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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

Fotografia oferecida por René Pélissier ao blogue, o historiador está na sua biblioteca em Orgeval, França


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Dito cabalmente por quem agora nos deixou, a única vez que este notável historiador colaborou com um blogue, foi connosco, ofereceu-nos uma meditada reflexão sobre a dimensão caleidoscópica sobre a literatura da guerra colonial. E jamais esqueci a observação que ele me fez, em jeito de admiração, quanto à singularidade dos nossos encontros de veteranos, para ele era a prova provada de que as tribulações da guerra jamais se apagam, a elas se volta nesses encontros de partilha, foi nesse convívio que diariamente todos arriscaram a vida, o encontro, segundo ele, tão mais do que a recordação dos que partiram era a lição ao vivo de quanto pesa a solidariedade e a camaradagem.

Um abraço do
Mário



Agradecimento a René Pélissier que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador

Mário Beja Santos

Acaso ou destino, no exato momento em que tive a infausta notícia do falecimento daquele que terá sido o historiador francês que mais se dedicou a investigar o império português, fundamentalmente do século XIX aos tempos da descolonização, folheava na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa o Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné, a décadas que vão de 1840 a 1860, o início do trabalho de Pélissier na sua História da Guiné. É chocante o contraste entre a documentação oficial e a realidade que se vivia naquele momento no enclave português daquele ponto da costa ocidental africana, a França a procurar “despejar” a presença portuguesa das margens do Casamansa e os britânicos a querem apossar-se do Rio Grande de Bolola e de Bolama, dava-lhes jeito em termos de feitorias até à Serra Leoa.

Pélissier desvela o tráfico de escravos quase oficial, as sublevações de Bissau que exigiram a implantação de tropas preparadas naquela que vai ser a capital da colónia, mas aonde os Grumetes não dão descanso ao Governador da Praça. Isto para dizer ao leitor que Pélissier nos prestou um grande serviço tratando de forma rigorosa e verosímil a nossa presença, naquele também bastante circunscrita aos rios e rias da faixa litoral, as menções a Gabu só serão conhecidas em meados do século XIX.

Há um texto do notável historiador no nosso blogue, uma importante apreciação da literatura saída do punho dos militares, convido os confrades a relê-la, continua atual.[1]
Pélissier andava sempre a bater à porta das editoras pedindo-lhe livros não só referentes à literatura da guerra colonial como historiografia vária. No princípio do século ele só tinha sido publicado na Editorial Estampa: "História das Campanhas de Angola", "História de Moçambique" e esta "História da Guiné" circunscrita ao período de 1841 a 1936 (como se tivesse desenhado um arco histórico entre o término formal da abolição da escravatura e a pacificação de Canhabaque), conheceu edições posteriores ligadas à Faculdade de Letras do Porto. Era colaborador assíduo de publicações científicas.

Não me cabe fazer a laude do cientista, é trabalho para historiador avisado, que eu não sou. Mas sinto-me agradecido a Pélissier, ele distinguiu o nosso blogue, não se sentia animado a participar nas redes sociais, enviou-me cartas manuscritas e exigiu rever o que dele procurei adaptar. Há um aspeto para mim muito tocante da leitura que ele fazia da literatura da guerra e que se prende com os encontros regulares dos veteranos. Ele não escondia o seu assombro, a sua leitura, disse-me numa carta, passava por aquela camaradagem e solidariedade comuns que se prendia com as condições precárias, a tensão permanente e os medos partilhados. Tratava-se de um património que marca a existência até ao fim dos dias. Esses tais encontros podiam ser assumidos como um hino à vida, depois de tanta devastação e companhia do horror e das tribulações do quotidiano, tivesse a vida tido os êxitos que teve na existência de cada um, nada demais exaltante que estar um dia por ano com quem nos acompanhou naquele que terá sido o acompanhamento mais importante da vida de cada um. Agradeço esta lembrança a este historiador francófono cuja imponente biblioteca veio para Portugal.

René Pélissier (à direita), quando distinguido pela Universidade de Lisboa como Doutor Honoris Causa, 2022[2]

Obras de René Pélissier sobre a Guiné colonial
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Notas do editor:

[1] - Vd. posts de:

26 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)
e
28 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

[2] - Vd. post de 7 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23150: A Universidade de Lisboa, sob proposta da Faculdade de Letras, atribuiu o grau de Doutor Honoris Causa a René Pélissier como reconhecimento de mérito Académico, Científico e Profissional na área da História de Portugal

Vd. post anterior de 19 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25413: In Memoriam (502): Historiador René Pélissier (1935-2024), que dedicou vasta obra literária às antigas possessões portuguesas em África

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Foi uma belíssima escritora, de um ecletismo com forte propensão para a literatura juvenil e uma vertente memorial de grande rigor e sobriedade. Nunca se deixou condicionar pelo facto de ser casada com António Ferro, o responsável pela propaganda do Estado Novo. O que aqui se refere é a sua vivência em Bolama, o pai era o responsável da capitania do Porto, chegou aqui pela primeira vez com 13 anos, foi uma estadia traumática, a mãe faleceu provavelmente de febre-amarela, foi recambiada com o irmão pequeno para Portugal, voltará mais tarde, entretanto o pai voltou a casar, há mais irmãos, mandou a roda da fortuna uma nova colocação em Bolama, ela praticamente omite a segunda estadia, mas que aquela Guiné a subjugou é bem patente nesta "África Raiz" publicada em 1966, é uma elegia onde se misturam a ode triunfal com atmosferas misteriosas, onde pesa muitíssimo o exotismo, a floresta densa, os intermináveis fios de água. Lê-se com imenso agrado esta poetisa marcada pelo modernismo, cantando a África mãe, empolgada, chamando-lhe mater e matriz: "tu, África és raiz, és raiz".

Um abraço do
Mário


Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense

Mário Beja Santos

A escritora Fernanda de Castro (1900-1994) viveu na infância em Bolama, e "África Raiz", poema publicado em 1966 é uma obra modernista eivada de recordações desse tempo juvenil em que o pai dirigia a capitania de Bolama, não faltam no livro as referências que a memória reteve, as florestas, rios de água, aromas, o sortilégio das noites africanas, batuques, a flor do cajueiro, as danças. 

À data da edição, Fernanda de Castro era já uma autora prolífica, detentora de uma obra volumosa que se estendia pela poesia, pelo romance, teatro, literatura infantil e romance. Mariazinha em África foi o seu maior sucesso, remexeu neste romance as vezes que foram necessárias, de acordo com a necessidade de mudar o olhar colonial, evolutivo, de acordo com o ideário do Estado Novo. O poema "África Raiz" é dedicado à terra de Bolama, onde a sua mãe faleceu e está sepultada.

O tom exaltativo e exultativo arranca logo nos primeiros versos:

“África,/ no teu corpo rugem feras,/ uivam fomes e medos ancestrais,/ no teu sangue há marés,/ na tua pele há dardos e punhais./ Ventre de Continente,/ és mater e matriz./ Ásia é semente, Europa é flor,/ outros serão essência ou tronco,/ tu, África, és raiz”

Fala-nos de florestas venenosas de gigantes, de ciclopes vegetais, de pirogas e crocodilos, do rastejar das cobras, do esvoaçar dos jagudis, é uma permanente apoteose de musicalidade, entremeando-se do cheiro do almíscar, dos corpos em convulsão, não faltam tapetes vegetais, florestas fechadas, contas e missangas, o inevitável poilão, e lança-se, empolgada, como que desafiando tudo quanto a memória reteve:

“Ó África, raiz de quantas Áfricas/ pelo mundo espalhadas lhe consentes./ África mítica dos mitos/ de cinco Continentes./ África negra em cujas veias corre/ um sangue denso e grosso./ África impenetrável, obstinada, desbravada a machado, troço a troço”

Atenta aos costumes do quotidiano, deixa-nos um outro apontamento da memória: 

“Mulheres e bajudas/ lavam roupa no rio./ Veias de sangue branco, os rios,/ quilómetros de veias que percorrem/ a terra calcinada,/ que alimentam/ o arroz e dessedentam/ os pés de milho e de mancarra./ Escondida no mangue,/ uma piroga, sem remos, sem amarra,/ parece um velho tronco,/ um crocodilo à tona de água”.

A elegia é permanente, marcou-lhe a juventude aquela Bolama, como veremos mais adiante no seu texto "Ao Fim da Memória I, 1906-1939", deixemo-nos por enquanto com a sua ode triunfal:

“África das manhãs de Paraíso, com pombas e gazelas e açucenas/, com doces frutos nunca proibidos,/ e cantos de marimbas e de avenas”

Há o sino da igreja, e logo me ocorreu que a Igreja de Bolama que ela frequentou foi devorada pelo incêndio, aquela em cuja missa participei oficiada em crioulo é outra, crianças e adultos cantando, talvez os convertidos Mancanha e Manjaco, Balanta e Baiote, Papel e Bijagó que ela também conheceu. Fernanda de Castro é uma sexagenária avançada quando produziu "África Raiz", brotou-lhe espontânea aquela África voluptuosa e seguramente as lembranças da jovem adolescente que ouviu trovões e se impressionou com o desabamento das águas, como escreveu:

“E de repente/ uma nuvem de chumbo tapa o Sol,/ como asa de agoiro,/ e um vento negro escarva, muge, arranca,/ com a fúria de um toiro./ O céu ruge trovões, estoira lumes/ nas copas incendiadas, as rajadas/ retalham como gumes/ de aceradas espadas,/ arrancam arrozais, abrem crateras,/ uivando como lobos,/ como esfaimadas feras./ Tudo é calor,/ suor,/ tudo é cinzento,/ o céu e o vento”.

Nas suas memórias, inevitavelmente que tudo começa pela apresentação de Bolama, onde chega com a mãe e o irmão, receção apoteótica do pai, lembra-se que ao longo do cais havia muita gente, “Deram-me na vista, acima de todos, os Bijagós com os seus saiotes de palha, os Mancanhas embrulhados em grandes panos azuis e os Mandingas com as suas cabaias de um branco imaculado”. Sobressaía o Palácio do Governo, o edifício mais imponente, mas sem rasto de beleza e ali perto o edifício da capitania, logo se agradou de um jardim em que havia bananeiras e papaeiras e uma grande quantidade de hibiscos de grandes flores encarnadas.

“A cidade de Bolama era na realidade uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, por exemplo, se não fossem os trajes garridos, os planos coloridos das mulheres, os balaios que traziam à cabeça, e se não fossem também os capacetes coloniais, que os brancos eram obrigados a usar se queriam cometer a imprudência de sair à hora do calor”.

 Criou amizades, a sua vida era simples e agradável, faziam a sesta sobre a proteção de grandes mosquiteiros de tule, à noite havia sempre visitas, ela tem 13 anos, não se apercebe das dores de cabeça da mãe que irá inopinadamente morrer de febre amarela. E é o regresso dramático a Lisboa com o irmãozinho, uma viagem que se arrasta com uma estadia inesperada em Cabo Verde. Manda a roda da fortuna que se diga que o pai irá de novo casar e anos depois será de novo colocado na Capitania de Bolama, viagem de navio, não se recorda exatamente se foi no Bolama se no Guiné, de novo uma avaria em Cabo Verde, ficaram um mês retidos em S. Vicente, onde um jovem se mostrou galante, ela totalmente indiferente e um belo dia chegaram a Bolama, não nos ficará registo do que aqui se passou.

O seu legado principal, insiste-se, é o romance "Mariazinha em África", um sucesso de décadas. Leopoldo Amado no seu trabalho sobre a literatura colonial guineense dar-lhe-á um grande apreço. Uma outra nota singular é referir que outra escritora passou por Bolama, e deixou-nos páginas tumultuosas da época das chuvas, foi Maria Archer.

Lê-se o testemunho de Fernanda de Castro e o que mais pesa é a morte da sua mãe, aquela noite em que ela e o irmão foram tirados do sono e rapidamente recambiados para Bissau:

“Eu estava exausta, sacudida por maus pressentimentos, mas apesar disso adormeci. Quando o meu pai chegou, desfeito, com ar alucinado e as lágrimas a correrem-lhe em fio, esqueceu as palavras que por certo preparara e disse-me apenas, apertando-me convulsivamente:
- Morreu! A tua mãe morreu há duas horas. E agora, agora, o que vai ser de nós. E eu não conseguia dizer nada, chorava também convulsivamente, misturando as minhas lágrimas com as dele.”


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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17256: Meu pai, meu velho, meu camarada (55): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1.º cabo, 1.ª Comp /1.º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte VI (e última): a seca, a fome, a miséria na ilha de Santo Antão



Foto nº 28 A


Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > "A fome, a miséria"...  (Foto nº 28)


[Este é  o retrato das condições miseráveis em que vivia grande parte da população, no interior da ilha de Santo Antão... Em 1940 e depois em 1942 e anos seguintes a seca prolongada foi responsável por uma das maiores catástrofes demográficas da história de Cabo Verde: este é o pano de fundo do romance "Hora di Bai", publicado em 1962, pelo escritor português Manuel Ferreira (Gândara dos Olivais, Leiria, 1917-Linda a Velha, Oeiras, 1994), também ele mobilizado como expedicionário em 1941, com o posto de furriel.  (*)

[Manuel Ferreira (, foto à esquerda, com a devida vénia ao blogue Literatura Colonial Portuguesa), é também autor, entre outros,  de "Morna" (1948), livro de contos,  e "Morabeza" (1958), romance, obras depois reunidas em 1972 num único volume, "Terra Trazida".

[Depois do 25 de Abril de 1974, Manuel Ferreira fez carreira académica, e nomeadamente leccionou  na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde introduziu a cadeira Literatura Africana em Língua Portuguesa. É autor de inúmeros ensaios e de publicações nesta área: destaque para a sua obra "Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa" (editada em dois volumes, pelo ICALP, em 1977). Celebra-se este ano o 1º centenário do seu nascimento, estando a sua cidade, Leiria, a preparar uma exposição a cargo do professor e investigador João B. Serra].


Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Foto nº 27 > "A fome, a miséria"... A grande seca de 1943 foi evocada no romance de Manuel Ferreira, ele próprio expedicionário, "Hora di Bai"... O título diz tudo sobre o dramático dilema que enfrentava o cabo-verdiano de ontem (e de hoje): a vontade de ficar, a necessidade imperiosa de partir... 




Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Foto nº 29>  "Feiticeiro"



Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Foto nº 26 > "Pesca de um grande tubarão"



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1943 > Foto nº 33 > "Tartaruga que deu à costa".


Fotos (e legendas): © Augusto Silva Santos (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Sexta (e última parte) do álbum fotográfico do pai do nosso camarada e grã-tabanqueiro Augusto Silva Santos (que reside em Almada e foi fur mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73, tendo antes da tropa trabalhado na marinha mercante, e nomeadamente nos navios de transporte de tropas para o ultramar).

Recorde-se que o Augusto Silva Santos disponibilizou, ao nosso editor Luís Graça (que também teve o pai, Luís Henriques, 1920-2012, como expedicionário na Ilha de São Vicente), 33 fotos, digitalizadas, do seu pai, Feliciano Delfim Santos (1922-1989) [, foto à direita] e dos seus camaradas da 1.ª companhia do 1.º batalhão expedicionário do RI 11 (Setúbal), que estiveram na ilha do Sal, aquartelados em Pedra de Lume, entre meados de 1941 e 15 de março de 1943 , e o resto do tempo, até final de 1943, na ilha de Santo Antão (*).

Os "expedicionários do Onze" partiram do Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, no vapor "João Belo", a 16 de junho de 1941, com desembarque na Praia, ilha de Santiago, a 23 do mesmo mês. Estiveram grande parte do tempo (cerca de 20 meses) na então desoladora ilha do Sal, em missão de soberania, em plena II Guerra Mundial.

As últimas fotos, que publicamos hoje, são da ilha de Santo Antão (fotos nºs 26, 27, 28, 29).  A foto nº 33 é da ilha de São Vicente, bem como as fotos nºs 30, 31 e 32 (já publicadas no poste P17002, de 30/1/2017).(*)

No final da comissão, o pessoal do "Onze" fez um passagem pela ilha de Santo Antão (de meados de março a dezembro de 1943), para retemperar forças antes do regresso a casa. Ao todo estes "nossos pais, nossos velhos e nossos camaradas" cumpriram cerca de dois anos e meio de comissão de serviço em Cabo Verde. O RI 11 teve 16 mortos por doença na ilha do Sal. 

Segundo o nosso camarada Augusto Silva Santos, o seu pai, na sua passagem pelo Sal e por Santo Antão, chegou a  viver maritalmente com uma cabo-verdiana,  de seu nome Maria Helena Almeida, de quem viria a ter um filho chamado Fernando Almeida Santos (hoje teria 75 anos de idade). Ambos faleceram prematuramente por doença, sem que ele os pudesse valer. (**)
 __________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série >

20 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17064: Meu pai, meu velho, meu camarada (54): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1.º cabo, 1.ª Comp /1.º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte V: Restos de espólio: o orgulho de ter pertencido ao Onze... E mais duas fotos de Pedra de Lume

10 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17039: Meu pai, meu velho, meu camarada (53): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1.º cabo, 1.ª Comp /1.º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte IV: Ilha do Sal, Feijoal

2 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17016: Meu pai, meu velho, meu camarada (52): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1º cabo, 1º Comp /1º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte III: Fotos de Pedra Lume, Morro Curral e Espargos, na ilha do Sal

30 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17002: Meu pai, meu velho, meu camarada (51): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1º cabo, 1º Comp /1º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte II: "Colá San Jon", na Ribeira de Julião, ilha de São Vicente, 1943


terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6946: In Memoriam (49): Elegia à Fernanda de Castro, escritora que viveu em Bolama e dedicou alguns dos seus livros à Guiné (Leopoldo Amado)



Fernanda de Cstro (1900-1994)



1. Mensagem de Leopoldo Amado, historiador guineense, membro da nossa Tabanca Grande, com data de 30 de Agosto de 2010:

Caro Vinhal,

Segue um texto para a partilha na Tabanca Grande, caso assim entendam.

A todos e, em especial para ti e para o Luís Graça, um abraço do amigo, sempre ao dispor.

Leopoldo Amado


Elegia à Fernanda de Castro

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro [, 1900-1994]. Ela mais que merece.

Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.

Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.

Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.

Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.

Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.

Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.


Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência. Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.


Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.

Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muito escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.

Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe da escritora (**) e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.

Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.

Leopoldo Amado
Agosto de 2010.

PS: cf. o site sobre Fernanda de Castro: http://fernanda-decastro.blogspot.com/

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Poetisa, romancista, dramaturga e tradutora Fernanda de Castro (1900-1994) estreou-se aos 19 anos com o livro de poesia Ante-Manhã. Vence nesse ano (1919) o Primeiro Prémio no concurso de originais do Teatro Nacional, com a peça Náufragos. Com o romance Maria da Lua (1945) foi a primeira mulher a obter o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1969 é-lhe atribuido o Prémio Nacional de Poesia. Fernanda de Castro foi ainda tradutora de Rainer Maria Rilke (Cartas a um Poeta), de Katherine Mansfield (Diário), de Pirandello (Uma verdade para cada um) e Ionesco (O novo inquilino).

OBS:-Retirado do Blogue Fernanda de Castro, com a devida vénia
CV
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6829: Efemérides (48): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no cais do Pindjiguiti, Bissau (3) (Leopoldo Amado)

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6710: In Memoriam (48): Adelino da Silva Sineiro da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67 (Vasco Santos)

(**) Vd. nota biobliográfica na Wikipédia:

(...) Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro (Lisboa, 8 de Dezembro de 1900 – 19 de Dezembro de 1994), foi uma escritora portuguesa.

Fernanda de Castro, filha de João Filipe das Dores de Quadros (oficial da marinha) e de Ana Laura Codina Telles de Castro da Silva, fez os seus estudos em Portimão, Figueira da Foz e Lisboa, tendo casado em 1922 com António Joaquim Tavares Ferro. Deste casamento nasceu António Gabriel de Quadros Ferro que se distinguiu como filósofo e ensaísta e Fernando Manuel Teles de Castro e Quadros Tavares Ferro. A sua neta, Rita Ferro,  também se distinguiu como escritora.

Foi juntamente com o marido e outros, fundadora da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, actualmente designada por Sociedade Portuguesa de Autores.

O escritor David Mourão-Ferreira, durante as comemorações dos cinquenta anos de actividade literária de Fernanda de Castro disse: “Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite”.

Parte da vida de Fernanda de Castro, foi dedicada à infância, tendo sido a fundadora da Associação Nacional de Parques Infantis, associação na qual teve o cargo de presidente.

Como escritora, dedicou-se à tradução de peças de teatro, a escrever poesia, romances, ficção e teatro. (...) 

domingo, 30 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6500: Meu pai, meu velho, meu camarada (22): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente, 1941/43, 1º Cabo Inf Luís Henriques (5) (Luís Graça)



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo  (ou Ribeiro de Julião ?) > Legenda: "Jantar em San Vicente, Nosse terre. Nativos em festa. Recordações da minha estada em C. Verde (Expedição). 1941-1943. Luís Henriques".




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Ribeira de Julião  > 1943  > Legenda, a tinta verde, já quase impercetível: "Dançando o batuque na Ribeira de Julião,  no dia [da festa ?] de S. João [...] 1943. Luis Henriques". Foto Melo.




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Hospital, fundado em 1899.




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Julho de 1942 > Praça e  Mercado da  cidade



 


Vídeo (1' 30''): © Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes


"30 pessoas morriam por dia, no Mindelo", em São Vicente, no auge da fome que grassou em Cabo Verde... A cidade do Mindelo, cuja economia foi profundamente afectada pela guerra,  não escapou aos horrores da seca e da fome. Aí estavam estacionados alguns milhares (c. de 3300)  expedicionários portugueses, como o 1º  cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5).

Os mortos eram levados em esquife e enterrados em vala comum, no cemitério de Monte Sossego. Não se sabe qual foi a morbimortalidade entre os soldados, mas também deve ter sido elevada (por turbeculose, doenças diarreicas, e outras).

Foi, só mais tarde,  ao ler o romance Hora di Bai (editado pela Vértice em 1962), do Manuel Ferreira (1917-1992), expedicionário como o meu pai (esteve no Mindelo entre 1941 e 1947), que eu me apercebi  dessa tragédia imensa, a seca e  a fome que assolou, em 1941/43,  o arquipélago de Cabo Verde (e depois de novo, no pós-guerrem 1946/48). E que matou meninos como o Joãozinho, que rondavam o quartel e que o meu pai protegia, dando-lhe os restos de comida. (Em 1941/43, ilhas como S. Nicolau e o Fogo perdem cerca de um terço da sua população).

O meu pai, à beira de completar 90 anos, já não é capaz de dar, com precisão, as datas em que terá ocorrido o pico da epidemia de fome. Muitos militares portugueses não tiveram  a exacta consciência dessa tragédia que, de resto, também não foi conhecida pela população portuguesa metropolitana.  Até por que em no Portugal metropolitano a morte, nomeadamente a mortalidade infantil (mais de 120 casos por 1000!) era banal, a par da mortalidade por tuberculose entre os jovens (10% de todas as mortes!). 

 Os números que o meu pai cita, devem referir-se ao 1º semestre de 1943. Ele diz que "não viu,  ouvia dizer",  quando esteve internado ("quatro meses"), no hospital militar (ou anexo, um estabelecimento de repouso,  a nordeste da cidade do Mindelo), já na parte final da sua comissão. Ele esteve 26 meses na Ilha, como expedicionário entre julho de 1941 e setembro de 1943. Teve alta da junta médica hospitalar em 17/8/1943. 

De qualquer modo, trinta mortos por dia era muita gente, numa ilha que não tinha mais do que 15 mil habitantes (em 1940), e contou com a presença de mais de 3300 expedicionários, entre meados de 1941 e finais de 1943 (o que dava um elevada densidade militar na ilha: 4,5 habitantes por cada expedicionário).

Texto e fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:



Vd. também 

24 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5154: Meu pai, meu velho, meu camarada (19): Cabo Verde, 1942: Plano de defesa do arquipélago, de Santos Costa (José Martins)

15 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5101: Meu pai, meu velho, meu camarada (17): Ilha de S. Vicente, S. Pedro, 1943: Armando Duarte Lopes (Nelson Herbert)

27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5019: Meu pai, meu velho, meu camarada (13): Mindelo, ontem e hoje ( Lia Medina / Nelson Herbert / Luís Graça)

9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)

20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa em África (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução

1. Dizia-nos Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em mensagem do dia 1 de Outubro de 2009:

Luís e Carlos,
Para mim, este livro é uma inteira revelação. Nem o Leopoldo Amado o menciona no seu importantíssimo ensaio "A literatura colonial guineense". Tenho muito orgulho em passar esta informação para dentro da nossa caserna.

Um abraço do Mário



Esta mensagem e respectivo anexo deu origem ao poste 5069* que começava assim:

A Guiné e o 1.º Prémio da literatura colonial, 1936

por Beja Santos

É curioso como o título "África, da vida e do amor da selva” consta de toda a bibliografia elementar da história da Guiné e nunca foi me foi possível encontrar a obra nas principais bibliotecas. Na verdade, o autor mencionado é sempre João Silva e agora, quando finalmente encontrei o livro, o nome que consta é João Augusto. Trata-se de uma obra a vários títulos singular, pode perfeitamente emparceirar, pelo grau de importância, com “Mariazinha em África”, de Fernanda de Castro, e “Auá”, de Fausto Duarte, duas obras pioneiras na literatura colonial guineense. Não consegui encontrar quaisquer referências a João Augusto que, conforme se pode ler no livro “África, da vida e do amor da selva” viveu bastantes anos na Guiné (e pelo menos durante seis anos foi caçador). O que ainda aguça mais a curiosidade é querer descobrir o que ali fez João Augusto (Silva) e como estabeleceu uma relação tão profunda com a Guiné e o seu povo. Um desafio para todos nós, em Portugal e na Guiné. [...]


2. Em 7 de Outubro recebemos de Carlos Schwarz (Pepito), que é Eng.º Agrónomo, dirigente da AD - Acção para o Desenvolvimento, e membro da nossa Tabanca Grande, uma mensagem que deu origem ao poste 5084**, de onde salientamos:

Luís,
Vi hoje a observação do Beja Santos com a descoberta do João Augusto Silva
. Fartei-me de rir com o facto, uma vez que ele é meu tio e deixou marca na sua passagem por cá. Tinha um sentido de humor fabuloso e eu tinha uma adoração especial por ele, até porque era muito parecido com o irmão mais novo, o meu pai. Tinha uma imaginação prodigiosa. [...]



3. No dia 17 de Outubro de 2009, recebemos do nosso Tertuliano Leopoldo Amado (Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974) esta mensagem:

Caro Beja Santos,
É verdade que não mencionei este livro no pequeno trabalho que escrevi (e partilhei convosco) sobre a literatura de guerra colonial sobre a Guiné. Mas conheço a obra desde os idos anos de oitenta (talvez 1985) pela mão do meu então mestre da cadeira de História da Cultura Portuguesa da FLL, Prof. João Medina, que na altura deu-me emprestado o livro sem me informar que era do pai.

Lembro-me que li de um só fôlego esse livro que achei maravilhoso e só foi então que o meu mestre (eterno mestre, diga-se de passagem!) deu-me a conhecer que o autor era seu pai. Aliás, foi também o Prof. Medina que me proporcionou a leitura de Auá, de Fausto Duarte e Babel Negra, de Landerset Simões, obras que me serviram de base à pesquisa e posterior elaboração de um extenso artigo sobre a Literatura Colonial Guineense, publicado primeiro na extinta Revista do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) e depois em Bissau (revisto e aumentado), na Revista Soronda, do INEP.

Nessas publicações, obviamente, foi referenciado o livro de João Augusto Silva (vide anexo).

Aqui vai, para ti, Luís Graça, João Tunes, Carlos Vinhal, Pedro Fiso, Pepito, Santiago, Mário Dias e ainda todos os outros camaradas da Tabanca Grande - que vêm esforçando para que a memória simplesmente não se apague - um singelo mas grande abraço de saudades.
Leopoldo Amado


A Literatura colonial guineense - Parte I (1)
por Leopoldo Amado

Uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores.


Introdução

Remonta ao século XIX o surgimento massivo da Literatura Colonial Portuguesa, não obstante podermos recuar até ao século XVII para situar alguma literatura que, ocasionalmente, se produziu no contexto do Império Colonial Português (2) . Todavia, foi essencialmente na década de 20 do século XIX, após a independência do Brasil, que este género literário ganhou corpus devido essencialmente à política colonial portuguesa de então que, no intuito de substituir a importância económica do Brasil, delineou todo um plano de emigração massiva de colonos portugueses para territórios africanos, com particular incidência para Angola.

Repare-se que na época, como aliás em todo o processo de colonização da Guiné, as preocupações da política colonial eram secundárias em relação, por exemplo, a Angola ou Moçambique. O facto de a política de fomento colonial não ter assumido proporções consideráveis na Guiné, justifica a quase inexistência de uma produção literária no século XIX, assim como nos períodos que lhe antecedem. A associar a isso, ocorre que em termos da definição dos objectivos económico-coloniais da altura, a ocupação da Guiné Portuguesa era justificada mais por questões de prestígio, às quais se juntavam, obviamente, preocupações estritamente comerciais. Consequentemente, os anais da altura põem a descoberto uma sociedade deletéria de degredados e personas non gratas a que não era alheio o sentimento de abandono a que estava votada a Guiné, agravado ainda pelo cenário constante das guerras de pacificação, ou melhor, da resistência africana.

Num momento em que as Literaturas Africanas de expressão portuguesa começam a se afirmar em paralelo com outras literaturas, não só por um processo de redimensionamento cultural que lhe subjaz, mas também pela descolonização literária em curso, pareceu-nos oportuno chamar a atenção para a existência de uma Literatura Colonial produzida na Guiné, ou melhor, de inspiração guineense. Por isso, e por se tratar – ao que sabemos – de uma das primeiras tentativas do género, com todos os riscos que acarreta, vai pois o nosso pedido de indulgência para que este modesto estudo seja tomado como notas a lápis, conquanto possa contribuir para despoletar o interesse de estudos por temáticas como esta com serenidade isenta de ressentimentos reminiscentes ou, ainda, com a naturalidade histórica resultante da convivência intercultural de séculos. Foi apesar disso, e por isso mesmo, que intitulámos este estudo de Literatura Colonial Guineense.

Do ponto de vista metodológico, não nos detivemos tanto em apresentar uma definição da Literatura Colonial que sabemos ser – e com razão – controversa, carecendo de debate conceitual e epistemológico dado o reduzido número de trabalhos publicados sobre o assunto (3).

Por isso, procurámos não utilizar unicamente o critério literário na selecção de fontes, recorrendo também a textos de natureza etnográfica, etnológica, antropológica e, ainda aos contos da tradição oral fixados através da escrita. Para colmatar a ausência definicional da Literatura Colonial, procuraremos ao longo de todo este estudo anunciar, explícita ou tacitamente, a configuração daqueles elementos que encerram um conjunto de valores que cremos essenciais à definição caracteriológica do que eufemísticamente (ainda) se designa por Literatura Colonial.

Como quer que seja, optámos por não nos coibirmos à problematização de algumas considerações conceituais que se prendem com a Literatura Colonial: anteriormente denominada Literatura Ultramarina e mais tarde Literaturas Africanas, a Literatura Colonial, por este facto, revelava-se sincrética nos conceitos a ela ligados. A consciência de que este género literário situado em África mas que nem por isso era africano, levou a que se combatesse tanto a ex pressão Literatura Ultramarina como a de Literatura Africana. Esta por razões que interrogam a sua africanidade, e aquela porque era notória a imagem lírica que os autores transportavam da sua terra. Começou-se então a vislumbrar uma nova definição e, consequentemente, a prática literária-colonial adquiriu uma nova dinâmica de conteúdo Nos anos trinta deste século já não era fácil a aceitação de revelações de turismo intelectual, assim como de sensações estranhas e exóticas.

Ao exotismo passou-se a contrapor a necessidade de avaliar o nível de adaptação dos colonos e ainda o seu relacionamento com o colonizado, numa perspectiva de redefinição conceitual que apontava para a necessidade de privilegiar o estudo da alma primitiva, secundando os conhecimentos técnicos, a sociologia e a antropologia. Isto porque, segundo Robert Cornevin, “os autores coloniais não são metropolitanos de passagem que ficaram ligados à mãe pátria, eles optaram pela colónia e é já não da Europa mas da colónia, que eles presenciam o evoluir dos acontecimentos…” (4) . Posto isto, resta referir que a designação Literatura Colonial possui conotações político-ideológicas que tendem a sobrepor-se à sua axiologia literária-cultural em termos conceptuais. A título de exemplo, autores coloniais como Castro Soromenho (Angola) e Fausto Duarte (Guiné) puderam transpor em certa medida, os parâmetros que a designação impunha para vislumbrarem a busca de uma identidade nacional (5).

E porque houve autores coloniais que avançaram e/ou recuaram relativamente ao contexto histórico-cultural da sua época, resta-nos esperar que o debate conceitual e epistemológico que se avizinha possa aclarar com novas luzes a problemática da Literatura Colonial. Do nosso ponto de vista, temos sempre presente que o que mais interessa de momento é encarar de modo problemático o estudo da Literatura Colonial, convencidos de que só em certo sentido a literatura é objecto historiavel: na exacta medida em que se prende à História das ideias, à História de uma sociedade ou de grupos sociais, à História (biográfica) dos autores ou ainda na medida em que as leituras da obra literária se vão sucedendo no tempo, condicionadas por diferentes conjunturas socioculturais e mutuamente se influenciando. Aliás, concordamos com Tzevetan Todorov quando afirma que “o texto escreve-se através do seu autor mais do que é escrito por ele(6). Só assim se compreende, cremos nós, o simplismo estéril e lacónico com que, por agora, ousamos definir a Literatura Colonial: obras de carácter literário e afins que se produziram no contexto colonial.

O que pretendemos é proceder a uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica, que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores. Em seguida procuraremos interrogar as razões porque a Literatura Colonial da Guiné teve um percurso e uma evolução algo diferente em relação às congéneres de Angola, Moçambique e mesmo de São Tomé e Príncipe. Outro objectivo deste estudo prende-se com a preocupação de tentar delimitar ou discernir, tanto quanto possível, as intersecções de ruptura e/ou continuidade entre a Literatura Colonial e a Nacional, no caso guineense. Porém, uma preocupação pedagógica nos move: a de lançar dados e elementos de reflexão sobre a nova Literatura, a nacional, na perspectiva de uma descolonização literária em curso – se assim se pode dizer –, que terá de deitar os olhos ao passado para melhor enquadrar o presente literário.

(Observação do Editor: Por ser muito extenso, este trabalho vai ser publicado em três partes, correspondentes a outros tantos postes)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5069: Historiografia da presença portuguesa (22): África, da Vida e do Amor na Selva, Edições Momentos, 1936 (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 9 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5084: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (17): João Augusto Silva é meu tio (Pepito)

Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5127: Historiografia da presença portuguesa (23): Aquela Guiné dos anos 50 (Beja Santos)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3718: A literatura colonial (3): A antologia do conto ultramarino, por Amândio César (Beja Santos)

Capa do 1º primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, antaologia organizada por Amândio César

Capa de um livro de João Augusto Silva, um dos escritores que figuram na antologia do conto português ultramarino, organizada por Amãndio César.


Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados


1. Mensagem de 8 de Dezembro, do nosso camarada Beja Santos:

Amândio César (1921-1987) foi, desde sempre, um escritor ideologicamente comprometido com o Estado Novo, tendo desenvolvido actividade como poeta, ficcionista e ensaísta literário (*).

Foi um dos elementos do grupo Poesia Nova, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, onde ganha realce a edição em dois volumes de Contos Portugueses do Ultramar. Deixou-nos uma poesia por vezes muito bela, por vezes caldeada num lirismo de pendor tradicionalista e os seus contos, associados carinhosamente ao Minho onde nasceu, têm um vigoroso recorte neo-realista.

Dedicou um livro de reportagens à Guiné, em 1965 (*), e entre as suas traduções mais importantes há a salientar Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura um dos mais importantes retratos sobre a guerra que alguma vez se escreveu.

No primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, a escolha de autores guineenses recaiu sobre Alexandre Barbosa, Álvaro Guerra, Armor Pires Mota, Artur Augusto Silva, Fausto Duarte, João Augusto Silva, Julião Quintinha, Manuel Barão da Cunha e Óscar Ruas.

Concorda-se com a análise que Leopoldo Amado fez no seu ensaio intitulado “A Literatura Colonial Guineense” e publicado na revista ICALP, vol. 20 e 21 (**) , a que já se fez referência: a emergência de um jornalismo na década de 20 do século passado, revelando uma Guiné exótica, uma natureza luxuriante, com dramas amorosos indígenas, tudo dentro de uma idiossincrasia de matriz colonial; a partir dos anos 30 e 40 também do século XX assistiu-se a um surto literário relacionado com o incipiente desenvolvimento económico, estamos na Guiné que tenta a cristianização e a valorização do indígena, isto a par de aspecto etnográficos que são mostrados já num estado de colonização efectiva e de uma colónia onde tudo parece correr bem; o movimento emancipador e a luta pela independência propriamente dita fizeram surgir uma literatura exaltando os feitos militares e o carácter ideológico da dessa mesma luta. A antologia de Amândio César reflecte essas sucessivas ondas.

Alexandre Barbosa, natural de Lisboa, fundou o jornal O Bolamense e colaborou no Boletim Cultural da Guiné, tendo sido nomeado membro residente do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A sua prosa está repassada de episódios da vida africana, é uma bonita prosa portuguesa onde acidentalmente há caçadas, nomes guineenses, detalhes da floresta.

Álvaro Guerra (1936-2002) (***), talvez o nome mais importante dos escritores compilados desta antologia, fez serviço militar entre 1961 e 1963, tendo sido ferido em combate. Os seus primeiros livros reflectem inequivocamente essa Guiné em luta e o seu conto “O tempo em Uane” é uma pequena obra-prima digna de um Salinger ou de Hemingway. Ora oiçam:

“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geografia infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes”.

Segue-se um conto de Armor Pires Mota, um escritor nacionalista que continua actuante nos dias de hoje. Dá-nos uma poderosa cena de combate entre os bons e os maus, entre os defensores da nossa pátria e aqueles cujos chefes tiveram a instrução em Praga e Moscovo.

Sucede Artur Augusto Silva (1912-1983), um poeta modernista e um estudioso da África ocidental. Voltamos às histórias indígenas, há fauna em desfile na floresta, tudo num português escorreito, é quase uma história de encantar para branco que nunca foi África (****).

Fausto Duarte (1903-1953) (*****) foi nome importante na literatura guineense e o seu romance Auá é seguramente o livro mais emblemático que se escreveu em toda a literatura colonial até aos anos 50. Fausto Duarte era um homem muito culto e dominava com absoluta segurança a técnica literária mas este seu conto “O mestiço” está muito bem escrito e pouco mais.

João Augusto Silva (1910-?) dedicou-se às artes plásticas, distinguiu-se nomeadamente como ilustrador de livros como comprova o livro “Grandes Chasses-Tourisme dans l’Afrique Portuguese”. As suas páginas revelam um gosto cosmopolita e um sentido requintado da descrição mas não se sente alma africana. O mesmo se dirá do contista seguinte, Julião Quintinha, intelectual muito viajado que escreveu sobre a Guiné cheio de curiosidade e para satisfazer a curiosidade alheia.

Manuel Barão da Cunha combateu na Guiné entre 1964 e 1965, está presentemente a refazer todos os seus trabalhos literários, em “O capelão” descreve a presença de um padre que acompanha as forças operacionais fazendo dele a irradiação da tranquilidade que animava todos aqueles que tinham deixado a sua terra natal para defender aquela terra.

Enfim, uma antologia ao sabor do seu tempo (Amândio César publicou em 1969, na Portucalense Editora), há lá páginas muito importantes, registam sentimentos, valores e atitudes que também conhecemos e com quem até convivemos.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. o poste de A. Marques Lopes, de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 – CLXXIII: Informação e Propaganda: os 'grandes repórteres' de guerra, disponível na I Série do blogue > http://www.blogueforanada.blogspot.com/2005_08_14_archive.html

(**) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

Vd. também:

5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)

6 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3275: Clarificar o conceito de novíssima literatura da Guerra Colonial (Beja Santos)


(***) Vd. poste de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)

(****) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor, pai do nosso amigo Pepito:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(*****) Vd. postes anteriores desta série:

5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Capa do livro de Fausto Duarte, Auá, novela negra, 2ª ed. Lisboa: Livraria Clássica (1ª edição, 1934, 223 pp.).

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem de Beja santos, com data de 8 de Outubro último:



Auá, de Fausto Duarte: A obra-prima da literatura colonial guineense

por Beja Santos


Coube a Leopoldo Amado (“A Literatura Colonial Guineense”, Revista ICALP, Julho – Outubro de 1990)(*) o mérito de destacar a importância do romance Auá, de Fausto Duarte, contextualizando-o ao sabor das transformações operadas na Guiné portuguesa a partir dos anos 20 do século passado.

Dera-se a “pacificação” ou estava em processo terminal; surgiam os primeiros jornais publicados na Guiné e com eles surgia a literatura jornalística; Maria Archer e Fernanda de Castro (**) escreviam sobre a Guiné em Portugal, e com relativo sucesso; uma elite cabo-verdiana (Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo) promovia os interesses africanos pugnando pelo alargamento do ensino aos guineenses.

Fausto Duarte [1903-1955] (***) apareceu como repórter, colunista e cronista desportivo numa Bissau que já é capital comercial da colónia; participou na primeira Exposição Colonial de Paris, dedicando um número especial ao evento no jornal O Comércio da Guiné onde destacou a etnografia guineense.

É um homem culto que capta as novas contradições da assimilação colonial e do gosto pelo exotismo. A Guiné que ele vai descrever em Auá é completamente diferente da retratada quer por Maria Archer e Fernanda de Castro e outros. Pela sua formação, revela atenção e um elevado espírito de observação pelas tensões de civilização: entre as etnias no mato remoto e em Bissau; entre o trabalho agrícola de sobrevivência e o trabalho ao serviço do colono em Bissau; mesmo ao de leve, refere estados de identidade de aproximação entre a realidade colonial e a adesão das populações guineenses. Tudo leva a supor que Fausto Duarte escreveu sinceramente e de acordo com o seu compromisso cultural de hibridação e de exaltação dos valores africanos.

Auá foi galardoada com o 1º prémio de Literatura Colonial em 1934, ano em que aparece editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa, e com prefácio de Aquilino Ribeiro (ele escreve: “O primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo foi o autor de Auá... Com simplicidade encantadora, vai nos pintando o que é a vida naquele trato de terra e humanidade... Fausto Duarte é pela civilização, mas a sua sensibilidade não cala a ternura que lhe merece o homem escravizado. Os que sonham com um Portugal de além-mar engrandecido hão-de de ficar gratos à pena colorida, equilibrada, emotiva sem excesso que escreveu Auá, estreia literária de maior realce e obra de elevação lusíada”).

Aquilino Ribeiro exaltou o romancista mas também foi excessivo. Fausto Duarte era tudo menos simples: cita Schiller em alemão, Paul Morand em francês, conhece profundamente a cultura europeia e tem uma riqueza vocabular espantosa. Não acredito que a sua Novela Negra, como lhe chamou, tenha sido popular quer na Guiné quer em Portugal. Basta ver como se inicia a sua obra:

“As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolo ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

De que versa Auá ? Malam é um fula que trabalha em Bissau, tinha trabalhado como criado de alemães. Frau Wrede não resiste à beleza de Malam e fazem amor. Depois pede a alguém para escrever uma carta ao administrador de Bissau a oferecer os seus préstimos, quando os alemães partiram. Foi admitido ao serviço e agora vai a caminho do Gabu, vai casar com Auá, a mais bonita bajuda do leste da Guiné. É uma viagem longa, atravessam o Impernal, seguem para Mansoa, depois Mansabá, depois Bafatá. Leva na mala muitas prendas para a sua noiva: lenços, panos, bandas, missangas, manilhas de prata, um fio de ouro. Fica a descansar em Bafatá em casa de um tenente de 2ª linha.

Perguntado sobre como está Bissau, responde: “Os brancos fizeram grandes coisas. Ruas largas por onde passam automóveis e grande caminhões; lojas enormes de panos de todas as qualidades que os brancos fabricam na sua terra; contas douradas, bicicletas e até máquinas de lavrar a terra. Há tempos, veio de Lisboa um aeroplano que parece um grande pássaro”.

O motorista da casa Gouveia leva-o para Contubo-El, daqui seguirá para Sare-Sincham onde vivem as suas famílias, a dele e a de Auá. É uma viagem onde Fausto Duarte aproveita para falar de usos e costumes, da religião e até das povoações. Por exemplo, Geba é descrita como uma vila tristonha, outrora berço do catolicismo heróico, tem o aspecto místico habitado por um povo indigente. De um modo geral, as povoações têm uma rua com casas e lojas comerciais, estão cercadas pelas moranças dos indígenas. Nisto, avista-se a tabanca de Sare-Sincham, onde ele vai ficar em casa dos pais, Braima e Tacô. Fausto Duarte polvilha a obra de frases em fula e até mandinga e crioulo. Mostra-nos Auá e o seu amor por Abdulai, os preparativos para o casamento, há grandes descrições das lutas dos fulas durante a festa, Abdulai desafia Malam para o combate, é derrotado.

A critica social também abundante: o colono que vive com indígena, a superstição e a feitiçaria, o peso da religião muçulmana entre os fulas, a profunda simpatia de Malam pela cultura dos brancos. Segue-se o casamento, a chegada de um feiticeiro, um hipócrita e arranjista que acabará por violar Auá. Malam e Auá irão viver em Bissau, cidade que é descrita por Fausto Duarte como um local de sensualidade, um permanente bordel. Em Sare-Sincham, virão os guardas-fiscais que levarão o curandeiro, Issilda, preso. Terminam entretanto as colheitas, Auá está grávida, dará à luz um filho de Issilda. Malam pratica justiça e mata o curandeiro. O conselho dos anciãos reúne-se para ouvir Malam e praticar justiça. Fausto Duarte é primoroso na descrição do choque de civilizações. Abdulai propõe comprar Auá, Malam aceita e deixa Sare-Sincham. As tradições sobrepunham-se a uma grande paixão. Malam vai trabalhar em Dakar e à noite tem saudades de Auá. A velha cultura conseguira vencer os sentimentos transbordantes de Malam, o criado dos brancos.

A despeito de uma escrita laboriosa e quase laboratorial, o escritor Fausto Duarte descreveu a Guiné com um olhar novo de grande desvelo pela paisagem, com rigor no registo das tradições, destacando os contrastes de uma Guiné onde a aculturação se transformou num problema maior da civilização. É uma pequena jóia literária e merecia ser reeditada tanto em Portugal como na Guiné-Bissau.

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Notas de L.G.:

(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões: Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

(**) 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(***) Vd. Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau, por Filomena Embaló (Novembro de 2004)

(...) "I. A fase anterior a 1945

"Autores marcados pelo cunho colonial

"Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da colónia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.

"Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente 'A literatura dos negros' e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada 'Contos, Canções e Parábolas'. "
(...)