sábado, 28 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10203: (In)citações (42): Bombeiro ou Militar, há que optar (José Martins)

 
1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2012:

Boa noite
Hoje resolvi antecipar um texto, cujo tema estava agendado para o inicio de Setembro mas, dada a sua "actualidade" iniciei-o logo a seguir ao jantar, e aqui vai para a vossa apreciação.
Não encarem o texto como critica ou provocação. Provocação é não haver hoje, como havia há 50 anos, aceiros e corta-fogos nas nossa matas.
José Martins


BOMBEIRO ou MILITAR? 
Há que optar!

Pelos ecrãs das televisões, altifalantes de rádios e pelos títulos dos jornais nos escaparates, apercebemo-nos da fase de incêndios que, desde há muitos anos por esta altura do ano, grassam por todo o país, portanto se

VEMOS, OUVIMOS e LEMOS, não podemos ignorar!

No meu ADN, não sei se já falei da mistura que nele existe, há uma parte de “militar”, esse já revelado, mas também existe uma parte de “bombeiro”.

Os meus primeiros anos de vida, passei-os entre carros de bombeiros e toques de sirenes.

O meu pai alistou-se após ter sido isento do serviço militar, na Corporação de Bombeiros Voluntários de Leiria, atingindo o posto de Chefe (de notar que as categorias de bombeiros à época, não correspondem às actuais). Depois a corporação passou a designar-se Bombeiros Municipais de Leiria, e o meu pai atingiu a categoria de Ajudante de Comando, categoria em que deixou de pertencer aos “Soldados da Paz”; o meu irmão João, o mais velho, também se alistou nos bombeiros de Leiria, após ter cumprido o seu serviço militar obrigatório; assim como um dos meus sobrinhos, o Fernando Miguel, alistou-se nos bombeiros de Avintes - Vila Nova de Gaia, ficando no serviço activo, até que um acidente de trabalho lhe ceifou a vida, aos 23 anos..

De notar que na época em que o meu pai e o meu irmão pertenceram aos bombeiros, muitos dos Comandantes das Corporações eram militares de carreira, normalmente Capitães ou Tenentes, que tentavam trazer a disciplina, organização e técnica para esta “profissão ou actividade”. Obviamente que nos Regimentos de Sapadores Bombeiros, que na altura só existiam em Lisboa e Porto, era obrigatório que o Comandante fosse um Oficial Superior do Exército – Coronel ou Tenente-Coronel – e da Arma de Engenharia.

Nos últimos dias, devido aos incêndios havidos na zona do Algarve e Madeira, ouvi dizer que se devia recorrer aos militares para reforçarem os elementos que se encontravam a combater os incêndios, não só nos locais já indicados, mas também noutros locais. Outras “vozes” sugerem que, sejam os militares a proceder à vigilância das matas, combinando patrulhamentos “tipo militar” com “actividade cívica”.

Em minha opinião e, conforme coloquei em título, há que optar se os soldados devem ser formados e treinados para missões de “guerra” ou de “paz”, mas paz no sentido de não guerra, e não as que são patrocinadas pela ONU e pagas pelos nossos impostos.

É que há erros que se pagam caros.

Em 1966, mais precisamente entre os dias 6 e 12 de Setembro, no decurso de um incêndio na Serra de Sintra, “alguém” se lembrou de mobilizar ao Regimento de Artilharia Antiaérea, aquartelado em Queluz, determinado número de militares para “colaborarem” no combate às chamas.

Em meu entender, nada de mais errado: Mobilizaram militares que, já mobilizados e treinados para operações de guerra, no então Ultramar, foram enviados para “uma frente de combate” para a qual não tinham qualquer preparação mas, como o rei manda marchar, o exército avança.

Até é provável que tenham sido deslocados para um local que conhecessem, por ter sido utilizado nos exercícios que, a todos os que estivemos em teatro de operações fomos adversos, mas que ao tomar contacto com a “realidade da guerra”, lamentámos não terem sido “alunos mais aplicados” perante as dificuldades encontradas.

Militares em acção na serra 

Resultado deste recurso: um grupo composto por 25 “miúdos” como nós, que dão início à missão que lhe foi cometida e, não se apercebem que num golpe de azar são envolvidos pelas chamas, vêm a encontrar a morte, carbonizados, na noite de 7 desse mês, no Monte do Monge.

São combatentes que morreram em combate, na Metrópole;
São combatentes que morrem, sem ter armas nas mãos;
São combatentes que partem, sem terem embarcado;
São combatentes que caem, em combate com a natureza.

Lápide em memória das 25 vítimas, no Alto do Monge 

No momento em que escrevo este texto, não sei a que unidade pertenceriam os militares tombados, nem qual o destino que seguiriam, caso tivessem acompanhado os seus camaradas de unidade na missão que lhes estava destinada, e para o qual tinham deixado a família, os amigos e a terra, para responderem ao chamamento da Pátria.

Este texto não era para ser escrito nestas circunstâncias, nem nesta data, pelo que será divulgado sem as informações que pretendia, mas as “sugestões e/ou comentários” que tenho ouvido levam-me a ser pressuroso, para alertar os comandos da Protecção Civil, quer nacional quer local, que colocar homens ou mulheres a cumprir missões que, por formação, não lhes estavam destinadas, podem não ser uma “boa solução”.

Porque o monumento referido se encontra em local de difícil acesso e, porque a sua memória não pode ser esquecida, aqui ficam o nome dos militares que tombaram em combate a um incêndio:

Aspirante a Oficial - Roalino Tavares;
Cabos - António Silva, Armando Lopes, Augusto Guimarães;
Soldados – João B. Ferreira, Manuel Silva, Rogério Ribeiro, António Rocha, Joaquim Rufino, Joaquim Horta, António Aleutério, Álvaro Silva, Amílcar Prata, Rogério Pinto, João Marques, Manuel Januário, António Cruz, Manuel Santos, Manuel Faria, Antero Teixeira, Ramiro Dias, José Negrão, João O. Ferreira, Damião Ramos, Pedro Rodrigues

José Marcelino Martins
24 de Julho de 2012

Outros sites a visitar:
Fogo e História
Serra de Sintra
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10173: Patronos e Padroeiros (José Martins) (35): São Lourenço de Brindisi, Frade, combatente e Santo

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10178: (In)citações (41): Serpentes, feitiços e casamentos inter-étnicos... (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P10202: Cartas do meu avô (15): Décima primeira (Parte III): a reforma, :a escrita, um ano em Perpigna, o regresso a Almada e à Caparica, e por fim... à justiça disse nada... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à esquerda, com os netos]. As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)

B. Décima primeira carta - Parte III – Aposentação

Por fim, minha mulher tinha sido autorizada a vir para Lisboa. Estávamos a viver em Almada. Todos os dias tinha de vir trazê-la a Algés e levar o Luís ao colégio no Lumiar. E , ao final do dia, ir buscá-los. O calvário das bichas na ponte…

Os meus dias de aposentado passava-os em Almada. Quando regressava de Lisboa ia direito até ao paredão da Caparica.

Aí ficava grande parte da manhã a escrever e a ler, frente ao mar. Nas esplanadas daqueles bares muito bem erguidos em madeira. O “fofinho” e o vizinho, de um casal de retornados de Macau. Não me lembra o nome. Tudo desapareceu, naquele majestoso paredão, na voragem da novi-pseudo-urbanização urbana. Pérolas a porcos…

Enquanto não chegou a reforma de minha mulher. Foram os tempos mais radiosos da minha vida. Sem saber como, dei comigo a escrever…escrever…como nunca o sonhara.

A minha autobiografia desde a infância até ao fim da guerra; ensaiei romances; abalancei-me pela poesia; pelos contos e artigos para três jornais semanários. Foi uma doce e consoladora catarse às nuvens pardacentas do meu passado. Esconjurei os fantasmas todos, tenebrosos, do meu tempo de seminário…os da guerra e os da Caixa.

Lavei minha cabeça de toda a poeirada que nela entrara. Vivi livre…Se me apetecia, pegava no carro e aí ia eu, até Alcácer, até Évora, Setúbal , Sesimbra…Fui feliz. Cheguei a desejar que minha mulher se reformasse também…para continuarmos tudo aquilo a dois.

Inesperadamente, por força e efeito das mudanças de cadeiras na direcção do Instituto, surgiu a inefável hipótese de ir com minha mulher em sabática, durante um ano para Perpignan. Com um bom e suficiente subsídio…

Que experiência magnífica!...

Aí houve um total reencontro nosso. Ela, sozinha, nas suas investigações moleculares, com os recursos devidos, sem ninguém a chatear, produziu um trabalho excelente, inovador, eu, a giboiar pelas bordas azuis do mediterrâneo, desde Argelès até Colliure, ou a contemplar extasiado as níveas vertentes altíssimas dos Pirinéus…ditando poesia e as minhas narrativas sem parar, para o meu portátil, frente ao lago remançoso da Vile Neuve de la Raho…

Foi então que se assistiu no mundo ao maior atentado que se podia imaginar. As duas gémeas de Nova York foram derrubadas por um avião. Soubemos pelo rádio de França, quando regressava-mos ao hotel de Rivesaltes. Ali, ainda ninguém sabia. Pedi à recepcionista para abrir a TV.b Ficamos aterrorizados com o que estava a acontecer.


Daí em diante o mundo inteiro ficaria outro com toda a certeza. Sangramos de dor e horror. Quando fui para o quarto escrevi assim:

AS DUAS GÉMEAS …

É preciso, de imediato,
Lavrar a terra
E fazer renascer,
As duas gémeas,
No sítio exacto,
Onde tombaram.

É preciso reerguê-las,
A toda a pressa,
E repor, ao alto,
O valor americano,
A quem o mundo,
Apesar de tudo,
Muito deve,
No presente
E no passado.

É preciso que,
Doravante,
Todo o mundo
Se entenda,
Como gente,
Senão igual,
Como companheiros
De viagem,
Pelo universo…

Se enterre,
Para sempre,
Sem retorno
E bem à vista
Essa loucura,
Estúpida,
Armamentista…

Se queime e se estiole,
De verdade,
Toda a cultura
De semente
Que não dê pão
Ou força
À humanidade…

Que o país rico
Dê a mão,
Sem pedir preço,
Ao que nasceu pobre,
Ficou doente,
Ou não vai à escola…


E se não responda
À carnificina,
Com outra,
Igual,
Ou pior ainda…
...

Quem previu,
Algum dia,
Que o bastião americano
Fosse, tão vilmente,
Apunhalado?!…


Perpignan,
( restaurante-bar No Names)
14 de Setembro de 2001- 11h e 12m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes

[Imagem, editada, da Wikipedia, com a devida vénia]

Acabada a sabática, com muita pena, regressámos a casa. Para a nossa vida habitual. A minha mulher retomou as suas investigações no instituto. Eu passei a levá-la e buscá-la, como antes. Durante o dia, passava parte da manhã junto ao mar na Caparica, a ler e escrever e depois vinha para o meu escritório de advocacia em Almada- Ficava pertinho do tribunal. A maior parte dos casos que tratei foram atribuídos pelo tribunal, como advogado oficioso, pago pelo Estado, segundo a tabela própria.

Advogado de quem provava não ter recursos para pleitear em tribunal. Foram sobretudo casos de instauração de divórcios, regulação do poder paternal ou acidentes de trabalho. Como estava frente à porta do tribunal, fui muitas vezes chamado para julgamentos de detenções em flagrante delito.

Os intervenientes eram sobretudo ciganos. Por roubos ou zaragatas. De tal modo que me tornei no advogado mais procurado por eles. O pior era receber os honorários. Muitas vezes fiquei apenas com a primeira parte. A segunda, como ficava para depois do julgamento, ficou por lá. Tive de assentar na exigência do pagamento antecipado.

O último que tratei foi de uma raparigona cigana vendedora de roupa ao ar livre. Havia um contencioso instalado entre a GNR e os vendedores ambulantes, sem licença.
Esta moça fora desapossada de tudo o que tinha exposto no chão por uma brigada vestida à paisana. Houve grande desacato entre ela, os familiares e os agentes. Por não serem reconhecidos como tal.

A apreensão e o julgamento foram imediatos. Fui chamado para a defender. Pedi para falar com ela a sós e recomendei que ela se comportasse ordeira e com respeito. Que confessasse a reacção que tomara, por irreflexão e desorientada com a perda da mercadoria. E que se mostrasse arrependida.

Qual quê!? Quando o agente começava a contar ao tribunal como tudo se passara, ela exclama em alta voz, como se estivesse na rua:
- Olha-me este grande aldrabão. Roubou-me tudo e ainda me prendeu.

Olhei para ela e dei-lhe a entender que não devia falar assim. Ela acedeu. O juiz enfureceu e quase lhe deu ordem de prisão. Desrespeito ao tribunal. Como se ela fosse uma cidadã de alto porte.

Não era caso para tanto…

O último caso que defendi em Almada foi o de uma brasileira, trabalhava de mulher a dias. Tinha sido posta na rua pelo companheiro. Se não fosse embora, ele dava-lhe cabo da vida… Provou-se que foram verdadeiras as ameaças. Ele mesmo confessou que ameaçou e que admitia que ela pensasse que ele era capaz de o fazer. No final, quem esteve para ser condenada foi a mulher…

Foi mesmo o derradeiro caso. Bastou-me de compartilhar naquele sistema em descalabro. Desiludido.

Fechei a porta ao Direito para sempre.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10188: Cartas do meu avô (14): Décima primeira (Parte II): De regresso a Lisboa, para o contencioso, nos serviços centrais da CGD... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10201: Um pouco da História da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73 (José Santos)

1. Mensagem do nosso camarada José Santos* (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73), com data de 22 de Julho de 2012:

Caro Luís
Aqui te envio um pouco da História da CCAÇ 3326

Um abraço
José Santos




COMPANHIA DE CAÇADORES N.º 3326

"OS SEMPRE OPERACIONAIS"

Ilha Terceira > Angra do Heroísmo > Monte Brasil > BII 17

Foto: © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados

A Companhia de Caçadores N.º 3326 teve como Unidade mobilizadora o Batalhão de Infantaria Independente 17 (BII17), Angra do Heroísmo, Açores.

A sua concentração teve início a 7 de Setembro de 1970, sendo esta unidade oriunda das ilhas dos Açores.

Neste dia 7 de Setembro de 1970, começou a instrução operacional terminando a 24 do mesmo mês, e os seus homens foram considerados prontos a 20 de Outubro 1970.

A 13 de Novembro de 1970 estas tropas embarcaram no navio Funchal com destino ao Continente, concretamente ao Centro de Instrução Militar de Santa Margarida, dando-se o início do IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional).

A 21 de Janeiro de 1971, pelas 12 horas embarcando no navio Angra do Heroísmo este fez-se ao mar, com o destino da Guiné-Bissau.

Navio Angra do Heroísmo > Coa a devida vénia a Dicionário de Navios Portugueses

A 26 do mesmo mês chegou a Bissau pelas 6 horas da manhã, a seguir a Companhia iria para o Depósito de Adidos, e pelas 15 horas teve lugar a cerimónia de boas-vindas pelo Governador e Comandante-Chefe General Spínola.

A 11 de Fevereiro 1971 a Companhia chegaria a Buba de LDG, e de seguida partiria em coluna militar rumo a Mampatá aonde chegaria pelas 15 horas. A partir dessa altura iria substituir a Companhia de Artilharia N.º 2519, que tinha terminado a sua comissão de serviço.

Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados .

A CCAÇ 3326 era comandada pelo Capitão Artª. Paula de Carvalho, oriundo da GNR.

Foi muito difícil a nossa missão, mas partimos para ela com o sentido de se fazer o melhor possível e tentar sair desta situação no longo período que se adivinha difícil, sem baixas de vulto.

Passaram-se períodos conturbados e a nossa acção daria frutos pelo desgaste que provocávamos ao IN.

Honrando a nossa divisa, "OS SEMPRE OPERACIONAIS", nunca nos deixámos levar por vencidos.

Tivemos unicamente um morto, não pela mão do inimigo mas por uma mina montada por nós, foi uma infelicidade este facto.

De registar a harmonia sempre reinante entre os elementos da Companhia e a população nativa, sendo a acção psicológica exercida uma constante para que desse o seu fruto, com a vontade evidenciada pelos naturais de quererem continuar a ser Portugueses.

Em junho de 1971, altura em que começavam a cair as primeiras chuvas, e a intensidade destas se fizeram sentir, principalmente as várias bolanhas nos itinerários, constituiu uma das muitas dificuldades sofridas por todos nós. A determinação e a vontade de vencer, mesmo com a roupa colada ao corpo pela chuva ou pela transpiração dos dias quentes de África era uma condicionante para cumprir o nosso dever porque uma das características do soldado Português era fazer o melhor em qualquer teatro de operações.

Depois de 18 meses neste inferno, Spínola retirou-nos deste local e fomos colocados em Quinhamel até ao final da comissão a 7 janeiro de 1973.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9705: Blogpoesia (185): Pelas estradas de Mampatá (José Santos)

Guiné 63/74 - P10200: Notas de leitura (385): "Guiné - 24 anos de independência - 1974-1998", de Zamora Induta (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 1 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
José Zamora Induta foi uma figura proeminente na área da Defesa da Guiné-Bissau e teve cargos elevados como porta-voz da junta militar e mais tarde como porta-voz do Estado Maior General das Forças Armadas durante o conflito político-militar de Novembro de 2000. O que o autor nos oferece é um apanhado de documentos, alguns deles preciosos, para entender as contestações às governações de Luís Cabral e Nino Vieira. A comissão de inquérito sobre o tráfico das armas é uma pela eloquente sobre a corrupção envolvendo figuras gradas da instituição militar, apercebemo-nos do enriquecimento ilícito desses mesmos militares e descobre-se como Nino Vieira partilhava com eles a pilhagem no Estado.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau vista por Zamora Induta

Beja Santos

“Guiné, 24 Anos de Independência, 1974-1998” é o título da obra de José Zamora Induta, ao tempo capitão-de-fragata da Marinha da Guiné e porta-voz do Comando Supremo da Junta Militar durante o conflito político-militar de 1998-1999 (Hugin Editores, 2001).

Lê-se o livro de fio a pavio e fica-se sem conhecer a opinião de Zamora Induta sobre estes 24 anos de independência, móbil do livro que se afoitou a escrever. Afinal, trata-se de uma recolha de documentos fundamentais com olhares alheios, lemos um livro que tem a opinião de outros. Não obstante, trata-se de uma recolha de inegável interesse tanto para o curioso do processo histórico da Guiné-Bissau como para o investigador que encontra aqui providencialmente textos de inegável interesse. A obra começa com uma apreciação de Luís Cabral sobre os seis anos da sua governação, justifica certo tipo de empreendimentos como o Complexo Agroindustrial do Cumeré, os projetos das pequenas indústrias de Bolama, a rede de eletrificação, a rede hospitalar, a prospeção de petróleo, a exploração da bauxite, elenca os apoios recebidos e deplora o desprezo a que Nino Vieira votou todas essas iniciativas. E diz sem qualquer rebuço: “Não acredito que a nossa Guiné seja um país pobre, inviável. A situação de quase calamidade a que chegou o país é da inteira responsabilidade do regime deposto. O nosso país era altamente respeitado no mundo, fazendo parte de um número restrito de países africanos considerados sem risco nos meios financeiros internacionais. Depois da Guiné se ter libertado do regime ditatorial e incompetente que a dirigiu durante quase 20 anos, deixando o país com dívidas inimagináveis, e ultrapassado um período de transição que nos dignifica e que deu, de novo, credibilidade ao Estado guineense, começamos agora a viver uma nova página da nossa História, com a realização de eleições gerais verdadeiramente livres”.

A seguir a uma menção sobre o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, o autor reproduz um artigo publicado no jornal “Nô Pintcha” acerca das execuções perpetradas pelo regime de Luís Cabral nas matas de Cumeré, Porto Gole e Mansabá, factos que ocorreram predominantemente em 1978. Nova lista, desta feita relativa aos acontecimentos do chamado golpe encabeçado por Paulo Correia, em Outubro de 1985 (caso 17 de Outubro) e que levou ao desaparecimento de combatentes e de intelectuais torturados até à morte nas prisões e outros que foram executados.

Chega-se finalmente ao fulcro do livro, as questões que antecederam o levantamento militar e o seu historial. A lista de implicados no tráfico de armas pasma pela natureza da corrupção ao nível da instituição militar. Antigos combatentes da luta de libertação fez publicar uma longa carta no Diário de Bissau em 28 de Fevereiro de 1998. Eles protestam: “Nós estamos fartos de uma Defesa sem leis, de uma Defesa com comandantes políticos que nada tem feito por este país e só defendem a pessoa do camarada Nino, por terem sido nomeados por este como contrapartida dos serviços sujos por eles prestados. Nós libertámos o país com as mãos limpas e não para aterrorizar com ameaças, com armas que pertencem ao próprio povo". E escrevem sobre oficiais que colaboram nesse trabalho sujo, traficando influências, enchendo os bolsos, vendendo armas aos rebeldes do Casamansa. É um relato tenebroso, as bandalheiras desta clique à volta de Nino demonstram a podridão a que chegara a presidência da república e a instituição militar.

Segue-se a transcrição integral do relatório da Comissão Parlamentar de inquérito sobre o tráfico ilegal de armas, publicado em 8 de Junho de 1998, seguramente o detonador do conflito armado. Preto no branco, os deputados passam em revista os diferentes casos escandalosos, analisam as denúncias, procedem a audições e a acareações, estudam o caso dos turistas franceses mortos em Casamansa, investigam o desaparecimento de inúmero material de guerra, deixam claro que o Presidente da República tinha conhecimento deste tráfico e que muitos dos envolvidos moviam-se no seu círculo privado de relações. O brigadeiro Ansumane Mané aparecia ilibado neste relatório, isto quando Nino Vieira premeditava a sua execução que tinha sido precedida da sua exoneração.

Todas as etapas do conflito, a partir de Junho de 1998, aparecem especificadas, os nomes e as atividades da Junta Militar, a ofensiva diplomática, os recontros que levaram ao desbaratamento das forças invasoras e ao progressivo isolamento de Nino Vieira dentro da península de Bissau. Vem inclusivamente descrito o governo de Unidade Nacional, presidido por Francisco Fadul, o aparecimento de uma força internacional de interposição até à rendição de Nino, são apresentados os documentos em que Nino Vieira pede asilo a Portugal.

No prefácio, Jaime Nogueira Pinto destaca o forte sentido da unidade nacional demonstrado pelo povo guineense, a moderação verificada e os baixos custos humanos e o baixo número de atos de vingança e retaliações. Como é sabido, a convulsão político-militar não abrandou com a eleição do presidente Kumba Ialá, deu-se o assassinato do brigadeiro Ansumane Mané e o país continuou adiado. O prefaciador julgava que apesar da fragmentação ética e da diversidade religiosa do seu povo que a Guiné iria resistir aos monstros do conflito tribalista. Está à vista de todos que um dos cenários possíveis para a tragédia que se vive na Guiné é de uma luta tribal entre balantas e outras etnias que poderão aparecer como catalisadores do elevado descontentamento da deriva, da fome e do desaparecimento da esperança na pseudo evolução na continuidade e tentativa de acalmia que parece ser a preocupação do atual governo, emanado dos golpistas e praticamente sem nenhum apoio da força maioritária, o PAIGC. Vamos estar atentos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10194: Notas de leitura (384): "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam" (José Brás)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10199: Memória dos lugares (190): Quinhamel e a sua piscina (Manuel Carvalho)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Carvalho (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2012:

[...] Vou enviar também algumas fotos da famosa piscina de Quinhamel, da qual o meu irmão falou em comentário e na qual só estive uma vez quando tirei estas fotos.

O Alf. artilheiro João Martins num post que publicou também fala numa Piscina em Quinhamel por alturas de 69/70 que julgo que só pode ser esta. Coisa que não faltava na Guiné eram piscinas como a de Quinhamel, era um fartar pelo menos para os operacionais. A grande diferença (e era mesmo muito grande) era que em Quinhamel entravamos sem arma e nas outras era com tudo.[...]



Quinhamel



"Piscina" de Quinhamel
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10191: Memória dos lugares (189): Jolmete, quotidiano da tabanca e aquartelamento (Manuel Carvalho)

Guiné 63/74 - P10198: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (15): A morte de Cabá Santiago, desertor do PAIGC e aliado das NT, em Bissorã, em outubro de 1974 (Henrique Cerqueira / Carlos Fortunato)




Guiné > Região do Oio > Bissorã > 13 de junho 1974 > "Cabá Santiago, ao meio, à sua esquerda o comandante do PAIGC da zona de Maqué, Joaquim Tó, que veio até Bissorã com um grande grupo de guerrilheiros. Vai existir uma reconciliação pacifica, sem retaliações, é o que é proclamado". Foto de Manuel Machado, ex-alf mil da CCAÇ 13. Legenda de Carlos Fortunato... Esta foto ter-lhe-á sido fatal... (Reproduzida aqui com a devida vénia...). (LG)


1. Comentário de Henrique Cerqueira ao poste P10189 (*)


Camarada Luís Gonçalves Vaz:

Eu estive em Bissorã desde finais de Novembro de 1972 até inícios de julho de 1974 [, como furriel mil da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72]. Em Bissorã estava na CCaç 13 e foi o meu grupo de combate que teve o primeiro contacto com o PAIGC nos inícios de Maio de 1974 no ponto de encontro entre Bissorã e Olossato,durante uma picagem de protecção a uma coluna de reabastecimento.

Logo nessa altura houve grande euforia entre as nossas tropas e o PAIGC e só posteriormente vieram ao nosso encontro na referida estrada uma "caturba" de civis (comerciantes) e traziam como companhia alguns dos altos comandantes do nosso batalhão.

Honestamente chegou a ser caricato o teor das conversas entre esses Comandos e os guerrilheiros (mas isso são contas de outro rosário).

Esta conversa toda que tenho aqui é para dizer que a partir desse dia os guerrilheiros do PAIGC. tanto em grupos como individualmente, passaram a entrar e sair completamente à vontade em Bissorã.

Ás vezes era caricato que os nossos grupos de combate continuassem a sair em patrulhamento e quase sempre nos encontrarmo-nos com guerrilheiros que iam visitar os seus familiares a Bissorã.

Bom. o que é certo é que em junho de 1974 não houve nenhuma invasão do PAIGC para capturarem o Cabá [Santiago] e se o fizeram teve de ser com auxílio dos nossos comandos e em segredo, caso contrário e pelo que ouvi mais tarde e já em Bissau vários desses "tropas" (ponho aspas porque o Cabá Santiago era totalmente autónomo e só saía em operações próprias e quase sempre na certeza de apanhar homens ou armamento,pois que ele, Cábá, era um antigo combatente do PAIGC e desertou para as nossas tropas,mas não obedecia a ninguém das tropas portuguesas).

Essa situação já era esperada pois que sempre que eramos atacados ficava sempre recados para o Cabá.

Nota: Os nossos soldados da CCAÇ 13 não foram maltratados e actualmente um dos meus antigos soldados, de nome Branquinho, até é chefe de tabanca, penso eu que em Inhamate. Por tudo isso acho estranho que seja verdade essa captura em Junho.

Desculpem lá este enorme texto mas o meu jeitinho para narrar é mesmo do piorzinho e daí esse texto enorme para expor pouca coisa.

Um grande abraço Henrique Cerqueira



2.  Comentário de L.G. e extratos de um texto de Carlos Fortunato:


Talvez o Carlos Fortunato, que foi fur mil da CCAÇ 13 (1969/71), meu contemporãneo (fomos no mesmo navio, o Niassa, a 24 de maio de 1974, eu pertencente à CCAÇ 2590 e ele à CCAÇ 2591) e que é hoje presidente da direção da ONGD Ajuda Amiga, mantendo frequentes e amistosos contactos com os seus antigos soldados e com as gentes de Bissorã (vai lá todos os anos...), talvez o Carlos Fortunato, dizia eu, nos possar dar mais pormenores sobre a morte do Cabá Santiago, que sabemos não ter sido em junho de 1974 (como sugere o Paulo Reis) mas sim outubro de 1974. O Carlos  não viveu esses trágicos acontecimentos, mas teve informação privilegiado sobre as represálias do PAIGC em Bissorã, em 1974 e anos seguintes, de que também foram vítimas alguns dos seus antigos camaradas da CCAÇ 13 (com quem continua a manter, ainda hoje, uma relação de amizade e de ajuda).

Aqui fica um excerto da sua página Guiné - História, em que "os massacres" (no plural) de Bissorã, baseando em testemunhos de antigos soldados seus (, constantes de 2 duas cartas, uma de 1982 e outra de 1988:

(...) Na primeira carta de 1982, é referido o nome de Cabá Santiago, conheci o Cabá Santiago, e posso contar um pouco da sua história, tendo por base aquilo que ele me contou, e o que eu conhecia a seu respeito.

Cabá Santiago era um individuo inteligente e com alguma cultura, tinha sido professor até aderir ao PAIGC, ai passou a ser professor e guerrilheiro, após muitos anos de luta, sem ver um fim à vista para esta, e percebendo que o PAIGC mentia nas suas mensagens de propaganda, acreditou que o melhor caminho a seguir era o apontado por Portugal, e aproveitou as campanhas de aliciação para os guerrilheiros abandonarem a luta, para se entregar.

Quando se entregou, Cabá Santiago passou a colaborar com as nossas tropas, integrando as milícias de Bissorã, como chefe de um grupo de milícias, e regressou à sua zona para combater o PAIGC.

Conhecendo alguns guerrilheiros, que viviam com a população, utilizava o seu estatuto de guerrilheiro, e mandava-os ir buscar as suas armas (cada um tinha escondido a sua no mato), e quando estes chegavam armados eliminava-os.

A guerrilha tinha o seu sistema de informação, nomeadamente através dos elementos da população de Bissorã, e Cabá arriscou muito naqueles dias, pois bastava ir a um local onde já se soubesse o que se passava, para ele ser um homem morto, e em breve a sua "cabeça ficou a prémio".

Cabá mesmo depois da sua "cabeça estar a prémio" pelo PAIGC, continuava a ser uma das armas mais destruidora existente em Bissorã, e não deixava de sair por vezes sozinho, e atacar os acampamentos inimigos, eliminando guerrilheiros, e capturando várias armas.

Escusado será dizer que para o PAIGC Cabá Santiago era um homem a abater a todo o custo, e por isso ele era sempre o último da coluna de milícias que comandava, pois tinha medo de ser morto pelas costas pelos seus próprios homens.

Pergunto aos leitores: o que acham que iria acontecer ao Cabá Santiago, quando fosse entregue o poder em Bissorã ao PAIGC, se mesmo durante o período de cessar fogo, o PAIGC continuavam a capturar soldados africanos, que nunca mais apareciam?

Cabá foi um dos que manifestou desconfiança, sobre o que iria acontecer.

Na verdade existia alguma desconfiança entre as forças africanas, e muitos aguardavam a decisão dos comandos africanos de entregarem as armas, para entregarem as suas, pois os comandos eram quem arriscava mais, dado o clima de animosidade que existia contra eles da parte do PAIGC.

O PAIGC também sentia desconfiança quanto ao rumo das negociações, e temia que o seu estatuto de estado independente, não fosse reconhecido por Portugal.

Aristites Pereira o secretário geral do PAIGC, refere no seu livro " Uma luta, um partido, 2 países", essa situação de desconfiança: "Na realidade, o PAIGC tinha razões de sobra para desconfiar das intenções do Governo português, na medida em que acrescia ao ambiente de suspeição reinante o facto de os comandos africanos se recusarem a desarmar-se, apresentando uma postura reivindicativa em relação ao Governo português pelos serviços prestados ao seu Exército e uma clara hostilidade em relação ao PAIGC. Em abono da verdade, o PAIGC chegou a estar preocupado com a situação, razão pela qual teve iniciativas unilaterais, que resultaram em contactos com os comandos africanos, chegando esse contacto a efectuar-se a 22 de Julho de 1974, em Cacine, com a presença dos capitães Saiegh e Sisseco, o alferes Barri e um sargento."

Como era previsível, Cabá Santiago foi o primeiro a ser morto. De acordo com o que me foi relatado por vários familiares de Cabá Santiago, a sua morte ocorreu em Outubro de 1974 a mando do comandante militar do PAIGC da zona. (...)

Cabá foi levado para o mato e morto juntamente com mais duas pessoas, passado algum tempo levaram e mataram mais dois chefes da milícia, Quebá Camará e Sitafá Camará, mais outra pessoa, depois foi um grupo de 25 pessoas que levaram e mataram.

Os africanos, graduados pelo exército português,  foram um dos principais alvos a abater, não sei se algum comandante da milícia conseguiu escapar com vida.

Os ex-comandos africanos do exército português eram outro dos alvos a abater, e muitos foram fuzilados pelo PAIGC.

As companhias de comandos africanos,  desde a sua criação em 1970, tornaram-se uma das forças de intervenção mais importantes, mas o seu número de baixas era elevado, recorrendo o exército às companhias de soldados africanos, para repor rapidamente a sua capacidade operacional.

Tenha Taca e Intonga Tchudá foram dois dos soldados da CCaç 13 que ingressaram nos comandos, mas muitos outros soldados da CCaç 13 seguiram esse caminho, e como é sabido o destino de muitos deles foi a morte após a independência, Tenha Taca e Intonga Tchudá foram dois dos que morreram. (...).









Em poste de 25 de maio de 2006, já tínhamos abordado, na I Série do nosso blogue, o caso do Cabá Santiago, bem como de militares da CCAÇ 13 que foram mortos pelas autoridades da Guiné-Bissau, a seguir à independência... A fonte era a mesma: Leões Negros (Página pessoal do Carlos Fortunato, CCAÇ 13, 1969/71). Tudo indica que o Paulo Reis tenha ido beber à mesma fonte... Ele, de resto, nunca chegou a ir à Guiné-Bissau, para recolher em primeira mão depoimentos de testemunhas oculares... E mostrou pouco rigor (, o que é indispensável em jornalista, e para mais em jornalismo de investigação) na transcrição dos dois chefes de milícia, Quebá Camará e Sitafá Camará, que terão sido mortos a seguir ao Cabá Santiago... O texto do Carlos Fortunato foi "publicado no site em 24/02/2003, e revisto em 09/04/2008" (!)...


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Nota do editor.

(*) Vd. poste de 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10189: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (11): Dos planos de evacuação do território aos graves acontecimentos de Bissorã, em junho de 1974 (Paulo Reis, jornalista, freelancer / Luís Gonçalves Vaz)

Excerto do texto de Paulo Reis:

(...) "Encontrei documentação da 2ª Rep interessante, onde se fala dos problemas de disciplina das unidades do exército português e das dificuldades em fazer a simples rotação de efectivos, já prevista há muito tempo. A partir de certo momento, a própria cadeia de comando estaria em risco, uma vez que os soldados portugueses só queriam ir para Bissau e embarcar para a Metrópole.

"A ponto de em Junho de 1974, tropas do PAIGC terem entrado em Bissorã, a propósito de confraternizar. Depois de algumas cervejas, com os soldados portugueses, espalharam-se pela vila e capturaram o Cabá Santiago, um chefe de milícia muito conhecido, desertor do PAIGC, o Bajeba e o Sitafa Camará (ou Quebá), ambos chefes de milícia. Levaram-nos e fuzilaram-nos sem que as forças portuguesas reagissem, de acordo com o testemunho de habitantes locais e soldados portugueses." (...)

Guiné 63/74 - P10197: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (6): Cabo Bigodes, o homem-macaco

1. Terceira e última estória dos Fidalgos de Jol enviada pelo nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), na sua mensagem de 15 de Julho de 2012:



ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (6)

Cabo “Bigodes” O Homem-Macaco

Esta passou-se numa daquelas noites em que, pela movimentação (ou não) da população, era esperada uma quase certa flagelação ao quartel. De tão cedo que era, quase não se via viva alma a circular pela tabanca, muito menos crianças, o que no mínimo era muito estranho. Assim, o indício era de uma quase certeza de que mais tarde ou mais cedo íamos mesmo “embrulhar”.

Recordo-me de que nessa noite de Abril de 1972 o Benfica jogava as meias-finais com o Ajax no antigo Estádio da Luz, para a então Taça dos Campeões Europeus, sendo o resultado final de zero a zero.

Calhou em sorte ser o meu grupo de combate a sair para fazer a segurança e denunciar possíveis movimentações do inimigo e, quando já estávamos todos convencidos de que nada se iria passar, lá rebentou o inevitável “fogachal”, precisamente do lado oposto onde nos encontrávamos para, de certa forma, a fuga do elementos do PAIGC se processar com menos hipóteses de confrontação. Era a táctica deles do bate e foge. Só que contámos com a rápida resposta do pessoal que ficou no interior do quartel juntamente com o apoio da artilharia de Bula para bater a zona, pelo que o ataque se reduziu (felizmente para nós) a poucos minutos e sem consequências de maior.

Mas esta introdução tem como objectivo contar o que de rocambolesco e caricato se passou nos primeiros momentos do ataque ao quartel, que se processou precisamente do lado da chamada porta de armas, onde estava de serviço/sentinela no posto mais elevado e com alguns bons metros acima do solo, o meu amigo Cabo Borges, mais conhecido por todos pelo Cabo “Bigodes”, que levou de muito perto com uma valente roquetada, a qual de imediato pôs o posto em chamas. Sem hipótese de ripostar fogo com a Breda que encravou, só teve como solução atirar-se do posto abaixo.

Chegado cá abaixo, como o ataque continuasse e sem arma de defesa, logo se lembrou que a sua G3 havia ficado lá em cima no posto, ao qual voltou a subir tão rápido quanto possível e, já de novo na posse da sua “amiga”, qual símio, voltou novamente a atirar-se para o solo daquela considerável altura.

Quem a tudo isto conseguiu assistir, dizia que o Borges parecia o autêntico homem-macaco.

Reposta a calma, o nosso amigo “Bigodes” nem queria acreditar no que tinha conseguido fazer, ainda por cima sem ter sofrido qualquer ferimento.


Jolmete, Junho de 1972 > O meu amigo Borges é o primeiro à direita, de pé

Jolmete, Julho de 1072 > Bolanha de Gel

Jolmete, Agosto de 1972 > O descanso do guerreiro na Bolanha de Gel

Jolmete, Agosto de 19072 > Estrada velha de Bula

Cumeré, Dezembro de 1972 > Com uma mascote
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10181: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (5): A emboscada das abelhas

Guiné 63/74 - P10196: Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor (2): O pangolim de cauda longa, do Cantanhez (António J. Pereira da Costa)





Guiné > Região de Tombali > Cacine > CART 1692/BART 1914, 1968/69 > Um pangolim...

Foto: © António J. Pereita da Costa (2012). Todos os direitos reservados


1. Comentário de António J. Pereira da Costa ao poste P 10182 (*)

Camaradas:

O dari [, o chimpanzé,] não é a minha praia, como agora se diz.

O pangonlim, que é uma variedade de papa-formigas, é uma animal curioso:

(i) Parece um grande sáurio daqueles com o dorso arqueado, a cabeça e cauda compridas:

(ii) Tem boca e focinho compridos e que teria tido dentes poderosos;

(iii) A cauda é larga, junto ao corpo, e vai afiando para o fim até terminar em bico muito afiado;

(iv) É rija e suporta bem o peso de um homem;

(v) Tem o corpo coberto de escamas losangonais e castanhas, rijíssimas;são autênticas telhas losangonais.

Na foto - que enviei por e-mail - é visível a parte inferior do corpo que é mole e não está protegida. As patas são curtas e têm unhas poderosas. Eu [, na altura, alferes QP,] seguro uma e o Lemos fotógrafo e bazookeiro segura a outra. O Duarte segura a boca.


Este era um exemplar adulto e muito belo e eu nunca mais vi nenhum. Foi caçado pelo caçador de Cacine, a sul da estrada Cacine-Cameconde.


Um Ab.


António J. P. Costa


2. Comentário de L.G.


Muito bem, camarada, 18 valores a zoologia!... Descrição zoológica perfeita, o Fernando Frade não faria melhor... Falta só o nome científico do bicho... Embora eu não seja um especialista, arrisco a dizer que se trata de um Uromanis tetradactyla (ou manis tetradactyla, conforme os autores), classificado em 1766 pelo sueco Carlos Lineu, o "pai da taxonomia moderna"...

Não é ainda, felizmente, uma espécie ameaçada,  a nível mundial...  Na Guiné-Bissau, também existe (mas é mais raro, ao que parece), o Pangolim gigante, terrestre, Smutsia gigantea (em inglês, o nome comum é giant ground pangolin) que pode pesar mais de 30 kg, o macho, e atingir um metro e tal de comprimento...

A ameaça que existe sobre o pangolim (bem como sobre as outras dezenas de espécies de mamíferos no Cantanhez) é a desflorestação e a caça, além do uso de partes do corpo do pangolim para efeitos gastronómicos, medicinais, afrodisíacos ou mágicos.

António, tens aqui, em português, mais informação sobre esse magnífico mamífero de escamas, arborícola, de hábitos noturnos, de difícil observação e recenseamento, da família Manidae de que existem 7 espécies, distribuídas pelas zonas tropicais de África e Ásia.

Etimologicamente falando, a palavra Pangolim vem do malaio, pangulang, animal que se enrola... Quando ameaçado, tal como o nosso ouriço cacheiro, o pangolim enrola-se sobre si próprio, para se proteger.

Talvez o nosso amigo Pepito nos passo dar mais informação sobre o Turcutacar (, termo da língua nalu). Há uma trabalho interessante, feito por biólogas e antropólogas portuguesas sobre percepções da vida selvagem entre os povos que habitam o Cantanhez (nalus e balantas, sendo os primeiros muçulmanos e os segundos animistas ou católicos).

Entre as questões inquiridas (a que responderam 271 habitantes, homens e muilheres, de várias idades, entre 2007 e 2010) estão a caça e as preferências alimentares (que incluem o pobre do pangolim, mas também a tartaruga, a gazela, o macaco..).Vou sugerir que alguém dos nossos leitores (o Antónioo Costa, por exemplo) o leia nas férias, e faça depois um resumo para o pessoal da Tabanca Grande e seus convidados. Todos temos a obrigação de contribuir para a defesa e conservação deste pedaço de céu na terra (que já foi pedaço de inferno, para muitos de nós, ex-combatentes, de um lado e do outro...). Aqui fica a referência. O texto é em inglês. Está aqui disponível, em formato pdf:

Título do artigo: Are animals and forests for forever ? Perceptions of wildlife at Cantanhez Forest National Park, Guiné-Bissau Republic [ Tradução portuguesa: Os animais e as florestas... são para sempre ? Perceções da vida selvagem no Parque Nacional do Cantanhez, Guiné-Bissau];

Autores: Catarina Casanova, Cláudia Sousa, e Susana Costa;

Research paper accepted: MEMÓRIAS, Environmental Anthropology number (Casanova, C and S. Frias eds.), Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa ].[Nº temático da revista Memórias, editado pela Sociedade de Geografia de Lisboa].





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > 2 de março de 2008 > Animais desenhados nas paredes exteriores das instalações da AD -Acção para o Desenvolvimento: O pangolim de cauda longa... Fotografia de Luís Graça, por ocasião de visita ao sul, no ãmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008).

Fotos: © Luís Graça (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Nota do editor:

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 22 de Julho de 2012:

Caros Editor e Co-Editores
Como sei que a 'produção' afrouxa, aqui me atrevo a enviar um texto que, se entenderem, podem publicar.
Trata-se de algo de que senti o impulso de escrever pois tudo o que aí relato é verdade, com um ou outro pormenor que possa estar menos exacto, e que no fundo é para fazer a minha justiça a alguém que lá e naquelas circunstâncias pode não ter sido (ainda hoje) bem compreendido.

As fotos que vos envio têm créditos que devem ser atribuídos, a mim mesmo na foto a preto e branco em que estou com os Furriéis Centeno e Herlander, a João Moura na foto do conjunto do Quartel e a Eduardo T. Lopes, da CART 3332, as restantes. Na foto de conjunto, que é pouco antes da minha chegada a Piche pode-se ver a Porta de Armas com a árvore que nessa altura ainda não tinha a base cimentada, vê-se o edifício identificado com o 11 como sendo o do Comando, atrás desse local pode-se ver o edifício com a viatura do STM, o edifício com o 4 era a messe de sargentos e oficiais e o espaço assinalado entre o 6 e o 14 foi onde se construiu o novo Posto do STM.

Saudações.
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (12)
 

 O SR. MAJOR CALIXTO

Os antecedentes

Já vos macei várias vezes com os meus relatos mas, para um melhor enquadramento desta história, volto a referir que aparecendo na Guiné em rendição individual, sendo Furriel Miliciano de Transmissões e pertencendo ao STM, fui incumbido de ir até Piche com a missão de insistir com o comando da Unidade que à data, início de Dezembro de 1970, lá estava sediada desde Agosto desse ano, o BCAV 2922, para providenciarem a rápida construção dum edifício próprio para alojar o Posto de Transmissões do STM que até ao momento funcionava numa viatura que seria necessária para outras actividades, em Bissau ou onde viesse a ser aplicada.

Vista geral do Quartel de Piche

Foto: © João Pereira da Costa (2012). Direitos reservados.

Quando lá cheguei o Batalhão estava a ser comandado interinamente pelo 2.º comandante, o Sr. Major Cav António Calixto, já que o 1.º comandante, o Sr. Tenente-Coronel Cav Chaves Guimarães (que me dizem já ter falecido), tinha sido ‘retirado’ para a ‘Metrópole’, como então se dizia. Uma ‘história cabeluda’ conforme as ‘vozes da caserna’, as quais também me alertaram para ter cuidado com o “Major Calixto”, que ‘era uma fera’. Foi exactamente ao Sr. Major António Calixto que me apresentei informando que iria tomar conta do Posto do STM, sem me alongar em mais detalhes ou outras indicações sobre a missão principal.

Por essa época cantavam-se algumas canções, fados, coisas assim, lá por Piche, nos convívios do pessoal e uma delas, rezava assim:

Foisimbora o Guimarãããães 
foisimboooora o Guimarãããães  
Foisimbooora pra Lisboa 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Isso é que era coisa boa.

O tom era bastante lamentoso, choroso mesmo, e no início quando comecei a ouvir pensei que se tratava de uma homenagem a algum camarada que tivesse morrido (foi-se embora o Guimarães…) não sabia que Guimarães era o nome do Comandante ausente e inicialmente pensava que o ‘embora’ era mortal, mas depois o ‘ir para Lisboa’ levou-me a pensar que seria ferido. Quando a seguir vem as referências ao “Calixto” e ao “Paulo” é que me esclareceram tratarem-se dos Majores da Unidade, sendo o “Calixto” o 2.º comandante e que agora chefiava o Batalhão interinamente e o “Paulo”, o Sr. Major Mendes Paulo (também entretanto falecido), que era o Major de Operações.

Obviamente que se tratava daquele tipo de reacção do pessoal que ‘sente’ que as chefias é que determinam as situações e que ‘rebelando-se’ contra elas, o ‘mal’ fica exorcizado. Quem não se lembra daquela espécie de ‘grito de guerra’ que se ouvia muitas vezes de “tirem-me daqui!”, “estou farto deles’! a que se seguia muitas vezes também um coro de vozes a dizer “então corta-os”! Esses ‘eles’ eram todos os que hierarquicamente estavam acima da cadeia de comando de quem se sentia ‘encurralado’.

Ora bem, este tipo de indicações apenas dá para caracterizar muito superficialmente uma situação mas dá para entender que havia por li algum temor. Como pretendo apenas falar do Sr. Major Calixto vou ficar pelo que a ele diz respeito.

E quero fazê-lo porque acho que é devido e merecido.

Ainda recentemente (16 de Junho passado) estive em Estremoz no convívio organizado no RC3 para comemorar os 40 anos do regresso do referido BCAV 2922 e de que o nosso ‘tabanqueiro’ Francisco Palma fez relato para o Blogue, onde tive a oportunidade de conversar com o Sr. Major (hoje Coronel) António Calixto e lembrar-lhe alguns episódios que irei agora também relatar. E porque alguns dos que por lá estiveram ainda pareciam ter mais temor que respeito, quero aqui deixar o meu testemunho público do que me parece ser justo referir.

Perguntando eu porque diziam que “o Calixto” era ‘uma fera’ não me conseguiam adiantar nada que não fosse configurável com uma exigência de disciplina e rigor que o Major procurava incutir no pessoal. E, pergunto eu, isso não era fundamental para manter a ‘pele sem furos’? Tanto quanto sei acho que o Sr. Major não utilizou a pedagogia do ‘pontapé no cú’ já aqui revelada como método eficaz para fazer dum determinado pelotão, autodenominado “Foxtrote”, de que o nosso conhecido e amigo Zé Dinis tem vindo a relatar a história, uma força disciplinada, organizada, solidária e… intacta!

Diziam-me: “ah, ele às vezes passava por um e dizia – ‘ainda não apanhaste uma ‘porrada’? vamos ter que tratar disso!’ Francamente, não me parece grande coisa, e nunca fui testemunha de tal coisa.

Por isso, considero que a acção do Sr. Major Calixto foi, em geral, benéfica para o conjunto dos militares que integraram aquele aquartelamento e que a disciplina e o rigor nunca fizeram mal a ninguém. Bem pelo contrário. Se hoje houvesse mais atributos desses em muitos lugares de decisão, e para não politizar esta questão fico-me apenas pela referência a membros do Governo, andaríamos todos muito melhor. Se questionassem as posições políticas e as convicções do Sr. Major talvez se pudesse encontrar alguma base de entendimento, agora a disciplina, não! E com o Sr. Major Calixto aprendi alguma coisa, lições de vida, que partilho então seguidamente.


O primeiro ‘embate’

Na noite do primeiro dia em Piche fui para a messe comum, de sargentos e oficiais, sendo que os primeiros tinham duas 'mesas' em que a primeira delas era para a generalidade dos sargentos (furriéis incluídos, obviamente) e a segunda para os poucos que estavam de serviço ou tinham qualquer impedimento para estarem na primeira ‘mesa’ sendo que essa segunda ‘mesa’ coincidia com a dos oficiais. Como era novato na zona fui na primeira mesa acompanhar a maioria dos furriéis que tinham sido meus contemporâneos na recruta em Santarém, como por exemplo o nosso tertuliano Luís Borrega, fui conversando e ao mesmo tempo arquitectando o que pensava ser a melhor maneira de abordar o assunto da tal missão principal que me levava a Piche, tendo em conta o aviso que me tinham feito sobre a ‘fera’.

Antes de ir para lá tinha estado naturalmente com o pessoal que iria chefiar, inteirei-me da situação, de cada um deles, do trabalho, do Posto e do que se poderia saber sobre a localização da tal construção. Mostraram-me um local que se dizia estar reservado para tal, quase em frente à messe de oficiais, que já tinha a base escavada até cerca de 1 metro abaixo do solo e com enrocamento de 60 centímetros a toda a volta excepto num ponto que se dizia ir ser a entrada e cuja continuidade de construção tinha sido parada por falta de material ou por outras prioridades, que o meu pessoal não me soube dizer.

Munido dessa informação resolvi-me a ‘enfrentar a fera’ segundo o meu esquema mental, que me pareceu o mais adequado. Então fui-me deixando ficar na messe até perceber que o Major Calixto se preparava para se levantar. Antecipei-me, saí, e fiquei no alpendre como quem está (e estava de facto) a saborear a primeira noite de mato, a absorver cheiros, sons, e até cores. O Major saiu, viu-me e perguntou amavelmente que tal achava o Quartel, as instalações, o pessoal, etc.. É preciso que se diga que, tendo feito a recruta em Santarém, sabia bem como impressionar, pelo aprumo, pelo rigor e também por alguns ‘tiques’ próprios, os homens dessa Arma.

Aproveitando a ‘deixa’ das instalações fui directo ao assunto e disse-lhe:  
- Meu Major, há pouco quando me apresentei, não houve oportunidade para lhe dar conta da totalidade da minha missão e que é de que venho incumbido pelo meu comando do STM de Bissau para lhe pedir que avance rapidamente para a construção do edifício para o Posto pois a viatura está a fazer muita falta para outras missões.

Até aqui, tudo bem, tudo normal. Mas a seguir joguei forte, conforme tinha pensado durante o jantar e disse:
- Tenho a indicação para fazer reportes semanais para Bissau a dar conta do avanço dos trabalhos. O meu Major pode-me dizer como estamos quanto a isso?

Estão a ver a situação, estão? Um fedelho de 22 anos, um Furriel, a colocar um Major, a “fera”, na situação de lhe ‘dar satisfações’ para depois as reportar para Bissau? Nessa ocasião o Sr Major ‘fechou’ a cara, olhou-me de-alto-a-baixo e disse secamente:
- Pode informar que não está nada feito!.

Ora bem, sabendo eu o que já sabia e que acima vos dei conta, disse para os meus botões: “ou já ganhaste isto ou vais ter um amigo à perna”.

No dia 1 de Abril de 1971 tive o grato gosto de enviar o último reporte: “posto concluído”! E concluo também que da premissa que acima coloquei não só ‘ganhei isto’ como também ganhei um amigo, e não foi ‘à perna’, pois o Sr. Major deve ter gostado (nunca falámos disso mas foi o que me deu a entender na despedida) da minha atitude assertiva.


Aprendizagem

Há sempre quem teorize sobre as benfeitorias da vida militar e há também quem a diabolize. Neste caso que vos vou relatar, passado naturalmente entre mim e o Sr. Major, fiquei com a lição do que se espera de quem tem por missão mandar e/ou comandar. Foi assim.

Numa bela manhã, já no ano de 1971 mas que não sei precisar bem quando, embora a minha sensibilidade aponte para o mês de Fevereiro, o Sr. Major precisou de mim e mandou-me chamar pouco depois do café da manhã.

Acontece que por esses dias o Posto estava desfalcado de pessoal porque dos cinco operadores que o compunham tinha um de férias e dois manifestamente inoperacionais com fortes ataques de paludismo. Nessas circunstâncias decidi que eu próprio faria o turno mais penoso (não era mau de todo no trabalho com a chave de morse), pelas dificuldades das condições de captação, das interferências atmosféricas, do esforço resultante da solidão, ou seja o nocturno, que podia ser bastante pacífico em termos de necessidades de comunicação ou a exigir grande tensão por actividade que, naqueles momentos se traduziam quase sempre por mensagens tipo “zulu”. Nas circunstâncias fiquei com a responsabilidade de assegurar a operacionalidade do Posto desde as 20 horas até às 8 da manhã, ficando cada um dos outros dois operadores com 6 horas cada qual.

Como podem calcular, depois de uma noite ‘directa’, cerca das 10 horas, mais coisa menos coisa, quando fui chamado, estava no começo do primeiro sono e devia estar completamente ‘pedrado’. Deste modo, entre a chamada do Sr. Major, irem-me acordar, reagir, levantar-me e colocar-me em condições apresentáveis, demorou algum tempo, mais do que seria esperado por quem me chamou. E disso mesmo fui confrontado pelo Sr. Major Calixto que, aparentemente incomodado pelo que pensaria tratar-se de algum acto de desobediência ou resistência ao comando, lá tratou de me verberar fortemente para a necessidade da rápida e pronta resposta às solicitações do Comando. Quando lhe relatei o que se passava e a razão pela qual não me tinha apresentado mais prontamente, pois tinha estado a trabalhar com a chave de morse toda a noite, o Sr. Major Calixto disse-me:
- Você não está aqui para trabalhar, está aqui para dirigir e disciplinar os seus homens, não se esqueça disto!

E não esqueci!

Foi uma lição. Fiquei a saber que fossem quais fossem as circunstâncias, não deveria haver misturas entre comandantes e comandados. Percebo o que me queria transmitir e não deixo de entender a sua relativa validade mas, como em quase tudo na vida, segundo a minha perspectiva, é preciso ter sempre em conta cada circunstância e agir a partir dessa análise.


Piche, Março de 1971 > Centeno, Hélder e Herlander

Foto: © Hélder Sousa (2012). Direitos reservados.


Reconhecimento

Uma outra passagem com alguns aspectos interessantes dos meus contactos com o Sr. Major Calixto passou-se numa noite quente (qual não era?) nos finais de Março ou princípio de Abril de 71.

Nessa noite, já depois da hora de jantar, estava com outros furriéis amigos, o Centeno, o Herlander e o Sobreira, a conversar recostados numa base cimentada que envolvia uma grande árvore que ficava no meio da parada de entrada, frente ao Comando. Como de costume, a conversa versava vários temas e entre eles também às vezes se questionava a justeza da nossa presença ali, naquelas circunstâncias, a natureza da guerra, o nosso futuro como cidadãos, como País, etc.

Onde nós estávamos predominava a escuridão mas na zona do Comando as luzes interiores deixavam ver quem lá estava, bem assim como a porta aberta trazia-nos alguns sons do que por lá se ia passando. E parece que a inversa também.

Em dada altura o Alferes do Pel Art, cujo nome agora não me ocorre, irrompe pelo Comando e ouvimos o Sr. Major perguntar-lhe se havia algum problema, se as zonas de tiro para a batida à zona que se fazia logo de manhã para a área da construção da estrada que estava a ser feita pela Tecnil já estavam determinadas e foi aí que ele disse que andava à procura do Furriel Centeno para ultimar esses preparativos mas que não o consegui encontrar. Sem mais delongas também ouvimos o Sr. Major dizer “procure ali debaixo da árvore que deve estar lá com o pessoal da Oposição”.

Como podem calcular a expressão utilizada e o conceito que lhe estava subjacente deixou o pessoal preocupado sobre que e quais consequências isso poderia ter. Na verdade, não se passou nada, pelo menos que saiba, e quanto a isso acho que se pode admitir que o Sr. Major Calixto resolveu utilizar alguma dose de ‘paternalismo’, afinal nós tínhamos 22, 23 anos e é próprio da juventude ser irreverente.


Despedida

O outro, e último, momento significativo dos meus contactos com o Sr. Major Calixto, que só voltei a ver agora no Encontro do BCAV 2922, ou sejam 41 anos depois, foi exactamente quando lhe fui apresentar as minhas despedidas no meu regresso a Bissau com a missão cumprida, o Posto construído, equipado, com um outro Furriel Valério a substituir-me.

Foi uma conversa a dois, com a disciplina militar pelo meio, é certo, mas de uma elegância e nobreza que ainda hoje me faz vir aqui a terreiro honrar o trabalho que o Major Calixto fez em Piche. Não sei qual foi o seu percurso após o 25 de Abril, da sua ‘conversão’ ou não à ‘nova situação’, isso não é relevante para esta análise, que procura falar do ano de 1971. Apenas me interessa deixar aqui o testemunho de que apesar de tudo o que atrás relatei, nesse dia, nessa hora, olhámo-nos nos olhos, agradeci-lhe a hospitalidade, as ‘lições de vida’ e também a sua compreensão e ele também me disse que tinha tido grato gosto em me ter como colaborador, que lamentava que me fosse embora e que me desejava felicidades e sucesso na vida futura, não deixando também de me recomendar ‘prudência’.


Francisco Palma, Hélder Sousa e Coronel Aantónio Calixto

Hélder Sousa, Coronel António Calixto e Francisco Palma

Major António Calixto e Luís Borrega

Fotos: © Eduardo T. Lopes (2012). Direitos reservados.


Conclusão

Fica assim concluída a reportagem de alguns episódios da minha passagem/estadia por Piche, na perspectiva de que senti a necessidade de dizer a alguns dos amigos que por lá foram integrados no BCAV 2922 que não partilho a ideia do Sr. Major Calixto ser ‘uma fera’, mas sim um disciplinador, e provavelmente aquele que, dadas as circunstâncias da saída precoce do 1.º Comandante com baixa à psiquiatria após 3 meses de mato, a Unidade necessitaria para assim manter níveis elevados de concentração.

Um abraço, e boas férias para aqueles de vocês que as tiverem!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2011 > > Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II

Guiné 63/74 - P10194: Notas de leitura (384): "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam" (José Brás)

1. Nota de leitura do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) a propósito do último livro de Mário Beja Santos, "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam":


Acabei de participar na visita que o senhor General te fez em Missirá(1).

E se digo participar em vez de assistir, é apenas porque também lá estava quando descobriste os dois pontinhos que haviam de resolver-se na figura de helis, cavalos de Tróia que haveriam de abrir-se para despejar o homem e essa gente/sombra do do monóculo decorativo.

Aliás, cortava "cibo" convosco porque os cibos que vos davam jeito no reforço dos abrigos de Missirá, eram os mesmos cibos que eu cortava a Sul de Medjo, muito perto de Quebo, uma Tabanca abandonada junto a um dos braços em que o Rio Cacine capricha a Norte, ainda antes de caprichar a Gadamael Porto, mesmíssimos cibos que também nos faltavam em Medjo para os mesmos fins.

Saindo um pouco da tua lavra, meto aqui enxada para de dizer do caricato que foi, nessa tarefa, ter eu atravessado uma água não muito funda e dessa água ter saído cravadinho de sanguessugas, perdendo algum tempo de cigarro aceso numa mão e pauzinho fino na outra, para me livrar das bichas, uma a uma.

Voltando a Missirá (adiantando que outra Missirá tínhamos na estrada Aldeia Formosa (outro Quebo-Buba), Missirá, esta, abandonada também e lugar pouco abençoado para tropa branca, voltando a Missirá, digo, ao teu e não ao do Sul, também eu me espantei com os maus modos do homem, retrato exacto nas perguntas e nas questões que te colocou, desse militar antigo, feito na Academia deles, cheio de empáfia e de mando, mestres duma infalibilidade alejada do real da guerra em que andávamos e que por mais comissões feitas não entenderiam nunca, provando-se dito não sei de quem que eu li um dia "a guerra é coisa demasiado complexa para ser dirigida por militares".

Acabara há pouco de viver a tua revolta contra as parvoíces dessas operações volumosas em que te meteram para atacar Madina, porque também em Medjo se meteram um dia duas Companhias a dormir pelo chão para atacarem Salancaur.

Salancaur ficava a tão curta distância de Medjo que quase os ouvíamos falar na bolanha de arroz que cultivavam com esmero. Por isso, Bissau imaginou que saindo de madrugada, atacaríamos ao nascer do Sol e quase almoçaríamos de novo em Medjo. Afinal, três dias não deram para vencer aquela mata densa, aberta à faca para se poder avançar fora da picada. A fome e a sede começaram a fazer efeito e as evacuações por esgotamento, fome e sede. Acabaram com o plano de Bissau.

Sei que estranharás que afirme lá estar contigo mas confirmo isso a pés juntos, porque a ler-te, sinto o cheiro do capim podre e aquele bafo que dele sai a cada passo; sinto as picadas dos mosquitos que nos atacam nos olhos, no nariz, nos ouvidos e na boca; sinto a magestade daquela mata sub-tropical que nos esmaga e desorienta o passo e a vontade; sinto o sabor do sangue dos amigos estraçalhados pelas minas e basucadas.

E se sinto tudo isso, e muito mais que a insipiência da minha palavra não explica e esta mensagem curta não justifica explicação, apenas porque o dizes tão bem que me repões de pés e de alma no Sul da Guiné e num tempo que talvez fosse melhor esquecer.

Continuarei a caminhar nos meus trilhos de Guileje pela palavra que me falta ainda ler-te, e nem sei se hei-de agradecer-te, se lamentar o tempo e o modo que reviverei recuperando-me aqui como se fosse lá.

Obrigado, Mário
José Brás


2. Nota do editor:

(1) - Da página 228 de "A Viagem do Tangomau":

[...] Pois bem, é no âmbito de todo este processo de crescimento, de inclusão no meio, que num princípio de tarde, estava o Tangomau nos palmares de Cancumba a acompanhar os derrubes de duas palmeiras para extrair rachas de cibe para reforço de dois abrigos, apareceram uns pontos a crescer no céu, ouviu-se o crescente zunir das pás dos helicópteros (eram dois), depois fizeram dança na pista improvisada em frente à porta de armas, lá se foi, prestes, ao encontro dos ilustres visitantes, era o comandante-chefe e versátil comitiva, incluía o comandante de Bafatá. [...]

Título: "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam"
Autor: Mário Beja Santos
Edição: Temas e Debates/Círculo de Leitores
Páginas: 518
Imagem da capa: "Recordações de África", aguarela de José Antunes, 2010
1.ª edição: Junho de 2012
ISBN (temas e Debates): 978-989-644-198-2
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9471: Blogoterapia (198): À Tabanca Grande, em primeiro lugar e a todos os que se lembraram de mim e também aos outros que todos os dias se abraçam no blogue (José Brás)

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10184: Notas de leitura (383): "No Percurso das Guerras Coloniais 1961-1969", de Mário Moutinho de Pádua (Mário Beja Santos)