segunda-feira, 23 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10185: Humor de caserna (27): Recepção aos piras do BCAÇ 2927 em Bissorã, em fins de outubro de 1970 (Armando Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) com data de 16 de Julho de 2012:

Meus Caros Editores Camaradas:

Dias atrás, lembrou o régulo maior da nossa Tabanca que o verão está à porta e com ele, por causa dele, a habitual diminuição do produto “noticioso” ameaça deixar o mural da Tabanca a pão e laranja. E sugeria, como alternativa, a actualização e aprofundamento do nosso álbum fotográfico.

Faz tempo que dentro da minha cabeça bailava a vontade de dar o meu contributo para o enriquecimento dessa página do blog. Vamos então a ela, deixando para depois das férias as duas histórias que já se encontram alinhavadas nos rascunhos.

E começo pelo fim. Por aquele momento em que definitivamente respiramos fundo. O momento em que o pensamento voa longe, até que alcance a família, levando nas suas asas uma mensagem escrita que diz, sosseguem, mais uns dias e estou aí. O momento em que recebemos e damos as boas vindas aos que nos vêm render. Quem não recorda esses instantes que foram mistura de perplexidade e medo à chegada, de jubilo e paz na partida?

Tenho tão vivo e tão presente aquele 15 de Fevereiro de 69, quando saí da jangada e meti pé em terra firme de João Landim, assustado e atónito com tudo à minha volta, com uns tipos de camuflado de cor completamente diferente do meu a atirarem-me mãos cheias de amendoins (vim a saber depois que se chamava mancarra), ao mesmo tempo que gritavam, “salta periquito, vem que o paizinho quer ir para casa”, o bater metálico das culatras à rectaguarda, o roncar das Panhard  a ganharem posição na coluna, o arranque em grande velocidade estrada fora e, finalmente, a entrada no aquartelamento de Bula por entre filas de militares que se riam, que para nós se riam, com ar de quem mais parecia dizer, “coitadinhos, tão tenrinhos, nem sabem no que se metem”.

Depois, o tempo encarregou-se de tornar tudo isto normal, encarregou-se de em nós deixar fruir a ideia de que “a nossa hora também chegará”. E chegou em fins de Outubro de 1970, em data que a memória, a nossa e a deles, não consegue precisar.

Lá vêm os “piras”. 

Vindos da estrada de Mansoa, entram em Bissorã as primeiras viaturas que transportam a CCS e a CCAÇ 2781 do BCAÇ 2927. À sua espera a “Policia da Unidade”, formada pelo impagável Orlando Bonito, Fur Mil Amanuense, e o seu inseparável 1.º Cabo, o "Alentejano”, que se esforçou, todo o dia, por convencer os recém-chegados que, não obstante estarem “no mato”, tinham de andar devidamente escanhoados e ataviados, sem esquecer as botas devidamente engraxadas.

É destas praxes, destes momentos mais ou menos hilariantes, que cada um, no seu lugar e à sua maneira, preparava para receber condignamente aqueles que os vinham render, que quero dar testemunho nas fotos que se seguem. Peço desde já desculpa por algumas delas não serem “exclusivas”. De facto, algum tempo atrás, o Quim Santos, que pertenceu à CCAÇ 2781, que edita o blog “Guiné-Bissum” , pediu-me uma ou outra fotografia da sua chegada. Mas atrevo-me a oferecê-las ao nosso álbum por nele nunca ter visto semelhante tema retratado. Vamos a isso.


O pano é a legenda. "A ferrugem saúde os piriquitos". A festa dos putos é a vida.


Provocações! "Piras, tendes fome ? A velhice oferece-vos mancarra... Saltitão!...


A equipa de reportagem da RadioTelevisão de Bissorã registou o grande momento. Ao volante o Fur Mec Meneses, no lugar do realizador o Fur Trms Gesteiro, o camara é o 1.º Cabo Trms Carlos Senra. A velhcie saúda os piriquitos!"...


Esta até a mim me surpreendeu. Sobretudo ao ver que os pilantras foram aos fundos da enfermaria “gamar” as batas que não eram utilizadas mas que faziam parte do espólio a entregar. Aos protagonistas peço desculpa por me “faltarem” os nomes, mas vamos, a partir da esquerda: 1- “Setúbal”, pintor 2- Lameiras, mecânico 3- era o condutor da GMC rebenta-minas 4- o bate-chapas. O 5º sou eu, que também quis ficar para a posteridade. Cartazes: "Assistência à velhice", "Serviço de saúde ao domingo"...


Alinhada já no interior do aquartelamento de Bissorã, a coluna que transportou os homens do BCAÇ 2927.


Lindos e frescos, os periquitos sorriem para a objectiva. Aquele ali ao centro, de G3 com dilagrama e cigarro ao canto da boca, é o Furriel Cerqueira, o enfermeiro da CCS que me foi render.


E pronto! Chegou a hora de ir para casa. A nossa última coluna à partida de Bissorã para Bissau. Em primeiro plano a minha equipa. Juntos, unidos, como sempre estivemos naqueles 22 meses de Guiné. A contar da esquerda, eu, o 1º Cabo Enf Machado e os Soldados Maqueiros Maltez, Teixeira e João. Infelizmente, não está na foto o Soldado Maqueiro Daniel Agostinho, de cuja história já aqui vos dei conta no P9877. Esperou por nós em Lisboa e deu-nos uma grande alegria. 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9562: Humor de caserna (26): Chocos recheados para curar o paludismo (Henrique Cerqueira)

7 comentários:

Anónimo disse...

Este tipo de comemorações e festividades sempre teve muita graça, em todo o lado.
Ocorriam por qualquer razão ou a qualquer pretexto.
Um dia, um sargento de uma Companhia onde estive colocado, casou por procuração; arrisco dizer que a cerimónia do casamento, montada pelo pessoal militar, com desfile até à 'capela', uma vez que a noiva estava em Portugal, foi mais imponente que teria sido a autêntica, cá na terra. Nela figuravam todas as personagens, noiva inclusive (outro sargento devidamente paramentado) e inúmeros convivas associados.
De todos estes acontecimentos muito divertidos e, de certa maneira, ricos de significado, são estas imagens testemnho e lembrança
MAS!
do que não gosto mesmo nada -que me desculpe o autor- é da evocação da pose daqueles rapazitos de capacete branco, com ar de quem saiu de um filme mal feito e que andavam a pastar em Bissau, armados aos cucos e que, felizmente, de vez em quando apanhavam uns murros no trombil para reacertar as ideias. Sempre pensei que se vissem um mano com uma pistola metralhadora nas unhas à sua frente, cagavam-se todos (talvez!) mas na cidade exibiam aquela pose... de mau actor enfatuado.
(sem ofensa às excepções)

SNogueira

Luís Graça disse...

Armando:

Todos nós fomos "praxados" na tropa: na recruta, na especialidade, como instrutores, como piras (já na Guiné)...

Este é um tema, no mínimo divertido, interessante, apaixonante até, que merecia maior atenção da nossa parte, aqui no blogue...

Se calhar achávamos (ou ainda achamos...) que a(s) praxe(s) militar(es) fazia(m) parte integrante do nosso "programa de formatação": como é que se faz de um homem, aliás, de um mancebo, uma verdadeira "máquina de guerra" ?...

A praxe - para al+ém de ser um "rito de passagem" no nosso ciclo de vida - seguramente que tem um papel, importantíssimo, não só na transmissão de conhecimentos e de valores, como na produção e reprodução de atitudes e comportamentos

... Discuti isso há anos com gente da Marinha, que tendia a "branquear" os "excessos" (incluindo sevícias sexuais...) cometidos pelos "praxistas" na Escola Naval contra um sobrinho meu... Cadete que não sobrevive às praxes, nunca poderia dar um bom oficial, muito menos um tripulante de uma fragata ou de um submarino... "A praxe forma o caráter", "a praxe ajuda a separar o joio do trigo", "a praxe ajuda a a sobreviver e sobretudo a selecionar, não os mais fortes e os mais inteligentes, mas os mais aptos"...

Dito isto, obrigado, Armando, pelo teu texto e pelas tuas fotos, eloquentes, sobre a vossa "receção aos piras"...

Acho que as praxes são tão velhas como a humanidade: ajudam-nos a exorcizar fantasmas, espantar medos, lidar com o sofrimento psíquico face ao desconhecido, criar "espírito de corpo", reforçar o mecanismo de comando-controlo, destruir a individualidade com a qual não poderá haver "pensamento de grupo" e sem pensamento de grupo nunca haverá "máquinas de guerra"...

Abraços, grandes. LG

Anónimo disse...

Camarigo SNogueira;

Desculpa lá, mas os rapazitos de capacete branco que aparecem na fotografia, pretensamente, integrariam a PM, mas têm capacetes e braçadeiras da PU, e "o impagável Bonito e o Alentejano", conforme o Armando Pires refere, estavam ali apenas para "dar baile" aos piras, ou seja, não tinham nada que ver com os tais da PM que nunca saíam de Bissau.
Esses sim, concordo contigo, eram mesmo uns grandes patetas - quase todos. Na verdade, ainda agora me dou bem com o capitão comandante do esquadrão da PM que estava em Bissau em 1974, e que era o meu amigo Fernando Pinto, que tal como eu, continua a residir aqui em Évora.

Não leves a mal este esta minha intervenção e aqui vai um abraço Camarigo do

Joaquim Sabido
Évora

armando pires disse...

Caro Joaquim Sabino.
Camarada.
Muito obrigado pelo teu comentário. Ele reproduz fielmente o que estavam ali a fazer o Bonito e o Alentejano. Pareceu-me isso tão evidente e claro no texto que escrevi, que me pareceu desnecessárian qualquer outra explicação suplementar.
armando pires

Henrique Cerqueira disse...

Camarada Armando Pires
Eu tambem estive em Bissorã mas no ano de 73/74.Embora o meu batalhão 4610/72 fosse para Bissorã em 72 e inicialmente a minha companhia desse batalhão fosse para o Biambe e foi no Biambe que fui praxado com o "Bailarico"aos Piras.
Na realidade confirmo que essa receção inicial me deixou por momentos muito desconsertado e até um pouco triste a contrastar com a alegria dos velhinos.Mas claro que passados umas horas tudo se recompôs ainda que e com ajudinha da cervejola e outras bebidas afins.No final da comissão fiquei um pouco desiludido pois que já foi na era pós 25 de Abril,mais propriamente Julho de 74 e o espirito dos novos "piriquitos"que nos foram ainda render já era bem diferente do nosso em 72.No entanto lá demos o nosso "bailito"possível e aí já o fiz em Bissorã.
Quanto ás praxes que o Luís fala e ainda na metropole,só tenho a dizer que comigo foi o maior dos dispates que poderia haver,em especial em Tavira.Nessa altura a coisa esteve mesmo grave,pois que haviam sertos anormais que se consideravam graduados e chegaram a cometer disparates altamente lesivos tanto moralmente como fisicamente.E para mim a mais grave foi na semana de campo na serra do Caldeirão que os senhores oficiais melicianos e alguns cabo melicianos se divertiam a insultar a nossa dignidade como maridos e filhos como ainda com violência física ao ponto de eu quase abater um dos indeviduos.Foi no entanto remédio santo porque a partir dessa noite passaram a tratar todo os instruendos com disciplina e dignidade,pois que a bronca foi mesmo muito grande.O melhor ainda é que passaram a achar que eu era maluquinho mas reconheceram que tinham metido o "pé na argola".Daí eu nunca partecipei em praxes que fericem a dignidade Humana e de um modo geral sou absolutamente contra qualquer tipo de praxes que possam humilhar as pessoas.Quanto a bricar sem ofender já concordo.
Bom camarada Armando um abraço.
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Entendido, amigo Sabido, estamos d'acordo
e
obrigado pela info/correcção de que se trata de uma encenação.

SNogueira

Rogerio Cardoso disse...

Caros amigos
Eu também estive em Bissorã mas antes de vós. Também fomos render uma companhia, a 4.. e qualquer coisa, pois já não me lembro. Não houve comemorações aos piras, e sabem porquê? Porque quando estáva-mos perto, ouvimos um tiroteio já de alguma intensidade, era a vila a ser atacada, isto devia ser meio-dia, então a nossa recepção foi do melhor, claro foi a integração nas forças existentes, que de facto eram poucas pois tinham um pelotão no Olossato, e correr com o inimigo, já que vinha-mos com o sangue á flôr da pele, embora sem aquela tarimba dos velhotes, note-se que de qualquer modo não era o nosso 1º contacto com o inimigo, já o tinha-mos tido numa grande operação perto de Mansabá, estáva-mos lá para o meses de junho-julho de 64.
Um abraço ao meu amigo Armando Pires.
Nota: Não tenho nada contra a PM, faziam o seu serviço, mas no nosso tempo havia uma certa aversão ao nosso Batalhão, o 645-AGUIAS NEGRAS, quando alguma viatura vinha a Bissau,(foram as primeiras com identificação visivel com destintivo) era uma perseguição fora do normal. Isto porque o nosso Com.Brancamp Sobral os "obrigou" a fazer parte de uma coluna como força de protecção, saindo de Bissau, Jangada João Landim, e foram salvo erro para os lados de Encheia. Provocou um stress de tal modo, que eles nunca perdoaram. Quando havia alguma queixa de algum elemento nosso, o Com. resolvia o problema. Isto pode pareçer estranho ter sido assim, mas porque na altura o Bart645 só tinha exitos e como tal perante o Gen. Arnaldo Schultz, o homem era tão bem visto que fazia o que queria.E para terminar conto o que se passou comigo. Eu conduzia um Unimog perto da Amura, apetecia-me uma cervejola e pensei ir bebê-la ao bar da Amura.Quando ia para entrar, o Sarg. da Guarda disse que não podia e se queria entrar no quartel, podia deixar a viatura no exterior. Eu aceitei a sujestão, mas de repente tive um klic, se entro no quartel tenho de abandonar a viatura, e como a lei diz ela não pode ser em algum caso abandonada, então sou lixado. Isto passou-se sempre conoosco, embora sabendo nós que eram ordens mais lá do alto, porque no fim até tinha-mos amigos em alguns dos PMs.
Rogerio Cardoso
ex-fur.Mil.Cart643-AGUIAS NEGRAS