insónias!!!

Quem foram os seus autores ? O Idálio Reis esclareceu algumas das nossas dúvidas, em mensagem datada de 10 de março de 2012 (**):
 
(...) "Quanto aos Gandembéis, obviamente que sabia da sua existência, mas só consegui obter uma cópia, já em período posterior aos meus apontamentos no Blogue. Como referes, é uma obra-prima. Está lá a história da Companhia, inclusive a do Bigode Reis, que pela Guiné toda faça espanto, de RDMs e recusas singulares, de Gandembel as terras e do Carreiro os ares. E há um fundo de verdade, nestas palavras.

"É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou. Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge, um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena.

"Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário." (*) (...)

O nosso blogue já tinha dado a conhecer ao mundo, uns anos antes, em 2007,  "o suplício de Sísifo" de Gandembel na série Fotobiografia da CCAÇ 2317 (***)...

Esta republicação, agora na série "O Cancioneiro da Nossa Guerra" (****), é uma homenagem a todos os "homens de nervos de aço", os "homens-toupeira",  que construiram e aguentaram, heroicamente, Gandembel, e muito em particular à memória do João Barge (1944-2010), que foi professor em Leiria, primeiro do ensino secundário (Escola Secundária Rodrigues Lobo, Leiria) e depois do ensino superior politécnico (Instituto Superior Politécnico de Leiria).  (Haveremos entretanto de descobrir quem foi o  coautor da letra, o furriel miliciano que era professor primário; merece também o nosso apreço e homenagem.)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel  (vd. carta de Guileje, 1956, escala 1/50 mil)> CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969) > 1968 > Não confundir "Os Gandembéis" com o "Hino de Gandembel"; e apropósito,  será este o misterioso autor da letra (e da música) do Hino de Gandembel ? 

Podemos imaginar que sim... Aí está o homem-toupeira, o homem de nervos de aço de Gandembel/Ponte Balana, fazendo da pá de trolha a viola de baladeiro, e ensaiando as primeiras notas e o primeiro verso do Hino de GandembelÓ Gandembel das morteiradas, /Dos abrigos de madeira / Onde nós, pobres soldados, /Imitamos a toupeira.(...). 

Um hino que o Idálio Reis e os seus camaradas da CCAÇ 2317 irão transformar mais  em Hino da Alegria  por ocasião dos seus convívios anuais...

Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


OS GANDEMBÉIS > Canto I (Estrofes, de I a XI)


I
As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por sítios nunca dantes penetrados
Passaram ainda além do Rio Balana,
E em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo Reino que depois abandonaram;


II
E também as memórias gloriosas
Daqueles heróis que foram dilatando
A Fé, o Império e as terras viciosas
Do Olossato e Mansabá andaram conquistando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar engenho e arte.


III
Cessem do Corvacho e do Azeredo
As conquistas grandes que fizeram;
Cale-se do Hipólito e do Loredo (1)
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto os que não tiveram medo
A quem Nino e Cabral obedeceram.
Cesse tudo o que a antiga musa canta
Que a dois três dezassete mais alto s’ alevanta.


IV
Por estes vos darei um Maia fero,
Que fez ao Moura e ao Calças tal serviço.
Um Nunes e um Dom Veiga (2), que de Homero
A Cítara para eles só cobiço;
Pois pelos Dois pares dar-vos quero
Os de Gandembel e o seu Magriço;
Dou-vos também o ilustre Goulart,
Que para si em Minas não tem par.


V
E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Bigodes Reis, que não me atrevo a tanto, (3)
Tomai as rédeas vós, do Grupo vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Começai a sentir o peso grosso
(Que pela Guiné toda faça espanto)
De RDMs e recusas singulares
De Gandembel as terras e do Carreiro os ares.(4)


VI
E, o que a tudo, enfim, me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar ainda por dizer.
Mas, porque nisto a ordem leva e siga,
Segundo o que desejais de saber,
Primeiro tratarei da larga terra
Depois direi da sanguinosa guerra.


VII
Partiu-se de manhã, c’o a Companhia,(5)
De Guileje o Moura despedido,
Com enganosa e grande cortesia,
Com gesto ledo a todos e fingido.
Cortam as viaturas a longa via
Das bandas do Carreiro, no sentido
De ir construir um quartel
Na inóspita e desabitada Gandembel.


VIII
Já na estrada os homens caminhavam,
O intenso capim apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Nas viaturas as minas rebentando;
Da negra missão os soldados se mostravam
Decididos; e os aviões vão apoiando
A coluna com muita acrobacia
Porque no mais não passa de "fantasia".


IX
As roquetadas vêm do turra e juntamente
As granadas mortíferas e tão danosas;
Porém a reacção não consente
Que deem fogo às hostes temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode, e com razão:
Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.


X
Da bolanha escondida, o grão rebanho,
Que pela mata foi aparecido,
Olhando o ajuntamento lusitano
Ao soldado foi molesto e aborrecido;
No pensamento cuida um falso engano,
Com que seja de todo destruído.
E, enquanto isto no espírito projectava,
Já com morteiros e canhões atacava.


XI
E uma noite se passou nesta rota
Com estranha emoção e não cuidada
Por acharem da terra tão remota
Nova de tanto tempo desejada.
Qualquer então consigo cuida e nota
No inimigo e na maneira desusada,
E como os que na errada missão creram
Tanto por toda a Guiné se estenderam.


(Continua)

(Revisão / fixação de texto: IR / LG)
___________

Notas de IR/LG:

(1) Cap Eurico Corvalho, comandante da CART 1613 (Guileje, 1967/68), falecido a 22/12/2011. 

 Cap Carlos Azeredo, cmdt da CCAV 1616 (BCAV 1879, que esteve no Olossato. 

Quanto ao Hipólito... Presumimos que fosse o ten cor inf  Carlos Barroso Hipólito, cmdt do BCAÇ 2834 ( Bissau, Buba e Aldeia Formosa, jan 68 / nov 69)

Quanto ao Loredo... Não descobrimos ninguémcom este apelido, podendo ser erro de transcrição. (Seria Moreno ou Loreno ?... Mas Loredo rima com medo...)

(2) Cap Inf Jorge Barroso de Moura, cmdt da CCAÇ 2313 (hoje tenente general reformado); Alf Mil At Inf Mário Moreira Maia; Fur Mil At Viriato Martins Veiga; Sold apont metralhadora Jerónimo Botelheiro Nunes (presume-se), cujo municiador morreu a 28/3/1968, nas imediações de Guileje

(3) Alf Mil At Inf Idálio Rodrigues F. Reis (hoje, eng agron ref, membro da nossa Tabanca Grande, residente em Cantanhede); Fur Mil At Inf Mário Manuel Goulart.

(4) Carreiro= Corredor de Guileje, corredor da morte...


(5) Depois de passar, na IAO,  por Mansabá e Olossato (de 15/2 a 15/3/1968), a CCAÇ 2313 seguiu de LDG para Cacine, e esteve em Guileje por pouco tempo (aí fazendo colunas logísticas para Gadamael e cortando cibes). 

A 8 de Abril de 1968 foi destacada para Gandembel, com a missão de construir um aquartelamento de raíz. Mas a 28 de março, tem os seus dois primeiros mortos, o Domingos Costa (Olival/Vila Nova de Gaia) e Manuel Meireles Ferreira (Pópulo / Alijó). A 8 de abril participa na Op Bola de Fogo

Esclarecimentos adicionais do Idálio Reis, emcomentário ao poste P9695:

Luís, quanto aos Gandembéis, é o seguinte:

(i) "Cessem do Corvacho e do Azeredo..." 

O saudoso Eurico Corvacho da CART 1613, e o Azeredo e Leme, tenente-general, ex-Chefe Militar do Presidente Mário Soares, e que se atravessou nos itinerários da Guiné em 2 sítios: no Olossato, comandando uma Companhia de Cavalaria, e em Aldeia Formosa, aquando do retiro de Gandembel, como comandante de um COP, já com a patente de major.

(ii) "Cale-se do Hipólito e do Loredo..." 

Este Hipólito refere-se ao comandante do BCAÇ 2834, Carlos Barroso Hipólito, mais afamado que o do meu BCAÇ. 2835, e com a particularidade de serem 2 Batalhões formados à mesma altura e na mesma unidade mobilizadora - o RI15. 

Quanto ao Loredo, diz respeito ao 2º comandante do meu Batalhão, de nome Cristiano da Silveira e Lorena. Por evacuação do Comandante inicial, Joaquim Esteves Correia, chegou a comandar o Batalhão durante um prolongado tempo, até à chegada do TC Pimentel Bastos (o nosso Pimbas), que se viu afastado do comando de um Batalhão mais recente que o nosso )o BCAÇ 2852), por imposição de Spínola, e que regressaria connosco a caminho da Metrópole.


(iii) "Por este vos darei um Maia fero..." 

Trata-se de Mário Moreira Maia, alferes da minha Companhia, hoje advogado no Porto. Era o alferes mais antigo, pois que era de uma incorporação anterior à nossa. Substituiu já mesmo no findar da IAO em Santa Margarida, o camarada Moutinho, que passados apenas 3 meses viria a constituir a CCAÇ 2381. De sublinhar que este Moutinho, nada tem a ver com um dos seus comandantes de Companhia - o Moutinho dos Santos.

De referir ainda, que o comandante da CART 1689, do Alberto Branquinho, também era Maia, mesmo Moreira Maia, mas este é tenente-general a residir no Porto.

(iv) "Que fez ao Moura e ao Calças tal serviço..." 

Este Moura, é Jorge Barroso de Moura, que comandou a minha CCAÇ 2317, hoje tenente-general. O Calças, é o já citado major Lorena, pois que era apelidado do Calcinhas, talvez porque o uso sistemático dos calções, era o que mais se coadunava com o seu porte físico.

(v) "Um Nunes e um Dom Veiga..." 

Este Nunes, com desgosto, não sei de quem se trata. O nome que foi aflorado, não é de todo. E não me é lícito fazer quaisquer suposições. Já quanto ao Dom Veiga, trata-se de um dos furriéis da Companhia e do meu grupo, Viriato Martins Veiga (homem que andou por Coimbra, e que há anos lhe perdi completamente o rasto).

3 de abril de 2012 às 19:47 
 

(*) Vd. poste de 7 de deembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7399: In Memoriam (66): A morte dolorosa de um dos últimos homens a chegar a Gandembel, o ex-Alf Mil João Barge (1944-2010)

Mensagem de Idálio Reis (...) O Barge chega a Gandembel, em rendição individual, para substituir o Francisco Trindade, atingido gravemente por uma mina anti-pessoal no fatídico local de Changue-Iaia. Estava-se em meados de Outubro de 1968, quando um estudante de Coimbra quase a finalizar o seu curso, chega àqueles aterradores confins de África.

Tendo sido bem recebido por todos, soube adaptar-se com enorme senso ao seu grupo de combate. Felizmente que a situação geral de Gandembel/Ponte Balana havia melhorado substancialmente, graças à acção notável que os pára-quedistas tinham conseguido levar a efeito.

Nos outros lugares, Buba e Nova Lamego, o João Barge haveria de continuar com a sua CCAÇ. 2317, até esta acabar a sua comissão. E a ele, faltava-lhe contar os últimos meses, agora em Bissau e entregue à parte logística de envio de víveres para as forças de quadrícula disseminadas pela Província.

No Gabú, onde a guerra se nos arredou em definitivo, relembro a sua intensa azáfama em preparar as últimas cadeiras do curso, que após o seu regresso definitivo, haveria de concretizar muito rapidamente.

Só nos viemos a reencontrar há cerca de 3 anos, já ele estava aposentado após um desempenho brilhante como Professor do Instituto Politécnico de Leiria. E a partir daqui, íamo-nos encontrando ainda que esparsamente, e uma das últimas vezes em que o instiguei a estar presente, foi ao último convívio da Tabanca Grande. Aqui, uma malta contemporânea de Buba, com o Carlos Nery a merecer justa honra de capitanear, viríamos a preencher uma mesa em franca confraternização. (...)

 

(****) Último poste da série > 18 de maio de  2024> Guiné 61/74 - P25538: O Cancioneiro da Nossa Guerra (20): Nemíades e bolanhíades, as "ninfas" ao estilo camoniano imaginadas pelos "Cobras" da CCAÇ 2549 (Cuntima, Nema e K3 Farim, 1969/71), do ex-cap inf Vasco Lourenço