Queridos amigos,
O livro de Horácio Neto Fernandes é de um sofrimento pungente, uma longa viagem de construção e desconstrução de um sacerdote católico. Os primores literários, diga-se sem qualquer hesitação, situam-se fundamentalmente nas memórias registadas a fogo no menino de 11 anos que, muito mais tarde, cursará Filosofia e Teologia, e que depois rezará missas por casas senhoriais.
O narrador insiste que a desconstrução desse padre está diretamente associada aos seus tempos de capelão militar, esteve no BART 1913, na região Sul e depois em Bambadinca. A prosa aqui afrouxa, o que temos que lamentar, não possuímos de forma integral nenhum relato do género, há um desequilibro na desconstrução do padre. Mas é um documento que tem parágrafos arrepiantes, pode imaginar-se o tormento que foi passar a escrito tais memórias.
Um abraço do
Mário
Do Colégio Seráfico a Capelão Militar do BART 1913
Beja Santos
“Francisco Caboz, A construção e a desconstrução de um Padre”, por Horácio Neto Fernandes (Papiro Editora, 2009), é um relato ímpar pela simplicidade do que documenta, pela coragem em pôr por escrito recordações por vezes pungentes da criança sofrida que o adulto guardou em bom recato. Algures, na Lourinhã [, Ribamar,] num ambiente de pobreza austera, um menino solícito e participativo nas fainas duras do campo e das pescarias do pai, guardou esculpido a cinzel as memórias de um meio rústico, das brincadeiras das crianças e da religiosidade dos actos litúrgicos, dos bodos e da catequese. Terá sido na escola primária, no princípio dos anos 40, que se sentiu impelido a ser padre. Com 11 anos partiu para o Colégio Seráfico, em Braga, partiu com o enxoval mínimo, como ele descreve: “As botas que deviam ser dois pares: umas pretas, para usar com o uniforme da mesma cor e outras para trazer no dia-a-dia ficaram reduzidas a um só par, dado pelo padrinho, sapateiro, que também era pobre. O sobretudo preto para completar o uniforme e fazer face ao rigoroso Inverno minhoto, também foi riscado da extensa lista enviada pelo seminário, por falta de dinheiro". Mais tarde, vai ser fortemente penalizado por estas carências. Não teve outro remédio senão pintar as botas de tinta preta, quando havia saídas em que se usasse o uniforme. A princípio, ainda resultou, mas depois este artifício foi descoberto pelo Perfeito que passava revista aos uniformes, antes da saída do Colégio Seráfico para o passeio semanal, às quintas-feiras. A sentença foi varrer os recreios e o salão.
Francisco não esqueceu a composição do pequeno-almoço, do almoço e do jantar, as diversões, os passeios, as orações e a composição dos estudos. É uma descrição por vezes arrepiante, o leitor segue-o pelos lugares, envolve-se nos sacrifícios e nas medidas disciplinares, Francisco é tão evidente que aceitamos que se tenha habituado a cumprir sem pestanejar, sentindo-se sempre devedor dos padres. Cresce e habitua-se a afastar as tentações da carne. Aliás, segundo o director espiritual, as mulheres catalogavam-se da seguinte maneira: as freiras que se tinham consagrado a Deus; as mulheres casadas, sobretudo as mães dos padres, porque tinham dado um filho a Deus; depois as outras mulheres que procriavam; e as solteiras eram sempre um perigo porque causavam maus pensamentos aos homens. No final do 5º ano partiu para o Convento do Varatojo, agora era um rapaz de fato preto e chapéu na cabeça, é aqui que ele vai fazer um ano de noviciado, aqui também há castigos e penitências para as faltas. A nova etapa serão três anos de curso filosófico e depois quatro anos de curso teológico, no Seminário da Luz, em Carnide. De vez em quando, Francisco corre o risco de ser expulso, uma vez enviam uma carta anónima denunciando um tio que vivia amancebado, era o suficiente para a sua expulsão, felizmente que tudo se esclareceu. Temo-lo agora padre, em Agosto de1959, começa a sua missão, reza missas em casas senhoriais, presta serviço religioso nas igrejas, é professor.
A desconstrução de um padre começa nas suas hesitações ou vacilações: está apto a exercer a sua missão de sacerdote? Se o autor carpinteirou admiravelmente o contexto onde nasceu um padre e o modo como ele foi construído, há que confessar que esta desconstrução é descosida, frouxa, perdeu o nervo, é uma narrativa arrancada à força, um testemunho que não agarra o leitor pela gola.
Imprevistamente, é indigitado para capelão militar, frequenta a Academia Militar, aprende a manejar a G3 e ouve o bispo de Madarsuma a explicar a razão do compromisso com a pátria e a razoabilidade da guerra aos terroristas, Portugal estava a defender a civilização cristã contra as agressões externas. É nomeado capelão militar no BART 1913, segue para Catió num DO pilotado pelo lendário sargento Honório. É logo praxado na sala de oficiais, à mesa, no almoço, o major passa-lhe fotografia com mulheres nuas e Francisco pergunta-lhe se eram fotos da mulher dele, valeu o médico do batalhão que conseguiu que o caso ficasse abafado. Temos uma descrição de Catió como uma vila isolada e cercada de florestas e rios com um administrador cabo-verdiano, um administrador adjunto alentejano e uma dúzia de cipaios; havia duas casas comerciais e um comerciante conservava o seu estabelecimento na outra margem do rio, num local chamado Ganjola, onde esteve um destacamento que depois veio a ser abandonado com consequências sérias para Catió. É uma descrição cuidada mas pouco vibrante, sabemos que houve ataques à sede do batalhão mas ele é praticamente omisso quanto ao seu relacionamento com os militares. Há igualmente uma descrição de Cabedu, um aquartelamento mais a sul onde Francisco apanhou um susto quando os guerrilheiros invadiram a pista e entraram na povoação. Pouco também ficamos a saber do seu múnus apostólico fora do quartel, ele é lacónico: “Francisco nunca foi visita assídua nem das populações nem dos comerciantes brancos. Naturalmente reservado, nunca actuou como se fosse o pastor do rebanho com as obrigações inerentes. Tinha o papel de capelão, procurava desempenhá-lo, mas pouco mais do que isso”. As suas homilias eram obrigatoriamente para falar do heroísmo dos nossos soldados e da vida difícil da Guiné. O BART 1913 foi rendido, Francisco foi colocado em Bambadinca, numa zona que ele classifica como a mais cobiçada pelo inimigo. Adoece e entretanto a sua comissão chegou ao fim, regressa em Dezembro de 1969. Com o dinheiro que juntou, vai estudar e ajuda a irmã, que está a tirar o curso de contabilidade.
Já muito hesitante sobre a sua missão sacerdotal, alistou-se no clube Stella Maris, uma organização religiosa que cedia capelões para as companhias marítimas. Descreve o seu trabalho com um pouco mais de vivacidade, é neste tempo que toma a decisão de não voltar ao convento: “Era levado por uma explosão de vida, nunca antes sentida”. E fica-se por aqui, diz ao leitor de uma forma sacudida que havia experimentar uma nova vida: “Sentia dentro de si a primavera da vida a borbotar de uma forma quase imparável”. Escandalizando a família e as senhoras mais devotas da terra, passou a usar o traje civil, depois escreveu ao provincial a comunicar-lhe que ia abandonar o sacerdócio. Concluiu os seus estudos universitários e dedicou-se a muitas actividades no Ministério da Educação. Não sente nostalgia do que deixou para trás.
Há momentos de grande elevação em toda esta carpintaria narrativa. Temos aqui rememorações que mereciam ser revistas, acompanhamos uma formação mediante um esforço quase pungente de tudo dizer, sem azedumes nem ressaibos. Mas há um desequilíbrio na desconstrução do padre que merecia mais afeiçoamento à escrita, ganhava o depoimento e teríamos aqui um relato suficientemente vigoroso para poder constar no que há de melhor no memorialismo e nas confissões de um capelão militar.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9418: Notas de leitura (328): La Pointe du Couteau, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)
5 comentários:
Foi através do Alberto Branquinho que eu soube da existência deste livro (de que fiz chegar ao Mário um exemplar) bem como paradeiro do meu parente Horácio, que disse missa nova juntamente com outro primo comumum, o Júlio, em Ribamar, era eu puto, andava na escola primária, em agosto de 1959e estava longe de imaginar que em 28 de maio de 1969 estaria às portas de Bissau, pronto a desembarcar do navio Niassa...
Como era da família, fui convidado para a cerimónia da(s) missa(s) nova(s), uma enorma festa comunitária que envolveu toda a aldeia (hoje vila) de Ribamar, e que ainda hoje guardo na memória, mais de meio século depois...
Sei que o Horácio vive no Porto, casado, pai de filhos, reformado como inspector do ministério da educação.. Já tentei saber dele, no Porto e em Ribamar, onde temos parentes comuns.
Há mais de 50 anos que lhe perdi perdi o rasto... Vou deixar aqui o meu nº de telemóvel (931 415 277), para o caso de ele ler esta empática recensão bibliográfica feita pelo Mário, e me querer contactar...
Gostava de convidar o Horácio para integrar a nossa Tabanca Grande... Ainda há dias falámos aqui de um primo comum, o Luís Filipe Maçarico, feito prisioneiro na Índia, em 19 de dezembro de 1961..
Um abraço para os quatro, o Mário, o Alberto, o Horácio e o Luís Maçarico... LG
Deve ser interessante! Porém em 1969,não vi nenhum Capelão em
Bambadinca,nem eu,nem o Luís,nem o Mário...Será um lapso?
Abraço.
J.Cabral
Dei notícia da existência deste livro através do POST 8437 de 17 de Junho de 2011, escrito pelo capelão do meu Batalhão (BART 1913), que esteve sempre sediado em Catió (Maio de 1967 a Abril de 1969. A minha companhia(CART 1689), apesar de pertencer a este Batalhão, esteve com ele somente durante cerca de seis meses. O ataque a Cabedu, contado no livro pelo Horácio e referido na recensão do Mário, aconteceu num período em que a minha companhia estava a guarnecê-lo.
PARA O MÁRIO
Obrigado pelo texto. Vou transmitir ao Horácio para fazer acesso ao blogue e ver esta tua recensão.
PARA O LUIS
Mais uma vez vou dizer ao Horácio, que vai gostar de ver este texto. Ele não gosta de se expor em pessoa.
PARA O JORGE
Como podes ver acima, o ex-capelão e autor do livro esteve em Catió e não em Bambadinca, onde chegou em 1968, quando o Batalhão já tinha uns meses de comissão
Um abraço para todos
Alberto Branquinho
Branquinho
Tenho a ideia de que o Capelão passou por Catió pouco tempo. Julgo, até, que era um padre italiano que vinha de vez em quando rezar a missa à igreja.
Lembro-me perfeitamente do Capelão ter ido de camuflado, connosco, num patrulhamento de reconhecimento. Via-se que ele acusava alguma emoção com aquela movimentação militar, à séria. Junto a uma povoação abandonada, referi-lhe que, seguramente, ele era o primeiro padre católico a pisar aquela terra.Bonacheirão, simpático e muito tolerante. Gostei dele.
Não, Silva
- O capelão Horácio Fernandes foi para o Batalhão a insistências do próprio Comandante, na sequência do afastamento de Catió do(s) padre(s)italianos por razões que podemos imaginar... Aliás o capelão chegou a fazer contactos com esses(s) padre(s) italiano(s) em Bissau, no sentido de recolher informações sobre a população para melhor exercer o seu munus e (na sua ingenuidade de então) não entendeu a razão por que esse(s) padre(s) o evitavam;
- Ele esteve sempre na área de Catió, afora algumas ausências em Bissau e nas férias;
- Deslocou-se aos outros aquartelamentos da área do Batalhão tanto em forma apeada, como em coluna auto, como por meio aéreo;
- Quando o BART 1913 terminou a comissão, ele ficou (pelo menos inicialmente) em Bissau para terminar o seu próprio período de tempo, pois chegou ao Batalhão quando já tinham passado meses de comissão.
Você não ia à missa... (Eu também não)
Alberto Branquinho
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