1. Continuação da publicação do relatório da 2ª Rep/CTIG, sobre a situação político-militar em 1974, documento esse que foi generosa e gentilmente digitalizado e enviado pelo Luís Gonçalves Vaz [, foto à esquerda], a partir de um exemplar pertencente ao arquivo pessoal de seu pai, cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74), entretanto falecido em 2001.
A publicação na íntegra deste documento, embora seja uma tarefa pesada, é considerada de interesse para os leitores do nosso blogue, e foi de resto solicitada pelo nosso colaborador, camarada e amigo José Manuel Dinis. Cabe aos leitores fazer a sua análise detalhada e a sua apreciação crítica e, em última análise, ajuizar da sua importância e interesse. Para o nosso tabanqueiro Luís Gonçalves Vaz vai, mais uma vez, o nosso reconhecimento público por este serviço, que ele dedica não apenas à memória do seu pai, mas a todos os amigos e camaradas da Guiné que integram a nossa Tabanca Grande.
Nas páginas 10 a 21 do relatório (que tem um total de 74 páginas), continua a abordar-se a situação política à data do 25 de Abril de 1974, mas agora centrada na situação interna (ponto c, 1. Situação militar; 2. Situação político-administrativa) (As páginas 22 a 24 serão disponibilizadas em próximo poste; as páginas 1 a 9 constam do poste anterior) (*).
______________
Nota de CV:
(*) 31 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9424: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte IV): pp. 1/9
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 4 de fevereiro de 2012
Guiné 63/74 - P9442: In Memoriam (108): Fur Mil SAM Fernando Maria Teixeira Dias, da CART 1746, morto na emboscada de 14 de Novembro de 1968, perto da Ponta Coli, Xime (Manuel Moreira / Rui Dias Moreira)
Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1968 > CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) > O saudoso Fur Mil SAM é o militar de óculos escuros, na ponta esquerda.
Foto: © Manuel Moreira (2012). Todos os direitos reservados
1. Mensagem do nosso leitor Rui Moreira, empresário e gestor do Porto, enviada em 24 de Janeiro último:
Assunto: Pedido de informação
Luís Graça:
Ao visionar por mero acaso o seu blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné deparei-me com um gigantesco manancial de informação sobre a Guerra Colonial nomeadamente no teatro de operações da Guiné.
Luís Graça:
Ao visionar por mero acaso o seu blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné deparei-me com um gigantesco manancial de informação sobre a Guerra Colonial nomeadamente no teatro de operações da Guiné.
Chamo-me Rui Fernando Teixeira Dias Moreira, tenho 53 anos de idade, dois filhos já adultos (com 27 e 21 anos, respectivamente) e o meu tio Fernando Maria Teixeira Dias, irmão mais novo de minha mãe, furriel miliciano VM [ vagomestre, nº mecanográfico]03682465 pertenceu ao BCac 2852 /CArt 1746 e faleceu na Guiné em 14/11/1968, julgo que a pouco tempo de regressar.
Estas são as únicas informações que possuo e que consegui obter através da Net.
Sendo eu o primeiro de 4 irmãos, o meu tio Fernando foi o mais próximo de um irmão mais velho que alguma vez tive. Natural de Amarante veio, ainda adolescente, estudar para o Porto, passando a viver em casa dos meus pais, onde compartilhava um quarto comigo. A sua partida para a Guiné arquivou, nas minhas memórias de criança, um dos raros sentimentos de infelicidade e saudade que perduram até hoje.
Por um triste acaso fui eu que atendi a porta, a um estafeta que julgo era da companhia Marconi, portador de um telegrama e que me pediu para falar com o pai. Os acontecimentos que se seguiram gostaria de os manter apenas na minha memória.
O assunto da morte do tio Fernando, foi sempre uma espécie de tabu nomeadamente para as crianças da família, que era a minha condição na altura. Ouvimos alguns zum zuns como o de uma visita feita ao meu avô, homem rijo, temperado por uma guerra e uma vida não isenta de dificuldades, por um antigo companheiro de armas de meu tio, que o teria deixado bastante combalido.
O assunto da morte do tio Fernando, foi sempre uma espécie de tabu nomeadamente para as crianças da família, que era a minha condição na altura. Ouvimos alguns zum zuns como o de uma visita feita ao meu avô, homem rijo, temperado por uma guerra e uma vida não isenta de dificuldades, por um antigo companheiro de armas de meu tio, que o teria deixado bastante combalido.
Depois nunca mais se falou no assunto e o meu tio Fernando passou a ser uma memória visual na sala de estar da casa dos meus avós.
Por entender que os Portugueses, independentemente de quaisquer considerações filosóficas ou políticas, mereciam ter tido um outro tratamento por parte da Nação que defenderam com armas na mão, com todo o tipo de custos que esse facto lhes terá acarretado, bem como a sua história estar ainda por escrever, vi-a respeitada, no sentido estrito e lato da palavra, no seu blogue.
Por entender que os Portugueses, independentemente de quaisquer considerações filosóficas ou políticas, mereciam ter tido um outro tratamento por parte da Nação que defenderam com armas na mão, com todo o tipo de custos que esse facto lhes terá acarretado, bem como a sua história estar ainda por escrever, vi-a respeitada, no sentido estrito e lato da palavra, no seu blogue.
Também porque ainda hoje, enquanto lhe escrevo, tenho sentimentos que pensava o tempo tinha já apagado para sempre, atrevo-me a pedir-lhe o favor de, se lhe for possível, guiar-me ou ajudar-me no sentido de saber como o meu tio deixou a sua ainda curta vida na Guiné.
Com um pedido de desculpas por o importunar, não o conhecendo e agradecendo desde já o seu tempo.
Com um pedido de desculpas por o importunar, não o conhecendo e agradecendo desde já o seu tempo.
Com os melhores cumprimentos,
Rui Fernando Teixeira Dias Moreira.
2. Informação, com data de 31 de janeiro, que nos foi dada pelo nosso camarada Manuel Moreira, a nosso pedido, sobre a emboscada de 14/11/1968 que vitimou o
2. Informação, com data de 31 de janeiro, que nos foi dada pelo nosso camarada Manuel Moreira, a nosso pedido, sobre a emboscada de 14/11/1968 que vitimou o
Assunto: A Emboscada de 14 de Novembro de 1968
Amigo e Camarada Luís:
Amigo e Camarada Luís:
O dia 14 de Novembro de 1968 está na memória de toda a CART 1746 .
Eu tinha chegado no dia 13 à tarde da talvez mais dura Coluna em que a CART 1746 participou e que durou três dias mas fica para contar a qualquer momento.
No dia 14, a coluna prepara-se para sair [do Xime] e o 1º Cabo Mec Pinheiro que foi nela, e que também é de Águeda, pediu-me para ser eu a ir no lugar dele porque temia algum perigo nesse dia. Como eu tinha acabado de chegar de uma outra coluna muito dura e complicada, estaria preparado para outra, ao que eu recusei. Também ia o Furriel Mecânico.
A coluna sai, vou ao "Abrigo dos Mecânicos " fazer a minha cama e, qual o meu espanto, encontro um papel escrito pelo Pinheiro debaixo da minha almofada que dizia: "Moreira, hoje vou morrer na emboscada. Peço-te que, quando fores embora, contes à minha Mãe como aconteceu".
Claro que abanei todo de cima a baixo e disse: "Este gajo é doido !"... Tinha acabado de ler esta mensagem quando rebenta o fogo na mata a seguir à bolanha da saída do Xime entre Taliuara e Ponta Coli.
Um Grupo de Combate acorreu imediatamente do Xime para socorrer e apoiar a coluna e eu segui sozinho num Unimog à procura de feridos. Encontro o Pinheiro com um joelho ferido e carreguei-o para o Xime .
O fogo durou cerca de 15 minutos e, quando acabou, regressaram ao Xime todas as viaturas com todo o pessoal e os feridos, que foram muitos, atingidos nas costas, já no chão, por estilhaços quando uma granada de RPG bateu no taipal de uma viatura e fez ricochete.
Numa das viaturas vinha o Fur Dias , já sem vida. O Fernando Maria Teixeira Dias era o nosso Vaguemestre.
Como faz parte do meu "Diário de Guerra" em verso, junto as quadras alusivas à emboscada e que são:
285
O Novembro de 68
Foi o mês de pior sorte,
A Companhia sofreu,
Em Combate, a única morte
291
Mas 14 de Novembro
É a data mais lembrada,
Morreu-nos o Vaguemestre
Em terrível emboscada.
292
Ia em muitas colunas,
Comprar gado era a missão,
Pois ele era o responsável
Pela nossa alimentação.
293
Fernando Dias, de seu nomem,
Furriel era o seu Posto,
Era muito popular,
Sentimos grande desgosto.
E para que fique registado, envio uma foto tirada em Bissorã num desfile pela Vila onde o Fur Dias, de óculos, eu e o Fur Polho fazemos a linha da frente. Curiosamente o Fur Polho faleceu em Janeiro de 2011.
Envio um Abraço de Solidariedade ao sobrinho Rui Fernando .
Um Abraço, Luis.
Manuel Moreira
3. Resposta ao Rui F. T. Dias Moreira:
Meu caro Rui:
Li com mágoa, compaixão mas também com algum conforto a sua mensagem. Ficamos sempre sem jeito quando um familiar de um camarada nosso nos pergunta: "Diga-me como morreu o meu tio, o meu irmão, o marido, o meu namorado, ou até o meu pai"...
Temos portugueses, 40 anos depois, que não sabem como morreram os seus entes queridos na guerra colonial... O exército limitava-se a mandar um seco telegrama com a triste ocorrência... Isso acontecia com toda a gente, incluindo os oficiais do quadro... Ora o silêncio sobre a morte de alguém (e as suas circunstâncias, ainda para mais na guerra) é sempre opressivo e não nos ajuda a fazer o luto... Por isso, dou-lhe os parabéns também pela sua iniciativa, reveladora de uma grande nobreza de caráter e de uma grande humanidade... O Rui é um exemplo e um conforto para todos nós que, tendo vivido o fantasma da morte e do abandono, tivemos apesar de tudo a sorte de regressar...
Interessei-me naturalmente pelo seu caso e pedi ao meu camarada Manuel Moreira, que é de Águeda e foi da mesma companhia do seu tio, para me dar informação adicional sobre essa terrível emboscada do dia 14 de novembro de 1968... O Manuel Moreira é dos bravos do Xime que faz parte desta comunidade virtual que é o nosso blogue.
Eu ainda não estava na Guiné, só lá cheguei no início de Junho de 1969 mas ainda conheci (de vista) alguns camaradas da CART 1746: foram eles que montaram segurança à estrada Xime-Bambadinca, quando viémos de Bissau, em Lancha de Desembarque Grande (LDG), e abicámos ao Xime, a caminho do leste... O inferno do Xime, como eu próprio viria mais tarde a conhecer (A minha companhia africana, CCAÇ 12, fez lá muitas operações e inclusive fez segurança à nossa estrada, alcatroada, que entretanto foi feita)...
Essa emboscada ficou na memória dos nossos camaradas... Muitos meses depois, em meados de 1969, eu ouvi contar a história e soube da morte do nosso camarada, o furriel vagomestre Fernando Maria Teixeira Dias... Sempre que passávamos à na zona de Taliuará / Ponta Coli, a seguir ao Xime (ou antes do Xime, para quem vem de Bambadinca) (vd. aqui o mapa do Xime), lembrávamo-nos respeitosamente dos camaradas que tinham sido vítimas dessa emboscada...
Melhor do que ninguém, o Manuel Moreira explica-lhe o que se passou, nessa manhã. Ele é o único representante, no nosso blogue, da CART 1746, juntamente com um outro camarada que está nos EUA há 40 anos, o J. Ferraz, mas que chegou ao Xime já depois da morte do seu tio... Também já aqui apareceu o capitão da companhia, cap António Manuel Rodrigues Vaz, como simples leitor, não tenho a certeza de ele nos ter deixado o seu endereço de email... Vou ver melhor com tempo e vagar... (O Gilberto Madail também era desta companhia, mas nunca entrou em contacto connosco: temos no blogue uma ou outra história ou foto com ele).
O Manuel Moreira teve, além disso, a gentileza de nos mandar uma foto com o seu tio.. E mais: alguns versos do seu cancioneiro do Xime...em que ele presta homenagem ao único morto em combate da companhia... Tomo a liberdade de partilhar, com ele, esta mensagem que lhe mando a si, em privado. Gostaria no entanto de pedir ao Rui autorização para publicar no blogue esta nossa troca de mensagens, no caso de não achar inconveniente. O seu exemplo merece ser conhecido da nossa geração e da geração dos nossos filhos, bem como dos portugueses, em geral, que são um povo amnésico.... E queremos também fazer um poste, para a série In Memoriam, de homenagem ao furriel Dias. Podemos, no entanto, omitir a identidade do Rui, por razões éticas, sociais, profissionais ou outras.
Peço-lhe desculpa pela demora na resposta. Hoje tentei telefonar-lhe para a empresa. Disponha sempre. E, inclusive, fica convidado para integrar este espaço de partilha de memórias e de afetos que é o nosso blogue, e a nossa Tabanca Grande (reunimo-nos pelo menos 1 vez por ano, em Monte Real,e já somos mais de meio milhar). Um Alfa Bravo (ABraço).
Luís Graça
4. Resposta, de 1 de fevereiro, do Rui Dias Moreira:
Caro Luis Graça: Começo por lhe agradecer, respeitosamente, o tempo e o esforço que despendeu para satisfazer o meu pedido, agradecimentos que estendo ao seu camarada Manuel Moreira.
Não respondo hoje ao telefonema que teve a amabilidade de me fazer(não estava no escritório, por mera coincidência tinha ido a Amarante por questões profissionais), porque fiquei com os sentimentos ou pouco baralhados e tenho receio de não conseguir articular a conversa que gostaria de ter consigo… escrevendo é mais fácil.
Mas se me autorizar devolvo-lhe posteriormente o telefonema, para um dos números que menciona no seu mail.Quanto á utilização da nossa troca de palavras, fará o Luis aquilo que entender, não tenho qualquer problema seja de que natureza for a que ela se torne pública , antes pelo contrário!
Vou pedir autorização à minha mãe, minhas tias e ao meu tio, para digitalizar algumas fotos do tio Fernando que lhe enviarei. Porque da memória dos vivos, tem também que fazer parte a saudade dos mortos. Com um muito obrigado mais uma vez. Abraço, Rui Dias Moreira
_____________Eu tinha chegado no dia 13 à tarde da talvez mais dura Coluna em que a CART 1746 participou e que durou três dias mas fica para contar a qualquer momento.
No dia 14, a coluna prepara-se para sair [do Xime] e o 1º Cabo Mec Pinheiro que foi nela, e que também é de Águeda, pediu-me para ser eu a ir no lugar dele porque temia algum perigo nesse dia. Como eu tinha acabado de chegar de uma outra coluna muito dura e complicada, estaria preparado para outra, ao que eu recusei. Também ia o Furriel Mecânico.
A coluna sai, vou ao "Abrigo dos Mecânicos " fazer a minha cama e, qual o meu espanto, encontro um papel escrito pelo Pinheiro debaixo da minha almofada que dizia: "Moreira, hoje vou morrer na emboscada. Peço-te que, quando fores embora, contes à minha Mãe como aconteceu".
Claro que abanei todo de cima a baixo e disse: "Este gajo é doido !"... Tinha acabado de ler esta mensagem quando rebenta o fogo na mata a seguir à bolanha da saída do Xime entre Taliuara e Ponta Coli.
Um Grupo de Combate acorreu imediatamente do Xime para socorrer e apoiar a coluna e eu segui sozinho num Unimog à procura de feridos. Encontro o Pinheiro com um joelho ferido e carreguei-o para o Xime .
O fogo durou cerca de 15 minutos e, quando acabou, regressaram ao Xime todas as viaturas com todo o pessoal e os feridos, que foram muitos, atingidos nas costas, já no chão, por estilhaços quando uma granada de RPG bateu no taipal de uma viatura e fez ricochete.
Numa das viaturas vinha o Fur Dias , já sem vida. O Fernando Maria Teixeira Dias era o nosso Vaguemestre.
Como faz parte do meu "Diário de Guerra" em verso, junto as quadras alusivas à emboscada e que são:
285
O Novembro de 68
Foi o mês de pior sorte,
A Companhia sofreu,
Em Combate, a única morte
291
Mas 14 de Novembro
É a data mais lembrada,
Morreu-nos o Vaguemestre
Em terrível emboscada.
292
Ia em muitas colunas,
Comprar gado era a missão,
Pois ele era o responsável
Pela nossa alimentação.
293
Fernando Dias, de seu nomem,
Furriel era o seu Posto,
Era muito popular,
Sentimos grande desgosto.
E para que fique registado, envio uma foto tirada em Bissorã num desfile pela Vila onde o Fur Dias, de óculos, eu e o Fur Polho fazemos a linha da frente. Curiosamente o Fur Polho faleceu em Janeiro de 2011.
Envio um Abraço de Solidariedade ao sobrinho Rui Fernando .
Um Abraço, Luis.
Manuel Moreira
3. Resposta ao Rui F. T. Dias Moreira:
Meu caro Rui:
Li com mágoa, compaixão mas também com algum conforto a sua mensagem. Ficamos sempre sem jeito quando um familiar de um camarada nosso nos pergunta: "Diga-me como morreu o meu tio, o meu irmão, o marido, o meu namorado, ou até o meu pai"...
Temos portugueses, 40 anos depois, que não sabem como morreram os seus entes queridos na guerra colonial... O exército limitava-se a mandar um seco telegrama com a triste ocorrência... Isso acontecia com toda a gente, incluindo os oficiais do quadro... Ora o silêncio sobre a morte de alguém (e as suas circunstâncias, ainda para mais na guerra) é sempre opressivo e não nos ajuda a fazer o luto... Por isso, dou-lhe os parabéns também pela sua iniciativa, reveladora de uma grande nobreza de caráter e de uma grande humanidade... O Rui é um exemplo e um conforto para todos nós que, tendo vivido o fantasma da morte e do abandono, tivemos apesar de tudo a sorte de regressar...
Interessei-me naturalmente pelo seu caso e pedi ao meu camarada Manuel Moreira, que é de Águeda e foi da mesma companhia do seu tio, para me dar informação adicional sobre essa terrível emboscada do dia 14 de novembro de 1968... O Manuel Moreira é dos bravos do Xime que faz parte desta comunidade virtual que é o nosso blogue.
Eu ainda não estava na Guiné, só lá cheguei no início de Junho de 1969 mas ainda conheci (de vista) alguns camaradas da CART 1746: foram eles que montaram segurança à estrada Xime-Bambadinca, quando viémos de Bissau, em Lancha de Desembarque Grande (LDG), e abicámos ao Xime, a caminho do leste... O inferno do Xime, como eu próprio viria mais tarde a conhecer (A minha companhia africana, CCAÇ 12, fez lá muitas operações e inclusive fez segurança à nossa estrada, alcatroada, que entretanto foi feita)...
Essa emboscada ficou na memória dos nossos camaradas... Muitos meses depois, em meados de 1969, eu ouvi contar a história e soube da morte do nosso camarada, o furriel vagomestre Fernando Maria Teixeira Dias... Sempre que passávamos à na zona de Taliuará / Ponta Coli, a seguir ao Xime (ou antes do Xime, para quem vem de Bambadinca) (vd. aqui o mapa do Xime), lembrávamo-nos respeitosamente dos camaradas que tinham sido vítimas dessa emboscada...
Melhor do que ninguém, o Manuel Moreira explica-lhe o que se passou, nessa manhã. Ele é o único representante, no nosso blogue, da CART 1746, juntamente com um outro camarada que está nos EUA há 40 anos, o J. Ferraz, mas que chegou ao Xime já depois da morte do seu tio... Também já aqui apareceu o capitão da companhia, cap António Manuel Rodrigues Vaz, como simples leitor, não tenho a certeza de ele nos ter deixado o seu endereço de email... Vou ver melhor com tempo e vagar... (O Gilberto Madail também era desta companhia, mas nunca entrou em contacto connosco: temos no blogue uma ou outra história ou foto com ele).
O Manuel Moreira teve, além disso, a gentileza de nos mandar uma foto com o seu tio.. E mais: alguns versos do seu cancioneiro do Xime...em que ele presta homenagem ao único morto em combate da companhia... Tomo a liberdade de partilhar, com ele, esta mensagem que lhe mando a si, em privado. Gostaria no entanto de pedir ao Rui autorização para publicar no blogue esta nossa troca de mensagens, no caso de não achar inconveniente. O seu exemplo merece ser conhecido da nossa geração e da geração dos nossos filhos, bem como dos portugueses, em geral, que são um povo amnésico.... E queremos também fazer um poste, para a série In Memoriam, de homenagem ao furriel Dias. Podemos, no entanto, omitir a identidade do Rui, por razões éticas, sociais, profissionais ou outras.
Peço-lhe desculpa pela demora na resposta. Hoje tentei telefonar-lhe para a empresa. Disponha sempre. E, inclusive, fica convidado para integrar este espaço de partilha de memórias e de afetos que é o nosso blogue, e a nossa Tabanca Grande (reunimo-nos pelo menos 1 vez por ano, em Monte Real,e já somos mais de meio milhar). Um Alfa Bravo (ABraço).
Luís Graça
4. Resposta, de 1 de fevereiro, do Rui Dias Moreira:
Caro Luis Graça: Começo por lhe agradecer, respeitosamente, o tempo e o esforço que despendeu para satisfazer o meu pedido, agradecimentos que estendo ao seu camarada Manuel Moreira.
Não respondo hoje ao telefonema que teve a amabilidade de me fazer(não estava no escritório, por mera coincidência tinha ido a Amarante por questões profissionais), porque fiquei com os sentimentos ou pouco baralhados e tenho receio de não conseguir articular a conversa que gostaria de ter consigo… escrevendo é mais fácil.
Mas se me autorizar devolvo-lhe posteriormente o telefonema, para um dos números que menciona no seu mail.Quanto á utilização da nossa troca de palavras, fará o Luis aquilo que entender, não tenho qualquer problema seja de que natureza for a que ela se torne pública , antes pelo contrário!
Vou pedir autorização à minha mãe, minhas tias e ao meu tio, para digitalizar algumas fotos do tio Fernando que lhe enviarei. Porque da memória dos vivos, tem também que fazer parte a saudade dos mortos. Com um muito obrigado mais uma vez. Abraço, Rui Dias Moreira
Nota do editor:
Último poste da série > 29 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 – P9416: In Memoriam (107): Está de luto a CCAV 488 do BCAV 490, pelo falecimento de Augusto Pimenta Henriques Simões (Fur Mil)
Guiné 63/74 - P9441: Parabéns a você (376): José Belo, ex-Alf Mil da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70) e Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Guiné, 1971/72)
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9430: Parabéns a você (375): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73)
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9430: Parabéns a você (375): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73)
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Guiné 63/74 - P9440: Nós da memória (Torcato Mendonça) (8): Segundo dia em Bissau - Fotos falantes IV
Porto de Bissau - Local de protesto
1. Texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.
NÓS DA MEMÓRIA - 8
(…desatemos, aos poucos, alguns…)
4 – BISSAU
O segundo dia de Guiné chegou. Estivera de serviço no primeiro. Agora procurava alojamento em Santa Luzia.
Sentia fortemente o apelo, o chamamento da cidade que no dia anterior atravessara. Mal a vira quando pelas ruas passei. Eram imagens demais, novidades pela diferença, para tanto ter fixado. Sentia o forte desejo de lá voltar e ver como era.
Bissau era de facto logo ali e, pouco depois estava a descer perto do antigo Forte da Amura. Recordo, não sei se mal, que logo em loja ali perto comprei uma máquina fotográfica.
Vícios velhos e, como esquecera a minha em Portugal, escolhi esta nova e boa companheira para muito tempo. Muitas e boas recordações me propiciaram.
Depois corri para o porto. Queria ver aquelas águas, o Pidjiguiti - sabia o que lá se passara anos atrás -, os barcos e aquela paisagem apressada da véspera e, se possível, fixá-la. Para isso tive que atravessar a baixa e demorei-me a ver a arquitectura dos edifícios, as gentes em passagem alegre com os seus vestidos multicolores. As vozes, as conversa ininteligíveis para mim e pensava: eles estão certos e nós, em quinhentos anos, nem a língua cá deixamos. Depois pensava ser erro meu. Era um excesso de facto.
Continuava deambulando ao acaso e surpreendia-me, como na véspera dera para ver, pela grande quantidade de militares… safa parece uma parada de quartel.
O porto visto, e fixado pela máquina, lá segui, calma e gostosamente, avenida acima até ao Palácio do Governador. Sentia os novos cheiros, o calor, as gentes e tudo era novo e diferente. Sentia-me bem. Claro que se devia a ser, por temperamento, eterno curioso pela novidade. Hoje menos e só neste momento reparo em tal.
O tempo passou célere e passado o dia seguinte, também gasto em visitas, veio o quarto e último desta primeira estadia em Bissau. Nesse quarto dia veio a preparação para a partida para o Leste.
Voltamos ao porto, ao rio e a uma enorme LDG onde embarcamos. Engoliu-nos como se nada fosse com ela.
LDG - Transporte de carga diversa até ao Xime
O Geba era um Tejo sem Tágides e larguíssimo. A LDG subia rio acima e as margens iam-se apertando naquela viagem de algumas horas. Os velhos, os que muitas viagens tinham feito, iam dando explicações: passamos o Porto Gole e o Corubal não tarda.
De facto, pouco depois aí estava o Corubal a entrar Geba adentro e a mata densa a estar bem perto.
Não sabia que, tempos depois por ali andaria. Fora uma zona muito visitada por nós e muitas operações ali fizemos.
Pouco depois aí estava o Xime o porto do Leste. Por ali passava a quase totalidade de homens, abastecimentos e armamento.
Porto do Xime e manobra de barcos de calados diferentes
Abicamos num porto rudimentar e estávamos em terra.
O trabalho, o nosso trabalho, ia começar.
Estaríamos preparados? Claro que não e seria impensável estar.
Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9429: Nós da memória (Torcato Mendonça) (7): Finalmente Bissau - Fotos falantes IV
Guiné 63/74 - P9439: Notas de leitura (329): Francisco Caboz, A Construção e a desconstrução de um Padre, por Horácio Neto Fernandes (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):
Queridos amigos,
O livro de Horácio Neto Fernandes é de um sofrimento pungente, uma longa viagem de construção e desconstrução de um sacerdote católico. Os primores literários, diga-se sem qualquer hesitação, situam-se fundamentalmente nas memórias registadas a fogo no menino de 11 anos que, muito mais tarde, cursará Filosofia e Teologia, e que depois rezará missas por casas senhoriais.
O narrador insiste que a desconstrução desse padre está diretamente associada aos seus tempos de capelão militar, esteve no BART 1913, na região Sul e depois em Bambadinca. A prosa aqui afrouxa, o que temos que lamentar, não possuímos de forma integral nenhum relato do género, há um desequilibro na desconstrução do padre. Mas é um documento que tem parágrafos arrepiantes, pode imaginar-se o tormento que foi passar a escrito tais memórias.
Um abraço do
Mário
Do Colégio Seráfico a Capelão Militar do BART 1913
Beja Santos
“Francisco Caboz, A construção e a desconstrução de um Padre”, por Horácio Neto Fernandes (Papiro Editora, 2009), é um relato ímpar pela simplicidade do que documenta, pela coragem em pôr por escrito recordações por vezes pungentes da criança sofrida que o adulto guardou em bom recato. Algures, na Lourinhã [, Ribamar,] num ambiente de pobreza austera, um menino solícito e participativo nas fainas duras do campo e das pescarias do pai, guardou esculpido a cinzel as memórias de um meio rústico, das brincadeiras das crianças e da religiosidade dos actos litúrgicos, dos bodos e da catequese. Terá sido na escola primária, no princípio dos anos 40, que se sentiu impelido a ser padre. Com 11 anos partiu para o Colégio Seráfico, em Braga, partiu com o enxoval mínimo, como ele descreve: “As botas que deviam ser dois pares: umas pretas, para usar com o uniforme da mesma cor e outras para trazer no dia-a-dia ficaram reduzidas a um só par, dado pelo padrinho, sapateiro, que também era pobre. O sobretudo preto para completar o uniforme e fazer face ao rigoroso Inverno minhoto, também foi riscado da extensa lista enviada pelo seminário, por falta de dinheiro". Mais tarde, vai ser fortemente penalizado por estas carências. Não teve outro remédio senão pintar as botas de tinta preta, quando havia saídas em que se usasse o uniforme. A princípio, ainda resultou, mas depois este artifício foi descoberto pelo Perfeito que passava revista aos uniformes, antes da saída do Colégio Seráfico para o passeio semanal, às quintas-feiras. A sentença foi varrer os recreios e o salão.
O padre construiu-se a partir deste colégio que era um pesado e frio edifício de quatro pisos, circundado por densa e verdejante mata. Outra nota: “O portão sul, apenas utilizado pela comunidade para sair para a cidade, dava para um bairro chamado Areal, de gente pobre, vivendo em condições higiénicas miseráveis e que eram os principais clientes da igreja do Colégio. Quando avistavam os frades, as criancinhas descalças e de grandes barrigas ao léu, aproximavam-se para pedir um santinho, pequenas pagelas com imagens de santos”. Tudo compartimentado na organização deste Colégio, e bem hierarquizado. O regulamento era muito severo, cheio de proibições, à menor desobediência o Perfeito disparava duas ou mais bofetadas.
Francisco não esqueceu a composição do pequeno-almoço, do almoço e do jantar, as diversões, os passeios, as orações e a composição dos estudos. É uma descrição por vezes arrepiante, o leitor segue-o pelos lugares, envolve-se nos sacrifícios e nas medidas disciplinares, Francisco é tão evidente que aceitamos que se tenha habituado a cumprir sem pestanejar, sentindo-se sempre devedor dos padres. Cresce e habitua-se a afastar as tentações da carne. Aliás, segundo o director espiritual, as mulheres catalogavam-se da seguinte maneira: as freiras que se tinham consagrado a Deus; as mulheres casadas, sobretudo as mães dos padres, porque tinham dado um filho a Deus; depois as outras mulheres que procriavam; e as solteiras eram sempre um perigo porque causavam maus pensamentos aos homens. No final do 5º ano partiu para o Convento do Varatojo, agora era um rapaz de fato preto e chapéu na cabeça, é aqui que ele vai fazer um ano de noviciado, aqui também há castigos e penitências para as faltas. A nova etapa serão três anos de curso filosófico e depois quatro anos de curso teológico, no Seminário da Luz, em Carnide. De vez em quando, Francisco corre o risco de ser expulso, uma vez enviam uma carta anónima denunciando um tio que vivia amancebado, era o suficiente para a sua expulsão, felizmente que tudo se esclareceu. Temo-lo agora padre, em Agosto de1959, começa a sua missão, reza missas em casas senhoriais, presta serviço religioso nas igrejas, é professor.
A desconstrução de um padre começa nas suas hesitações ou vacilações: está apto a exercer a sua missão de sacerdote? Se o autor carpinteirou admiravelmente o contexto onde nasceu um padre e o modo como ele foi construído, há que confessar que esta desconstrução é descosida, frouxa, perdeu o nervo, é uma narrativa arrancada à força, um testemunho que não agarra o leitor pela gola.
Imprevistamente, é indigitado para capelão militar, frequenta a Academia Militar, aprende a manejar a G3 e ouve o bispo de Madarsuma a explicar a razão do compromisso com a pátria e a razoabilidade da guerra aos terroristas, Portugal estava a defender a civilização cristã contra as agressões externas. É nomeado capelão militar no BART 1913, segue para Catió num DO pilotado pelo lendário sargento Honório. É logo praxado na sala de oficiais, à mesa, no almoço, o major passa-lhe fotografia com mulheres nuas e Francisco pergunta-lhe se eram fotos da mulher dele, valeu o médico do batalhão que conseguiu que o caso ficasse abafado. Temos uma descrição de Catió como uma vila isolada e cercada de florestas e rios com um administrador cabo-verdiano, um administrador adjunto alentejano e uma dúzia de cipaios; havia duas casas comerciais e um comerciante conservava o seu estabelecimento na outra margem do rio, num local chamado Ganjola, onde esteve um destacamento que depois veio a ser abandonado com consequências sérias para Catió. É uma descrição cuidada mas pouco vibrante, sabemos que houve ataques à sede do batalhão mas ele é praticamente omisso quanto ao seu relacionamento com os militares. Há igualmente uma descrição de Cabedu, um aquartelamento mais a sul onde Francisco apanhou um susto quando os guerrilheiros invadiram a pista e entraram na povoação. Pouco também ficamos a saber do seu múnus apostólico fora do quartel, ele é lacónico: “Francisco nunca foi visita assídua nem das populações nem dos comerciantes brancos. Naturalmente reservado, nunca actuou como se fosse o pastor do rebanho com as obrigações inerentes. Tinha o papel de capelão, procurava desempenhá-lo, mas pouco mais do que isso”. As suas homilias eram obrigatoriamente para falar do heroísmo dos nossos soldados e da vida difícil da Guiné. O BART 1913 foi rendido, Francisco foi colocado em Bambadinca, numa zona que ele classifica como a mais cobiçada pelo inimigo. Adoece e entretanto a sua comissão chegou ao fim, regressa em Dezembro de 1969. Com o dinheiro que juntou, vai estudar e ajuda a irmã, que está a tirar o curso de contabilidade.
Já muito hesitante sobre a sua missão sacerdotal, alistou-se no clube Stella Maris, uma organização religiosa que cedia capelões para as companhias marítimas. Descreve o seu trabalho com um pouco mais de vivacidade, é neste tempo que toma a decisão de não voltar ao convento: “Era levado por uma explosão de vida, nunca antes sentida”. E fica-se por aqui, diz ao leitor de uma forma sacudida que havia experimentar uma nova vida: “Sentia dentro de si a primavera da vida a borbotar de uma forma quase imparável”. Escandalizando a família e as senhoras mais devotas da terra, passou a usar o traje civil, depois escreveu ao provincial a comunicar-lhe que ia abandonar o sacerdócio. Concluiu os seus estudos universitários e dedicou-se a muitas actividades no Ministério da Educação. Não sente nostalgia do que deixou para trás.
Há momentos de grande elevação em toda esta carpintaria narrativa. Temos aqui rememorações que mereciam ser revistas, acompanhamos uma formação mediante um esforço quase pungente de tudo dizer, sem azedumes nem ressaibos. Mas há um desequilíbrio na desconstrução do padre que merecia mais afeiçoamento à escrita, ganhava o depoimento e teríamos aqui um relato suficientemente vigoroso para poder constar no que há de melhor no memorialismo e nas confissões de um capelão militar.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9418: Notas de leitura (328): La Pointe du Couteau, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
O livro de Horácio Neto Fernandes é de um sofrimento pungente, uma longa viagem de construção e desconstrução de um sacerdote católico. Os primores literários, diga-se sem qualquer hesitação, situam-se fundamentalmente nas memórias registadas a fogo no menino de 11 anos que, muito mais tarde, cursará Filosofia e Teologia, e que depois rezará missas por casas senhoriais.
O narrador insiste que a desconstrução desse padre está diretamente associada aos seus tempos de capelão militar, esteve no BART 1913, na região Sul e depois em Bambadinca. A prosa aqui afrouxa, o que temos que lamentar, não possuímos de forma integral nenhum relato do género, há um desequilibro na desconstrução do padre. Mas é um documento que tem parágrafos arrepiantes, pode imaginar-se o tormento que foi passar a escrito tais memórias.
Um abraço do
Mário
Do Colégio Seráfico a Capelão Militar do BART 1913
Beja Santos
“Francisco Caboz, A construção e a desconstrução de um Padre”, por Horácio Neto Fernandes (Papiro Editora, 2009), é um relato ímpar pela simplicidade do que documenta, pela coragem em pôr por escrito recordações por vezes pungentes da criança sofrida que o adulto guardou em bom recato. Algures, na Lourinhã [, Ribamar,] num ambiente de pobreza austera, um menino solícito e participativo nas fainas duras do campo e das pescarias do pai, guardou esculpido a cinzel as memórias de um meio rústico, das brincadeiras das crianças e da religiosidade dos actos litúrgicos, dos bodos e da catequese. Terá sido na escola primária, no princípio dos anos 40, que se sentiu impelido a ser padre. Com 11 anos partiu para o Colégio Seráfico, em Braga, partiu com o enxoval mínimo, como ele descreve: “As botas que deviam ser dois pares: umas pretas, para usar com o uniforme da mesma cor e outras para trazer no dia-a-dia ficaram reduzidas a um só par, dado pelo padrinho, sapateiro, que também era pobre. O sobretudo preto para completar o uniforme e fazer face ao rigoroso Inverno minhoto, também foi riscado da extensa lista enviada pelo seminário, por falta de dinheiro". Mais tarde, vai ser fortemente penalizado por estas carências. Não teve outro remédio senão pintar as botas de tinta preta, quando havia saídas em que se usasse o uniforme. A princípio, ainda resultou, mas depois este artifício foi descoberto pelo Perfeito que passava revista aos uniformes, antes da saída do Colégio Seráfico para o passeio semanal, às quintas-feiras. A sentença foi varrer os recreios e o salão.
Francisco não esqueceu a composição do pequeno-almoço, do almoço e do jantar, as diversões, os passeios, as orações e a composição dos estudos. É uma descrição por vezes arrepiante, o leitor segue-o pelos lugares, envolve-se nos sacrifícios e nas medidas disciplinares, Francisco é tão evidente que aceitamos que se tenha habituado a cumprir sem pestanejar, sentindo-se sempre devedor dos padres. Cresce e habitua-se a afastar as tentações da carne. Aliás, segundo o director espiritual, as mulheres catalogavam-se da seguinte maneira: as freiras que se tinham consagrado a Deus; as mulheres casadas, sobretudo as mães dos padres, porque tinham dado um filho a Deus; depois as outras mulheres que procriavam; e as solteiras eram sempre um perigo porque causavam maus pensamentos aos homens. No final do 5º ano partiu para o Convento do Varatojo, agora era um rapaz de fato preto e chapéu na cabeça, é aqui que ele vai fazer um ano de noviciado, aqui também há castigos e penitências para as faltas. A nova etapa serão três anos de curso filosófico e depois quatro anos de curso teológico, no Seminário da Luz, em Carnide. De vez em quando, Francisco corre o risco de ser expulso, uma vez enviam uma carta anónima denunciando um tio que vivia amancebado, era o suficiente para a sua expulsão, felizmente que tudo se esclareceu. Temo-lo agora padre, em Agosto de1959, começa a sua missão, reza missas em casas senhoriais, presta serviço religioso nas igrejas, é professor.
A desconstrução de um padre começa nas suas hesitações ou vacilações: está apto a exercer a sua missão de sacerdote? Se o autor carpinteirou admiravelmente o contexto onde nasceu um padre e o modo como ele foi construído, há que confessar que esta desconstrução é descosida, frouxa, perdeu o nervo, é uma narrativa arrancada à força, um testemunho que não agarra o leitor pela gola.
Imprevistamente, é indigitado para capelão militar, frequenta a Academia Militar, aprende a manejar a G3 e ouve o bispo de Madarsuma a explicar a razão do compromisso com a pátria e a razoabilidade da guerra aos terroristas, Portugal estava a defender a civilização cristã contra as agressões externas. É nomeado capelão militar no BART 1913, segue para Catió num DO pilotado pelo lendário sargento Honório. É logo praxado na sala de oficiais, à mesa, no almoço, o major passa-lhe fotografia com mulheres nuas e Francisco pergunta-lhe se eram fotos da mulher dele, valeu o médico do batalhão que conseguiu que o caso ficasse abafado. Temos uma descrição de Catió como uma vila isolada e cercada de florestas e rios com um administrador cabo-verdiano, um administrador adjunto alentejano e uma dúzia de cipaios; havia duas casas comerciais e um comerciante conservava o seu estabelecimento na outra margem do rio, num local chamado Ganjola, onde esteve um destacamento que depois veio a ser abandonado com consequências sérias para Catió. É uma descrição cuidada mas pouco vibrante, sabemos que houve ataques à sede do batalhão mas ele é praticamente omisso quanto ao seu relacionamento com os militares. Há igualmente uma descrição de Cabedu, um aquartelamento mais a sul onde Francisco apanhou um susto quando os guerrilheiros invadiram a pista e entraram na povoação. Pouco também ficamos a saber do seu múnus apostólico fora do quartel, ele é lacónico: “Francisco nunca foi visita assídua nem das populações nem dos comerciantes brancos. Naturalmente reservado, nunca actuou como se fosse o pastor do rebanho com as obrigações inerentes. Tinha o papel de capelão, procurava desempenhá-lo, mas pouco mais do que isso”. As suas homilias eram obrigatoriamente para falar do heroísmo dos nossos soldados e da vida difícil da Guiné. O BART 1913 foi rendido, Francisco foi colocado em Bambadinca, numa zona que ele classifica como a mais cobiçada pelo inimigo. Adoece e entretanto a sua comissão chegou ao fim, regressa em Dezembro de 1969. Com o dinheiro que juntou, vai estudar e ajuda a irmã, que está a tirar o curso de contabilidade.
Já muito hesitante sobre a sua missão sacerdotal, alistou-se no clube Stella Maris, uma organização religiosa que cedia capelões para as companhias marítimas. Descreve o seu trabalho com um pouco mais de vivacidade, é neste tempo que toma a decisão de não voltar ao convento: “Era levado por uma explosão de vida, nunca antes sentida”. E fica-se por aqui, diz ao leitor de uma forma sacudida que havia experimentar uma nova vida: “Sentia dentro de si a primavera da vida a borbotar de uma forma quase imparável”. Escandalizando a família e as senhoras mais devotas da terra, passou a usar o traje civil, depois escreveu ao provincial a comunicar-lhe que ia abandonar o sacerdócio. Concluiu os seus estudos universitários e dedicou-se a muitas actividades no Ministério da Educação. Não sente nostalgia do que deixou para trás.
Há momentos de grande elevação em toda esta carpintaria narrativa. Temos aqui rememorações que mereciam ser revistas, acompanhamos uma formação mediante um esforço quase pungente de tudo dizer, sem azedumes nem ressaibos. Mas há um desequilíbrio na desconstrução do padre que merecia mais afeiçoamento à escrita, ganhava o depoimento e teríamos aqui um relato suficientemente vigoroso para poder constar no que há de melhor no memorialismo e nas confissões de um capelão militar.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9418: Notas de leitura (328): La Pointe du Couteau, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 – P9438: Memória dos lugares (173): Ponte Caium e o seu monumento, em ruínas (Pepito / Magalhães Ribeiro)
1. Mensagem e fotos do Engº Agrº Carlos Schwarz, Pepito para os amigos, fundador e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, enviada em 31 de Janeiro de 2012.
Marco histórico
Luís,
Fui de carro a semana passada à Guiné-Conakry dando a volta ao Fouta Djalon e entrando por Boké-Quebo (Aldeia Formosa).
Entre Gabú e Buruntuma dei de caras com este marco, do qual te envio fotos. Possivelmente já os publicaste no Blogue. (*)
abraços
pepito
Texto e Fotos: © Pepito (2011). Todos os direitos reservados.
2. Comentário do M.R.:
Temos mais de duas dezenas de referências à estratégica Ponte Caium, no nosso blogue. Ficava a meio caminho entre Piche e Buruntuma. Ainda hoje está memória e no imaginário de muitos camaradas que por lá passaram e sobretudo que lá estiveram, destacados. Caso, por exemplo, do Jacinto Cristina, do Florimundo Rocha, do Carlos Alexandre, três camaradas que hoje pertencem à nossa Tabanac Grande, e que fizeram parte da equipa que desenhou e construiu o monumento à memória dos bravos do 3º Gr Comb da CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) que guarneceram aquele destacamento e que não voltaram para casa...
No poste P9210 (, da autoria do ex-Fur Mil Ribeiro) e no poste P8061 (, da autoria do ex-Sold Cond Auto Florimundo Rocha) é feita a reconstituição da fatídica emboscada de 14-06-1973, na estrada Ponte Caium-Piche.
A ideia do monumento erigido á memória dos mortos da Ponte Caium terá partido do Carlos Alexandre, o único que tinha conhecimentos de desenho e de moldes por trabalhar na construção naval, em Peniche.
Vd. em especial o poste de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7203: Memória dos lugares (107): A Ponte Caium e o monumento, construído por nós, e dedicado aos nossos mortos: Cardoso, Torrão, Gonçalves, Fernandes, Santos, Silva (Carlos Alexandre, radiotelefonista, natural de Peniche, 3º Gr Comb, CCAÇ 3546, 1972/74)
Guiné > Zona Leste > Piche > Destacamento de Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Foto de 1973. Monumento construído pelo pessoal destacado na ponte, do 3º Gr Comb, e que ainda lá está, como o comprovou em Abril de 2010 o nosso camarada Eduardo Campos, e o como comprovam agora as fotos do Pepito, tiradas em janeiro último.
Foto: © Carlos Alexandre (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Ponte Caium > Abril de 2010 > Dois monumentos de homenagem aos bravos de Caium, constituídos por: (i) Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves, Fernandes, Santos, Sold Ap Can [Apontador de Canhão s/r ]Silva. 3º Gr Comb, Fantasmas do Leste. Guiné- 72/74"; (ii) Pequeno oratório com a legenda "Nem só de pão vive o homem. Guiné, 1972-1974". A foto é do Eduardo Campos que por lá passou em Abril de 2010.
Na altura (em novembro de 2010): escrevemos: "É espantoso como, 37 anos depois, o memorial p.d. esteja ainda quase intacto (falta-lhe a cruz que o encimava) e em razoável estado de conservação... Noutros sítios, estes monumentos deixados pelas tropa portuguesa foram vandalizados ou pura e simplesmente destruídos. Hoje, pelo contrário, há uma tentativa para os recuperar. Estamos no nordeste, em pleno chão fula, próximo da fronteira com a Guiné-Conacri, a meio caminho entre Piche e Buruntuma".
Foto: © Eduardo Campos (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Hoje voltamos a repetir: é espantoso como este monumento funerário tem conseguido resistir à usura do tempo. Obrigado ao nosso amigo Pepito pelas inesperadas fotos da ponte Caium, em tempo seco, e do seu precioso monumento. É um gesto que nos sensibiliza! Oxalá os guineenses saibam preservar este e outros pequenos pedaços da nossa história comum, do nosso património imaterial comum... E nisso o Pepito e a sua ONG AD têm sido incansáveis, dedicados, generosos. (MR).
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Nota de MR:
Vd. último poste desta série em:
No poste P9210 (, da autoria do ex-Fur Mil Ribeiro) e no poste P8061 (, da autoria do ex-Sold Cond Auto Florimundo Rocha) é feita a reconstituição da fatídica emboscada de 14-06-1973, na estrada Ponte Caium-Piche.
A ideia do monumento erigido á memória dos mortos da Ponte Caium terá partido do Carlos Alexandre, o único que tinha conhecimentos de desenho e de moldes por trabalhar na construção naval, em Peniche.
Vd. em especial o poste de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7203: Memória dos lugares (107): A Ponte Caium e o monumento, construído por nós, e dedicado aos nossos mortos: Cardoso, Torrão, Gonçalves, Fernandes, Santos, Silva (Carlos Alexandre, radiotelefonista, natural de Peniche, 3º Gr Comb, CCAÇ 3546, 1972/74)
Guiné > Zona Leste > Piche > Destacamento de Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Foto de 1973. Monumento construído pelo pessoal destacado na ponte, do 3º Gr Comb, e que ainda lá está, como o comprovou em Abril de 2010 o nosso camarada Eduardo Campos, e o como comprovam agora as fotos do Pepito, tiradas em janeiro último.
Foto: © Carlos Alexandre (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Ponte Caium > Abril de 2010 > Dois monumentos de homenagem aos bravos de Caium, constituídos por: (i) Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves, Fernandes, Santos, Sold Ap Can [Apontador de Canhão s/r ]Silva. 3º Gr Comb, Fantasmas do Leste. Guiné- 72/74"; (ii) Pequeno oratório com a legenda "Nem só de pão vive o homem. Guiné, 1972-1974". A foto é do Eduardo Campos que por lá passou em Abril de 2010.
Na altura (em novembro de 2010): escrevemos: "É espantoso como, 37 anos depois, o memorial p.d. esteja ainda quase intacto (falta-lhe a cruz que o encimava) e em razoável estado de conservação... Noutros sítios, estes monumentos deixados pelas tropa portuguesa foram vandalizados ou pura e simplesmente destruídos. Hoje, pelo contrário, há uma tentativa para os recuperar. Estamos no nordeste, em pleno chão fula, próximo da fronteira com a Guiné-Conacri, a meio caminho entre Piche e Buruntuma".
Foto: © Eduardo Campos (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Hoje voltamos a repetir: é espantoso como este monumento funerário tem conseguido resistir à usura do tempo. Obrigado ao nosso amigo Pepito pelas inesperadas fotos da ponte Caium, em tempo seco, e do seu precioso monumento. É um gesto que nos sensibiliza! Oxalá os guineenses saibam preservar este e outros pequenos pedaços da nossa história comum, do nosso património imaterial comum... E nisso o Pepito e a sua ONG AD têm sido incansáveis, dedicados, generosos. (MR).
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Nota de MR:
Vd. último poste desta série em:
26 DE JANEIRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9403: Memória dos lugares (172): Bissau: que diferença de 1964: 1965 e 1966 (João Sacôto)
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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...
1. A propósito da aventura do Pedro Vaz, irmão do Luís Vaz, que durante as férias do Natal de 1973 acompanhou o pai até Cufar, de avião, e depois foi até Cadique, de sintex... e que terá dormido, na noite seguinte [ou noutra ocasião, ele não pode garantir], numa LFG no Rio Cacine, onde viu fuzileiros a fazer esqui aquático, tivemos curiosidade em espreitar, de novo, o diário do António Graça de Abreu (AGA) (*)...
No diário não há vestígios da família Vaz, nem em Cufar nem em Cadique. Também não se fazia esqui, lá em baixo, pelo menos no Cumbijã... Em contrapartida, o sintex era um transporte popular, rápido e relativamente segundo. Tanto servia para o Coronel do CAOP1 ir a Cadique dar apoio moral às NT na véspera de Natal ou para evacuar feridos até a Cufar, como servia para a malta ir a Caboxanque destilar a adrenalina e beber um copo...
O Pedro Vaz (nem o irmão Luís) tem a certeza sobre a data exata em que ocorreu a aventura... Pode ter sido antes ou depois do Natal ou até mesmo nos primeiros dias do novo ano. Para o Pedro ("que tem uma memória seletiva", diz o mano mais novo) foi seguramente nas férias de Natal de 1973, não nas férias da Páscoa de 1974 (A Páscoa nesse ano foi a 14 de abril).
De 13 a 21 de dezembro, o AGA está em Bissau, onde foi ao dentista. Se o CEM do CTIG, o cor cav Henrique Gonçalves Vaz, esteve lá pode ter sido nesta altura. E não terá lá ido fazer turismo, que aquilo não era propriamente um destino paradisíaco como Bubaque. Ao ler o diário do AGA, sabe-se que se estava a preparar, para a época natalícia, a grande Op Estrela Telúrica, envolvendo o batalhão de comandos africanos (3 companhias), a 38ª CCmds, os fuzileiros (de Cacine), a tropa de Cadique... Houve grande movimentação de meios aéreos, conforme se pode ler diário do AGA (Vd. Cufar, 26 de dezembro de 1973).
Cufar era a Bissalanca do sul... E as NT lá andavam também de sintex (pequenos barcos de fibra com potentes motores de 50 cavalos)... E lá estava o CAOP1... O António Graça de Abreu esteve lá de Junho de 1973 até Abril de 1974... Ele próprio foi a Cadique de sintex com o comandante dele, coronel, no dia 24 de dezembro... Mais uma razão para se pensar que esta aventura do filho do CEM do CTIG é perfeitamente verosímil...
Selecionei uma série de excertos do do diário do António, com referências ao sintex, usado no Cumbijã, ligando Cufar aos vários aquartelamentos (Cadique, Caboxanque)... Reproduzimos aqui, mais uma vez, com, a devida vénia ao autor e ao editor...(LG).
(...) Cufar, 26 de Junho de 1973
Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.
Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.
Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.
Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.
Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas.
É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós.
Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio - e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.
Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.
As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis.
Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci.
De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.
(...) Cufar, 5 de Julho de 1973
À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.
(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973
Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.
Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite.
Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.
Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.
Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas.
É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós.
Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio - e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.
Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.
As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis.
Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci.
De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.
(...) Cufar, 5 de Julho de 1973
À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.
(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973
Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.
Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite.
Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos periquitos há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas.
(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973
A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.
Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.
Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada.
(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973
A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.
Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.
Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada.
Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos.
Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.
Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.
(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973
Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.
Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.
A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?
Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.
(...) Cufar, 13 de Janeiro de 1974
No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.
O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.
(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974
Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.
(...) Cufar, 5 de Março de 1974
Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído.
Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.
Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós, em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.
(...) Cufar, 7 de Março de 1974
Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.
Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.
Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias.
As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.
Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)
Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:
Último poste da série > 27 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...
Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.
(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973
Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.
Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.
A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?
Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.
(...) Cufar, 26 de Dezembro de 1973
Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estomagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.
Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz. Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.
Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.
Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.
Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.
Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.
Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
(...) Cufar, 4 de Janeiro de 1974
Ontem de manhã acordei com mais um tremendo embrulhanço, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...
Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância.
No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.
O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.
(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974
Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.
(...) Cufar, 5 de Março de 1974
Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído.
Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.
Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós, em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.
(...) Cufar, 7 de Março de 1974
Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.
Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.
Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias.
As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.
Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)
Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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