Totalmente suporto que os soldados que lutaram debaixo da bandeira portuguesa, deviam ter uma reforma do governo português, mas quero que saibas que eu também não a recebo e nunca a receberei porque nunca descontei para a caixa de aposentações [, Segurança Social,] em Portugal e sem o ter feito não tenho direito apesar de ser português, nascido em Portugal. Regras feitas pelos políticos que nunca compreenderei.
Agora um pouco de humor: dizem que os políticos são como as fraldas e que de tempos a tempos têm que ser mudados e pela mesma razão !
Voltemos ao ideal de que falei. Apesar de natureza colonialista e muito paternalista, o ideal porque lutámos, continha valores muito nobres como a liberdade e igualdade entre as raças (apesar de eu pensar que só há uma, a humana!), um país secular e multidimensional, onde brancos, pretos e mestiços podiam viver em harmonia debaixo da mesma bandeira. Só que esse mesmo ideal existia pura e simplesmente para conveniência das classes dominantes que o utilizavam para os seus próprios fins que era o controlo absoluto do seu povo, colonizador e colonizado.
Como jovem que fui, este ideal foi-me incutido desde muito jovem, ainda me lembro de ler nos livros da escola primária toda esta propaganda e pensar nessa altura que Portugal devia ser o melhor país do mundo devido a toda a sua bravura e nobreza e assim me manipularam como manipularam a maior parte da minha geração.
Para te dar um pouco das minhas experiências pessoais deixa-me dizer-te que por muito tempo me considerei Angolano/Português e não o contrário pois vivi em Angola dos 8 aos 18 anos para onde fui com toda a minha família em Janeiro de 1961 e foi aí que se passaram os meus anos formativos (**).
O meu pai sempre foi um guerreira da vida, à procura de sucesso para a sua família apesar de ter somente a 3ª classe da escola básica. Com esta sua vontade pelo sucesso, tentou emigrar para o Canadá aos vinte e tal anos, mas como tinha cadastro na PIDE, apesar de ter sido aceite pelo Canadá, o governo português não autorizou a sua saída, e assim em 1960 foi-lhe feita a proposta para ir para Angola como colono o que este aceitou, porque era aventureiro e sabia que em Portugal as oportunidades para ele eram poucas.
Lembro-me de um jornalista perguntar ao meu pai no hospital da Junqueira onde nos encontrávamos a fazer exames médicos antes da partida, para onde íamos? Ao que o meu pai respondeu Colonato do Cunene! . O dito jornalista, com lágrimas nos olhos disse em voz baixa quase inaudível:
- Isto não se faz...isto não se faz...Com dois filhos assim tão novos isto não se faz !...
Vi no rosto do meu pai pela primeira vez um ar de preocupação por todos nós, mas calou-se e não disse nada. Passadas umas semanas lá estavamos nós numa povoação chamada Castanheira de Pêra, nome bastante português mas não no norte de Portugal mas sim ao sul da Matala, no distrito do Cunene [, no sul de Angola, vd. mapa à direita].
O meu pai tentou fazer o seu melhor para triunfar mas nunca tinha sido agricultor na sua vida e em Castanheira de Pêra ou se cultivava ou se morria à fome. Uma outra estipulação era a proibição de empregar qualquer nativo para não perturbar a seu modo de vida que era basicamente a criação de gado. Como poderia um casal de portugueses brancos, vindos do Algarve, sem nunca ter sido agricultores, triunfarem no colonato do Cunene quando o governo lhes promete o Céu e no fim dá-lhes um casal de bois bravos, 4 hectares de terra, uma carrroça e diz Governa-te.
O meu irmão mais velho frequentava a escola comercial em Faro o que lhe foi impossivel continuar. A opção que teve foi trabalhar no campo a cortar bissapas, nome angolano dado a arbustos. Eu guardava os bois na bela savana angolana depois de sair da escola primária. Como calculas, o meu pai não aguentou muito tempo e em menos de um ano deixou o colonato e arranjou emprego como electricista numa fábrica de papel no Alto Catumbela onde foi bem sucedido devido ao seu esforço e vontade.
Ao mesmo tempo começou a guerra em Angola e a população branca estava aterrorizada, mesmo no Cunene. Lembro-me de dormir no sótão da nossa casa 6 meses com medo de sermos massacrados.
Cherno, a razão porque te conto toda esta história é para te dizer que as vítimas eram na maior parte das vezes os colonos e os colonizados. Nessa altura eu tinha muito orgulho em dizer em voz alta e bom som que era Angolano de corpo e alma e considerava meus compatriotas todos os pretos, brancos e mestiços que viviam no mesmo país, Portugal. Vivia eu numa comunidade afluente onde gente de toda a raça convivia em harmonia com o objectivo de uma Angola melhor.
Esta era a minha realidade mas bem analisada veríamos que não era bem assim. Em certas comunidades havia esta harmonia mas a maioria da população vivia marginalizada e num estado de pobreza extrema sendo explorada por pretos, brancos e mestiços de classe sociais mais elevadas. A exploração também não tem côr.
O princípio da desintegração de toda esta compilação de sentimentos aconteceu na viagem de Bolama para Cacine quando viajava para o meu destacamento em Gadamael. Como é que uma simples viagem de barco consegue desfazer algo acumulado em duas dezenas de anos ?
Neste mesmo navio patrulha ia um sargento das tropas africanas. Acho que o seu destino era Jemberém. Uma das declarações do mesmo foi como a percussão de todo um desencadear de pensamentos dentro do meu cérebro jovem e ingénuo. O sargento ia falando dos roncos que tinha já feito e das operações realizadas e a certo momento diz-nos que em regra quando vai para o mato "tudo o que é preto é para matar".
Para mim isto foi um choque tremendo pois este não era o sentimento nem o treino que tinha tido. Como africano estava ofendido (nessa altura ainda me sentia africano, hoje sou canadiano/português) e como comandante militar senti nesse momento que havia algo de errado nesta guerra para onde ia. O inimigo para mim não tinha côr mas sim uma ideologia que era diferente da minha e que a queria impor à força, a Portugal e às populações, que viviam debaixo da mesma bandeira. Para o sargento o inimigo era preto e vivia no mato fora das zonas controladas pelas nossas tropas. Quem estaria certo ?
Mas como podia este homem vêr os seus irmãos da mesma côr vivendo na mesma "província" como inimigos mortais ? Seria que eram todos turras ? Seria que este sargento não tinha sentimentos ? Seria que se encontrasse com um cubano branco não o matava e só mataria os pretos ? Quem teria incutido este ódio num homem que parecia afável em todos os outros aspectos ? Será que eu e os meus soldados iríamos ter os mesmos sentimentos passado uns tempos ? Esperava sinceramente que não, mas já não tinha a certeza de nada.
Por fim cheguei a Gadamael, entrei dentro da rotina dos bombardeamentos mas este sargento não me saía da mente pois não queria ser como ele. O 25 de Abril diminuiu este tipo de preocupação mas começou uma nova série, relacionada com as consequências da descolonização.
De início não podia imaginar que Portugal poderia abandonar as então chamadas "províncias ultramarinas" porque eu conhecia bem Angola e a realidade angolana. Compreendi logo de início que a Guiné era muito diferente e que a minha experiência angolana não era a mesma na Guiné. Lembro-me das conversas com os meus soldados tentando mentalizá-los que o regresso a casa talvez demorasse mais do que eles pensavam, que no meu parecer Portugal não ia abandonar as populações e as tropas africanas e que para tudo isto se resolver era preciso tempo. A resposta deles era quase sempre a mesma: Eles que resolvessem isso depressa que eles queriam ir para casa. O mesmo sentimento era quase unânime entre os outros pelotões e os oficiais e sargentos.
Foi então que entendi que os princípios e ideais porque estava lutando não eram iguais à maioria dos meus camaradas . Nessa altura eu ainda me sentia africano e tinha um peso enorme no coração por saber o que estava para acontecer a todos os meus compatriotas angolanos com a inevitável retirada. Tinha por lá ainda muitos amigos de infância e estava preocupado. A minha preocupação era legítima pois a maior parte deles veio de lá com as calças na mão como se costuma dizer.
O 25 de Abril foi um processo irrefreável como um comboio sem travões descendo uma ladeira. A descolonização ia ser feita o mais rapidamente possível desse no que desse.
Os comandos militares do MFA sabiam que não podiam mandar a guerra continuar porque na mente dos militares a guerra já tinha acabado e agora era tudo "democracia" portanto "o povo é quem mais ordena" e o povo ordenou a entrega das colónias que foi um termo rejuvenescido para justificar o que já estava num processo irreversível.
Se os caixões continuassem a chegar a Portugal, o povo revoltarse-ia e também acho que os militares não aceitariam um continuar da guerra. As negociações não contemplavam mais nada do que a independência total e era pura e simplesmente uma questão de quando e não se nos íamos retirar. Associações de soldados, sargentos e oficias milicianos começaram a aparecer por todo o lado dentro das Forças Armadas e já não se decidia nada a não ser por comité.
Infelizmente, Cherno, a descolonização que se fez não foi a que deveria ter sido feita mas a que foi possível fazer dentro de um clima que na altura se tornou caótico e que injuriou brancos, pretos e mestiços que se consideravam cidadãos de um Portugal multirracial e pluricontinental, principalmente aqueles vivendo em África.
Por outro lado temos também que imputar responsabilidade aos movimentos de libertação pois para bem do povo estes deviam ter insistido numa outra descolonização. Era o interesse e o bem estar do seu povo que beneficiaria de uma descolonização ordenada preservando a economia, e infraestruturas do governo como a educação e a saúde pública. Não foi isto que os movimentos exigiram de Portugal o que queriam era que saíssemos o mais rápido possível para que pudessem discutir entre eles quem reinaria, e foi isso que fizemos em detrimento do povo africano (branco, preto e mestiço)
A minha visão deste assunto e de outros tem evoluído através dos tempos com a minha própria maturação e um entendimento mais global do mundo, vejo hoje as coisas de maneira diferente, as coisas já não aparecem a preto e branco mas sim em diferentes tons incluindo todas as cores do arco íris. Também descobri através de muitos anos de ponderação e experiência que a culpa em coisas deste géreno não vem só de um lado e que, para se resolver os probemas sérios, temos que escutar, analisar, reflectir, pedir desculpa e desculpar. Um dos grandes exemplos, e filho de Africa é o Nelson Mandela que conseguiu pacificar o seu povo. Devia haver um Nelson Mandela para cada país do mundo, principalmente em África.
Não te quero cansar mais pois esta história já está muito comprida. Quero novamente agradecer as tuas palavras e também os teus textos que acho maravilhosos.
Obrigado
Jose Goncalves
Alf Mil Op Esp