sábado, 10 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20048: Os nossos seres, saberes e lazeres (347): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Esta visita a Bruxelas tinha um elevado pendor sentimental. Um amigo de décadas resolvera fechar a casa e recolher-se a um lar, pedira-lhe para o visitar nesta morada onde habitara cerca de meio século. E foi. E guardará para todo o sempre a escadaria em cimento, uma porta que se abre para um vestíbulo e para uma cozinha, aqui ajudou a preparar refeições e combinaram-se almoços e jantares para receber outros amigos, sempre com vista para o jardim, umas vezes no sono do inverno outras vezes com árvores em flor ou carregados de camélias. E escadas íngremes para o primeiro e segundo andares. Fica a recordação daquele lugar onde se conheceu a plenitude. Completou-se a homenagem retornando aos mesmos lugares aonde aquele amigo o acompanhou, décadas a fio. Digamos que foi uma viagem circular. E cresce a vontade de regressar, a despeito destas alterações em lugares eleitos.
A viagem nunca acaba, só os viajantes é que acabam, José Saramago dixit.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (9)

Beja Santos

Na hora da despedida de Gand, o viandante sente-se retido pelos cuidados florais e por um monumento dedicado aos irmãos Van Eyck, os mundialmente conhecidos artistas a quem devemos o tríptico da Adoração do Cordeiro Místico, agora sobe-se para um tram em direção à estação ferroviária de S. Pedro, assim se regressa a Bruxelas.



Volta-se a amesendar em casa de amigos, no bairro de Anderlecht, no dia seguinte aqui se retornará para rever a casa de Erasmo e a beguina que bordeja a Igreja de S. Pedro e Guidon. O que se retém para comprazimento do viandante é que na hora em que duas crianças esperam pelo João Pestana, um querido amigo, de nome André Cornerrote, lê e treslê, é o aspeto mais adorável que nós os velhotes temos, onde está feiticeira pomos duendes, onde estão florestas sombrias pomos espelhos de água onde se refletem as estrelas, as crianças emudecidas pelo fulgor das estrelas, pelas danças de Órion, pelos anéis de Saturno, pelos bâmbis que jamais crescerão para que não se tenha que contar que os caçadores matarão suas mães. Dê o mundo as voltas que der que os contos de fadas são eternos, é uma lei da inocência confiar em mouras de encantar e príncipes de coração fiel.



O novo dia começa com uma visita ao Museu Magritte. Há cerca de quarenta anos, quando o viandante aqui arribou, não havia Museu Magritte, havia a coleção Magritte inserida nos Museus Reais das Belas-Artes, edifício opulento com fachada vistosa e escultura monumental a preceito. Entra-se num átrio gigantesco de onde se avista um primeiro andar com arcaria clássica e teto pleno de luminosidade. É o mais rico museu da Bélgica, deve ser visitado em pequenas porções, a pintura antiga é um deleite, estão lá os grandes mestres, e depois chega-se ao corrupio dos génios flamengos como Hans Memling, Bruegel O Velho ou Bosch, antes o visitante teve oportunidade de ver telas soberbas de Rogier van der Weyden ou Quentin Metsys. Para não cansar quem nos lê, estão ali expostos os inevitáveis Rubens e Rembrandt, indo por aí fora chega-se à modernidade, depois de muito impressionismo e expressionismo, uma tela monumental de Francis Bacon dedicada ao Papa Inocêncio X, tal o ângulo de exposição, tem o dom de cortar o fôlego a quem por ali passa. Nesse tempo antigo o Museu Magritte era uma impressionante doação da mulher deste genial surrealista que se visitava em duas salas. Terão seguramente os conservadores reconhecido que Magritte merecia autonomia fora do Museu de Arte Moderna e existe hoje um museu dedicado ao maior entre os maiores dos surrealistas da Valónia.

Museu Magritte, na Praça Real, Bruxelas, encerra a maior coleção mundial deste génio do surrealismo pictórico.

Le sorcier, René Magritte.

Le chef d’oeuvre ou les mystères de l’horizon, René Magritte.

L’empire des lumières, René Magritte.

O que leva as multidões a afluírem diariamente a este edifício de estilo neoclássico onde por três andares se espalham 150 obras doadas ou adquiridas, esquissos, partituras, obra gráfica, filmes, toneladas de fotografias, imagens de variados tipos e depois os guaches e os óleos onde os visitantes sentem o esplendor desta figura de proa do surrealismo mundial, com os seus falsos desconcertos harmónicos, os contrastes que batem certo, a irrealidade feita possibilidade, caso do quadro O Império das Luzes, aquele céu parece incompatível com a noite escura, estrelada por um candeeiro, que se reflete num espelho de água, e afinal está tudo certo, o insólito ganha espessura e o contraste faz-se entendimento, o espectador encontra outra lógica. Isto para advertir quem nos lê que visitar Bruxelas sem bater à porta deste lugar sacrossanto do surrealismo é pura negação da viagem. Tenho dito.




E chegámos ao termo da viagem, de novo o viandante aqui arriba, era obrigatório retornar, a primeira estadia em Bruxelas, há mais de 40 anos, propiciou este encontro. Nesse tempo, havia um comissariado do turismo belga em Portugal, na Rua do Alecrim, ali trabalhava uma belíssima escritora hoje muito esquecida, Fernanda Botelho, que quando o visitante ali veio pedir documentação lhe sugeriu a visita à Casa de Erasmo. O que tem esta mansão de especial? É uma das casas mais antigas de Bruxelas. De maio a outubro de 1521, o cónego de Anderlecht aqui acolheu Erasmo. O museu evoca a vida do humanista holandês e o universo intelectual da Reforma através de obras antigas (gravuras ou pinturas de Holbein, Bosch ou Dürer), impossível não ficar impressionado com aquela coleção de móveis góticos e renascentistas. E da Casa de Erasmo partimos para o jardim, uma outra beleza, é um jardim de prazeres e saberes, tem plantas medicinais, tem uma zona chamada o jardim dentro do jardim, conhecido como o Jardim Filosófico e que se inspira na obra de Erasmo O banquete religioso. Aqui se recria o que Erasmo observou sobre a amizade: “Onde haja amigos, ali está a riqueza”.
Assim acaba a viagem, por ora. A riqueza do viandante tem este pilar sólido da amizade, veio visitar um amigo em transe e colheu estes frutos, estas lembranças, algumas delas tão difusas, dentro da cidade que hoje também é um pouco de si. E espera voltar, pois então. Para uns, Bruxelas é a capital da Europa, para o viandante constituiu-se como um local de afetos e de convivência aberta, ande por ali sozinho ou acompanhado. E sempre que lá regressar, passará por uma livraria onde, numa estante, encontra autores portugueses, são testemunhos mudos de compatriotas que ali viveram e deixaram para outros o doce encanto da língua pátria.
Até à próxima!
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20032: Os nossos seres, saberes e lazeres (346): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20047: Parabéns a você (1662): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 1972/74) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)



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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20044: Parabéns a você (1661): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Nesta fase do trabalho, mantenho a maior das expectativas quanto a contributos. A Operação Tridente foi alvo de propaganda do PAIGC: falou em 500 mortos das nossas tropas, em retirada caótica, numa derrota sem precedentes. A atoarda ganhou raízes, pessoas com a responsabilidade do historiador Carlos Lopes reproduzia em 1982 tal propaganda. Felícia Cabrita reproduziu atoardas semelhantes depois de ter visitado a Ilha do Como a convite de Nino Vieira, uma vergonha, o gosto pelo puro sensacionalismo, o desrespeito absoluto pelo contraditório. Há hoje muito material sobre a Operação Tridente, aqui se reproduzem dados sumários da história da Unidade e equacionam-se elementos da biografia de Alpoim Calvão que foi o comandante do DFE8 na referida operação, reconhecidamente com uma postura de valentia, dotando os seus homens de uma grande capacidade ofensiva e solidariedade com os outros militares.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (18)

Beja Santos

“Com o destino navegou
o Batalhão de Cavalaria
para a grande operação.
Algum pessoal morria.

Sua Excelência o Brigadeiro
no cais de Bissau se encontrava
e a saída ele ordenava
mais o comandante Cavaleiro.
Foi a 14 de Janeiro
que o cais se deixou.
O “Bor” e o “Geba” abalou,
ficando em terra uma Companhia
que na noite do mesmo dia
com o destino navegou.

Dia e noite navegando
ao largo do Como se chegou.
O 8.º Destacamento desembarcou,
debaixo de fogo avançando.
A 488 rastejando
com muita coragem seguia.
O bando que aí se acolhia
recuava com temor,
pois nunca perdeu o valor
o Batalhão de Cavalaria.

No mesmo dia se desceram
mais duas das Companhias
que, no espaço de alguns dias,
muita sede eles sofreram.
Rações de combate comeram,
com bolachas em lugar de pão.
Foi para cumprir a missão
que tudo isto passámos
e no Como nos instalámos
para a grande operação.

Na praia de Caiar
o resto do pessoal desceu
onde desci também eu
para o material descarregar.
Com os meus colegas a ajudar
muito frete se fazia.
Fez-se um buraco onde se dormia
tranquilo e descansado,
mas no grande mato cerrado
algum pessoal morria.”

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O que o bardo aqui nos dá conta é da Operação Tridente, do seu início. Sobre a mesma, considerada um dos principais acontecimentos de toda a guerra colonial, dispõe-se de inúmera documentação. Logo a história da Unidade, um relato detalhado. Vejamos alguns elementos essenciais. Tudo começa a 14 de janeiro, a Tridente durou 71 dias, as forças executantes iniciaram o regresso em 24 de março. Foi a primeira no seu género, integraram a operação forças terrestres, navais e aéreas. As forças terrestres eram constituídas por três destacamentos de fuzileiros especiais, uma companhia de caçadores mais um pelotão, um pelotão de paraquedistas, um grupo de comandos, um pelotão de obuses e outros efetivos do BCAV 490. Não houve resistência ao desembarque. O IN revelou-se bem instruído e muito agressivo e com poder de fogo extraordinário. O seu moral foi sendo abatido ao longo do tempo, no final da operação atuava em pequenos grupos dispersos, sem qualquer agressividade e fugindo ao contacto. Do lado das nossas tropas são repertoriados oito mortos e vinte e nove feridos e mortos confirmados do lado IN setenta e seis. É transcrita a carta em que Nino apela a reforços ao fim de 48 dias.

A biografia de Alpoim Calvão intitulada “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, por Abel Melo e Sousa, Luís Sanches de Baêna e Rui Hortelão, Caminhos Romanos, 2012, dá amplo destaque ao comportamento deste oficial da Armada à frente do Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 8. Vamos reter alguns dados, outros acompanharão a evolução da Operação Tridente.
Porém, antes de mais, um dado singular da liderança de Calvão:
“Os processos utilizados pelo comandante do DFE8 para assegurar a eficiência da sua unidade nem sempre seguiam à risca o disposto nos manuais militares, mas eram seguramente os mais eficazes. Por vezes, quando as infracções cometidas por um dos seus fuzileiros caíam sob a alçada do Regulamento de Disciplina Militar, o que não era invulgar, o Tenente Calvão dava-lhe a escolher entre receber o castigo previsto por este regulamento ou calçar as luvas de boxe e com ele resolver o assunto a murro. Geralmente era esta segunda opção a escolhida pelos infractores, apesar do grande porte e da poderosa força do seu comandante”.

Estamos no Como, vejamos o registo de dia 23 em que Calvão sai com uma secção do seu destacamento, outra da CCAV 488 e um grupo de comandos a fim de proteger a progressão deste último que tencionava passar para o Uncomené (um local da ilha do Como).  
“O inimigo que aguardava emboscado na orla da mata, junto a uma picada, abre fogo com uma metralhadora pesada e armas ligeiras. Apesar de ter garantido a surpresa inicial, acaba por ser batido pelas forças portuguesas apoiadas pela aviação, sofrendo vários feridos e abandonando dois mortos no terreno. Ainda assim o grupo de comandos não conseguiu passar devido ao lodo existente junto ao tarrafo. Nesse mesmo dia, horas depois, um avião T6 despenhou-se a oeste de Cauane, pelo que antes de regressar ao estacionamento a força passou pelo local onde jazia o corpo do piloto, que foi recuperado meio carbonizado para de seguida ser recolhido por um helicóptero Alouette II.
Logo no início do mês de Fevereiro, o DFE8 recebe ordem para penetrar na mata a oeste de Cauane. Objectivo: a fixação e envolvimento da tabanca grande de Cauane. Inicia a penetração na mata sem ser detectado, colocando-se atrás da posição inimigo que a mata cerrada tornava invisível, apesar de estar a menos de 30 metros. Qualquer movimento naquela densa vegetação poderia denunciar a presença dos fuzileiros, pelo que o Tenente Calvão decide emboscar com um dispositivo estático comandado pelo imediato e constituído por duas secções com esquadras de MG42 em linha à frente. Em cada flanco, uma secção e o resto dos homens de apoio à retaguarda, ficando o comando colocado numa posição central um pouco descaído sobre o flanco direito. Um pequeno grupo inimigo, sem se aperceber da manobra, passa a alguns metros desse flanco, que de imediato abre fogo abatendo um inimigo armado e ferindo outros. A reacção foi pronta e resultou num fuzileiro ferido. Com o inimigo a dar mostras de grande vitalidade, as forças terrestres continuavam a pressionar toda a região das três ilhas.

No dia 7 de Fevereiro, uma companhia de cavalaria ataca a tabanca de S. Nicolau, fixando naquela povoação os guerrilheiros que reagiram com o poder de fogo de uma metralhadora pesada. Enquanto decorre o combate, o DFE8 progride silenciosamente em direcção ao objectivo, iniciando o envolvimento sem ser detectado. Abre fogo ao entrar em contacto com o inimigo, abate um guerrilheiro e provoca diversos feridos, pondo os restantes em fuga. Por duas vezes tentou o adversário reagir com a mesma estratégia, sendo de ambas repelido.

Dez dias passaram. Pelas 04h30 do dia 17 de Fevereiro, o DFE8 com um grupo de comandos e um grupo de combate da Companhia 488 inicia a progressão em direcção à ponta nordeste da mata de Curcô, de acordo com a táctica habitualmente seguida pelos fuzileiros. É sempre feita por fora de picadas e trilhos, o que apresentava duas grandes vantagens: evitar possíveis minas e armadilhas e surgir junto do inimigo por onde ele menos esperava.
Cerca das 10h00, um pequeno grupo inimigo tenta atacar a retaguarda da coluna, mas é sacudido e posto em debandada com duas granadas de mão. Depois, destruíram-se alguns depósitos de arroz. Uma hora mais tarde, a coluna chega à mata a norte de S. Nicolau onde avista homens armados, aos quais monta imediatamente uma emboscada com óptimos resultados: o DFE8 abate três inimigos e os comandos um. Os guerrilheiros entram, então, numa fuga desordenada, estimulada pela metralha cuspida por uma aeronave T6.
A progressão acabaria por ser retardada por um ataque de abelhas que inferiorizou os paraquedistas e as três secções da vanguarda da DFE8.

No dia 24 de Fevereiro, a Companhia do Capitão Cidrais, ao desembarcar no Uncomené, vê-se fixada na bolanha debaixo de violente fogo, ao abrigo do pequeno quadrado de um ourique, a cerca de 150 metros da orla de uma mata onde o inimigo se encontrava bem instalado e devidamente protegido. Os soldados mal podiam responder ao fogo pela exiguidade da posição ocupada e desprotegida. É então que o comandante das forças terrestres toma a decisão de fazer sair o DFE8 em seu socorro. Quando alcançou a posição dos sitiados, o Major Romeiras, Comandante do Agrupamento A, pediu aos fuzileiros para procurarem na mata os dois mortos que a CCAV 487 deixara no terreno durante uma investida à posição inimiga. Desta incumbência se encarregou o Segundo-Tenente Malhão Pereira, Imediato do DFE8, com duas secções, e após uma breve batida, veio a encontrar os dois corpos despidos e sem armas, estando um deles armadilhado com granadas. Enquanto isto, o Tenente Calvão e o Capitão Cidrais, em reconhecimento expedito, exploravam para sul da sua posição, a fim de conseguirem uma visão táctica completa da situação e poderem retirar a tropa da CCAV 487, esgotada pelo intenso e penoso combate. Acabou a força toda por ter de recolher às lanchas de desembarque para a conduzir à Fragata Nuno Tristão, onde os fuzileiros foram recebidos uma vez mais, entre marinheiros, com a amabilidade e amizade habituais”.

(continua)

Convívio em 2010 do BCAV 490
fotografia retirada do blogue Ilha do Como (Guiné)
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Notas do editor

Poste anterior de 2 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20028: Notas de leitura (1204): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (17) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20036: Notas de leitura (1206): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20045: Lembrete (32): Lançamento do livro "Ferrel através dos tempos", do nosso camarada Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 (Empada, 1964/66)... Hoje, em Ferrel em Festa, sábado, dia 9 de agosto, às 17h00




Leiria > Monte Real > IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 > O Joaquim da Silva Jorge e a esposa Esmeralda (Ferrel / Peniche)... É o membro nº 698 da nossa Tabanca Grande.

Foto (e legenda) : © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Pormenor da capa do livro do Joaquim da Silva Jorge


1. Lembramos aqui o convite do nosso camarada Joaquim [da Silva] Jorge, régulo da Tabanca de Ferrel / Peniche, ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, BCAÇ 619, Catió, 1964/66), bancário reformado, ex-autarca e ativista comunitário, para aqueles de nós que  puderem,  estarmos hoje, na sua terra natal, para o lançamento do seu livro "Ferrel através dos Tempos".

O evento realiza-se em Ferrel, concelho de Peniche,  hoje dia 9 de agosto, 6ª feira, às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel.  (**)

Recorde-se, por outro lado, que Ferrel está em festa, desde o dia 5 até ao dia 10.  E no último dia, sábado, dia 10, às 15h30, irá realizar-se a famosa corrida de burros, seguarmente a mais dibvertida (se não mesmo a mais famosa!)  do planeta...  A não perder!... Absolutamente!... Vai já na 52ª edição!


Guiné 61/74 - P20044: Parabéns a você (1661): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20042: Parabéns a você (1660): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20043: Fotos à procura de... uma legenda (116): Sabes, menino, o que é a Pátria ?


Lourinhã > 2012 > Bandeira Nacional pintada numa parede lateal de uma casa.  Autoria: PM, 10.06.06. Por essa altura, realizava-se o Campeonato Mundial de Futebol, na Alemanha, de 9 de junho a 9 de julho de 2006, em que Portugal participou. A pintura mural lá continua, 13 anos depois, cada vez mais desbotada...

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A Pátria

Menino, sabes o que é a Pátria?

A Pátria é a terra em que nascemos, a terra em que nasceram os nossos pais e muitas gerações de portugueses como nós.

É nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam com o seu sangue ou alargaram com sacrifício de suas vidas. É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par dos santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais. A Pátria é a mãe de nós todos - os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão-de vir.

Na Pátria está, meu menino, a casa em que vieste à luz do dia, o regaço materno que tanta vez te embalou, a aldeia ou a cidade em que tu cresceste, a escola onde melhor te ensinam a conhecê-la e a amá-la, e a familia e as pessoas que te rodeiam.

Na Pátria estão os campos de ricas searas, os prados verdejantes, os bosques sombreados, as vinhas de cachos negros ou cor de ouro, os montes com as suas capelinhas brancas votivas.

A Pátria é o solo abençoado de todo o Portugal, com as suas ilhas do Atlântico (Açores e Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe...), as nossas terras dos dois lados de África, a Índia, Macau, a longinqua Timor.

Para cá e para além dos mares, é nossa Pátria bendita todo o território em que, à sombra da nossa bandeira, se diz na formosa lingua portuguesa a doce palavra Mãe !...

Fonte: Portugal, Ministério da Educação Nacional (1958) -  Livro de Leitura da 3ª Classe, pp. 5-6.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19713: Fotos à procura de... uma legenda (115): os nossos aposentos "bunkerizados"... com "climatizadores de pesadelos"!

Guiné 61/74 - P20042: Parabéns a você (1660): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20037: Parabéns a você (1659): Cor Inf Ref Fernando José Estrela Soares, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2445 (Guiné, 1968/70)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20041: Historiografia da presença portuguesa em África (171): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Somos levados a questionar como é que este testemunho, uma edição de autor, um documento escrito em 1935 e editado em 1937, passa praticamente à margem da historiografia da Guiné colonial. Pélissier, sempre com azedume e a palmatória da crítica, fala de erros na datação, é assunto importante, mas estabelece uma confusão entre a árvore e a floresta, ninguém, até àquela data, escrevera com tanta riqueza de pormenor e, como se irá ver no texto seguinte, o testemunho do Sargento António dos Anjos dá-nos uma larga margem para desvelar a Guiné nos anos 1910 e 1920, como mais ninguém o fez.

Um abraço do
Mário




Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: 
A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1)

Beja Santos

Há pelo menos dez anos que andava atrás deste documento do 2.º Sargento reformado António dos Anjos, um testemunho sem paralelo, praticamente omisso em quem estudou e escreveu este período que vai entre as décadas de 1910 e 1930, René Pélissier faz-lhe uma referência não muito abonatória, até uma crítica mesquinha, paciência. O Sargento dos Anjos irá descrever ao pormenor a sua comissão de dois anos, como aqui chegou, ao tempo havia uma epidemia de febre-amarela, e logo comenta: “Encontrava-se nesse tempo parte da colónia ocupada militarmente, mas a maior parte insubmissa, habitada por raças extremamente rebeldes e de espírito aguerrido, havendo apenas dois Residentes civis, um em Bafatá, outro em Farim”.

Este “resumo” de António dos Anjos não é fácil de encontrar, descobri-o na Hemeroteca Municipal de Lisboa, recomenda-se vivamente a sua leitura pelo caudal informativo.

Já reformado em Bragança, dá-nos muita informação. Logo referindo as cinco grandes etnias de instintos ferozes que estavam em estado de rebelião: os Papéis, os Balantas, os Oincas, os Manjacos e os Mancanhas ou Brames. “No entanto, os mais temíveis eram os Papéis e os Oincas, porque estas duas raças eram descritas com um verdadeiro horror”. Procede ao enunciado das campanhas anteriores onde de vez em quando se engana em datas, o importante é a relação que nos deixa, teve seguramente acesso a alguém que as inventariara: 1844, Ilha de Bissau, Papéis revoltados; 1870, Cacheu, região dos Manjacos, sempre insubmissos; em 1878, Nhacra, região dos Balantas, distúrbios e recusa de pagar impostos; 1880, Forreá; 1886, Cuor, região dos Beafadas; 1891 e 1894, ilha de Bissau, ataques constantes à vila; 1895, na ilha de Jata, região dos Manjacos; 1897, Oio, região dos Oincas; 1902, Belor, região dos Felupes e igualmente outra rebelião no Oio; 1907, Felupes em estado de guerra, uma operação em Campampe e Sansacuto, região dos Fulas; 1908, ilha de Bissau, Cuor e Quínara, a região dos Beafadas em estado de revolta e uma operação em Samonge, região dos Balantas, Farim; 1911, Binhome, região dos Balantas; 1912, Susana, região dos Felupes ou Baiotes.


O Sargento dos Anjos lança-se a pormenorizar a operação ao Oio, em 1897, tendo à frente Graça Falcão e António Caetano, foi um massacre a que escapou milagrosamente Graça Falcão, que andou sozinho a monte, autêntica odisseia. Dá testemunho da rebelião na ilha de Uno, em dezembro de 1918, a coluna a que ele pertencia resistiu à fúria dos Bijagós graças ao uso das armas.

Voltando atrás, dá conta como o governador Júdice Biker, em 1902, castigou os Oincas pelo massacre de 1897. E recorda outro dado que muitas vezes o historiador descura, as lutas interétnicas que se prolongaram com violência mesmo depois das operações de pacificação no tempo de Teixeira Pinto. Um exemplo: “Ainda em 1931, houve nos subúrbios de Bissau guerra entre Papéis e Mancanhas, principiando junto ao mercado de Bissau; e mesmo à vista das autoridades, os Papéis assassinaram Mancanhas que procuravam fugir para dentro da fortaleza”.

Sempre bem documentado, detalha as operações de Teixeira Pinto, recorde-se que o autor desconhecia completamente a obra que na década de 1940 a Agência Geral das Colónias publicou, de acordo com o documento preparado pelo filho do Capitão Teixeira Pinto. Diz ele que os três grandes colaboradores de Teixeira Pinto foram Abdul Indjai, régulo do Cuor e do Oio, Mamadú Sissé, nomeado régulo dos Felupes e o chefe de guerra Alfá Mamadú Seilu.


Assistiu às transformações de Bissau e é encomiástico: “A cidade de Bissau, que ainda há poucos anos era pequena vila de ruas apertadas, sem alinhamento, dali a pouco tempo entrava em progresso, ajardinando-se, abrindo-se ruas largas e avenidas, construindo-se magníficos edifícios, tornando-se o ponto de convergência de boas estradas que, pela sua vez, faziam irradiar, lentamente, a civilização para todos os pontos da colónia, e por onde, amiudadas vezes, transitavam automóveis e camiões carregados de mercadorias, atravessando sertões que têm muitos quilómetros de extensão, onde ainda havia milhares de negros que nunca tinham visto um branco”. Alarga-se nas suas observações sobre o porto e cais do Pidjiquiti e apresenta a fortaleza.

Em certos momentos, a sua comissão militar vem ao de cima, recorda os valorosos que caíram em combate, vale a pena citá-lo, vai seguir-se uma série de testemunhos do que viu durante a sua comissão de dois anos:
“Chegando algum dia a fazer-se uma ponte que seja construída em alvenaria ou em cimento armado, no rio entre Mansoa e Bráia, onde desde há anos se encontra a ponte feita com paus de cibe e carantins, dever-lhe-ia ser dado o nome de Ponte dos Mártires da Guiné, visto que foi naquele ponto onde moram massacrados tantos militares que iam pela primeira vez tentar abrir caminho de Mansoa a Bissorã. As campanhas que Teixeira Pinto fez na Guiné, onde se travaram os mais violentos combates foram as de: Região do Oio em Canchuncuto e Mansabá; Região dos Manjacos, no Xôroenque e Basserel; na Região dos Balantas, na Bráia e Encheia; na Região dos Papéis, em Intim, Jaál e Quinhamel, e onde os Papéis e Grumetes sofreram a maior derrota foi no Biombo. As praças que mais se distinguiram nestas campanhas foram os Sargentos Moens, Faria, Vilaça, Amorim, Jacinto e o cabo Godinho.
O Sargento Amorim, também 1919, na campanha de Mansabá – região do Oio – mais uma vez mostrou a sua coragem e valentia, junto do desditoso Alferes Figueira, onde este no seu posto de combate tombou para sempre, quando foi atacado aquele pequeno quartel. Ainda hoje jazem os restos mortais deste oficial ao lado de três soldados indígenas, junto ao baluarte que heroicamente defendiam! Era um homem modesto, desprendido de vaidades, um excelente camarada e muito estimado pelos seus superiores!
Não devo deixar despercebido o 2.º Sargento Augusto das N. Rocha, que além de, por uma casualidade, não ter feito parte de nenhuma campanha das que houve na Guiné, desembarcou nela em 1912 e ainda nela se encontra com residência fixa em Safim, região dos Papéis, sendo um bom colonial. Este transmontano de rija têmpera foi um valente! Mostrou-o quando em 1907, voluntariamente, foi incorporado na grande coluna de operações, do comando do bravo transmontano Alves Roçadas, à grande e aguerrida região dos Quamatas, no sul de Angola, onde foi condecorado com a Medalha de Valor Militar.
Ainda atualmente se encontram transitando na Guiné algumas praças, já reformadas, que em tempos que já lá vão, treparam parte do solo desta rica colónia, debaixo de fogo e que foram louvadas e condecoradas com a medalha de cobre comemorativa das campanhas do Exército Português, com a legenda “Bissau 1915”: os Sargentos Amorim, Teixeira, Anjos e o Cabo Godinho.”

(continua)
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Notas do editor

Vd. postes de:

29 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17523: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (1): Até à pág. 14 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17538: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (2): Págs. 15 a 23 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

6 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17551: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (3): Págs. 24 a 32 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

10 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17564: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (4): Págs. 33 a 42 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

13 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17576: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (5): Págs. 43 a 51 (Alberto Nascimento, ex-Sold. Cond. Auto da CCAÇ 84, 1961/63)

17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17590: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (6): Págs. 52 a 60 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

20 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17603: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (7): Págs. 61 a 69 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

24 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17613: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (8): Págs. 70 a 79 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

27 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17622: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (9): Págs. 80 a 88 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)
e
31 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17637: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (10): Págs. 89 a 97 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

Último poste da série de 31 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20024: Historiografia da presença portuguesa em África (169): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20040: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXVI: Augusto Manuel Casimiro Gamboa, alf inf (S. Tomé e Príncipe, 1944 - Guiné, 1967)






1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.


Morais da Silva foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar. É membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 784, desde 7 do corrente.

Sobre o alf inf Augusto Manuel Casimiro Gamboa temos seis referências no nosso blogue (**).

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(**) Vd. também poste de 28 de dezembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18149: In Memoriam (309): Alf inf QP Augusto Manuel Casimiro Gamboa, CCAÇ 1586 (Piche, Nova Lamego, Canjadude, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, 1966/68), nascido em São Tomé , morto em combate, em 14/12/1967, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego (José Martins / Virgílio Teixeira / António J. Pereira da Costa / José Corceiro)

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20039: Blogoterapia (292): Os Impérios (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)



1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 4 de Agosto de 2018:


Os Impérios

Hoje acordei com uma dor de cabeça ligeira mas desagradável. Quando isto me acontece vou andar alguns quilómetros no Parque da Cidade e esse estado de espírito maléfico e doentio tende a desaparecer ou pela influência do ar livre e da natureza, ou talvez por causa do aquecimento, que dá o exercício físico, que obriga o sangue a circular melhor e activa neurónios cerebrais que estavam adormecidos.

Fui fazer essa caminhada matinal e já no regresso aconteceu-me o seguinte percalço:
Numa rua não muito distante de casa vi uma gaivota a voar entre algumas casas e como já a tinha visto em dias anteriores, decidi parar para verificar se haveria alguém que lhe abrisse uma porta ou janela para lhe dar de comer. Não vi nada, continuei o meu caminho mas logo que virei costas ela fez voo rasante sobre a minha cabeça e tocou-me com os dedos das patas nela. Fez mais três voos rasantes mas eu como já estava prevenido, quando a sentia próxima levantava o punho para a atingir, se ela se aproximasse demasiado.
Os antigos romanos rotulavam alguns dias como nefastos, que para eles, eram dias azarentos, nocivos, sombrios, tristes.

Para sublimar outras adversidades que entretanto me aconteceram, falarei da angústia de viver. Li alguns existencialistas, "A Náusea" de Sartre, o mestre dessa escola filosófica, "A Manhã Submersa", entre outros, de Virgílio Ferreira que talvez me tenham dado alguma capacidade para resistir ao pessimismo.
Arthur Shopenhauer o filósofo do pessimismo, dizia: "a vida é trabalho, é dor" e assim se defendia ele dos dias nefastos. "Quem nunca pensou em subir à torre mais alta da terra, para se lançar dela, descobrir a sensação de liberdade desse voo, sem se preocupar com o fim que o pode esperar", não sei se o pensei ou se algum poeta louco o escreveu.

Quando os nossos desgostos são muito prosaicos, mais vale abrigar-nos no guarda-chuva das escolas filosóficas que têm a virtude de integrar os nossos males particulares em pandemias universais . Todos temos uma filosofa de vida que nos orienta, que pode estar dentro de alguma religião ou fora de todas elas. Os antigos romanos, pelo grande império que criaram, estão na base da formação da Europa moderna. Tendo aproveitado grande parte do saber dos egípcios, gregos, fenícios, judeus, e doutras civilizações antigas de povos que habitaram as margens do Mediterrâneo.

Nós europeus retalhados em muitas nações que têm tentado alguma união com muita dificuldade, somos os herdeiros do Império Romano e dessas civilizações. Roma foi um Império imenso, maior do que a Europa do Mercado Comum. Talvez um dia explique porque me fascina.

O Império Português também foi imenso, criado através dos descobrimentos, espalhou-se por terras longínquas de todo o Mundo. Nós fomos os seus últimos soldados, os que o abandonamos, os que o perdemos, os que não o soubemos defender. Quando nos fardaram e armaram, o Império já não tinha defesa possível e o velho ditador, por maldade, quis-nos dar essa responsabilidade.

Este texto desdobra-se em dois mas por todo ele perpassa o tédio, o cansaço, a apatia, o fantasma da derrota.

Estou cansado da guerra, há já cinquenta anos que convivo com ela
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19456: Blogoterapia (291): Graças à vida... e ao nosso blogue (Virgílio Teixeira / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P20038: Escritos do António Lúcio Vieira (2): De novo o tempo se quedou... (Excerto do livro "O Mouro da Praia da Foz")


Guiné > Região do Cachei > Rio Cacheu > c. 1966/1967 > Destacamento de São Vicente, ligando Bula a Ingoré.  Uma LDM [, a 308,] da Marinha fazia a cambança do rio Cacheu. Na foto, o Lúcio, à direita, com o Miranda e outro militar.

(...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente- (...) O Machado era um dos vários exemplares da Companhia [, a CCAV 788 / BCAV 790, Bula e Ingoré, 1965/67], com aptidões variadas. Uma delas era exactamente a apetência para dar nas vistas. Representava, como poucos, as cenas mais desconcertantes que possas imaginar. As vítimas, muitas vezes, eram os "maçaricos" das Companhias que "estagiavam" connosco, tanto em Bula, como depois em Ingoré.

[...) Trata-se de uma barraca do pequeno destacamento da Marinha que ali assegurava a manutenção da LDM que fazia a travessia do rio. Vejam-se mensagens e os "autógrafos" que a rapaziada lá ia deixando, "grafiatadas" nas paredes"! (...): "Visite o hotel Bandalho",  "LDM 308 C/M Rego", "Coruche, 31-1-66", Parque de Nudismo"...

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Carta da Província (1961) > Escala: 1/500 mil > Posição relativa de São Vicente, no rio Cacheu entre Bula e Ingoré. Hoje há uma moderna ponte, de tecnologia e construção portuguesas, em São Vicente, no Rio Cacheu, É a chamada "euroafricana" (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana). Início da construção construção em 2007.


Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana), em betão armado, com 670 metros de comprimento, inaugurada em 2009. A construção esteve a cargo da portuguesa Soares da Costa.

Fotos do geólogo e fotógrafo Pedro Moço, autor do blogue "Construção da Ponte de S. Vicente - Guiné.Bissau" (com a devida vénia).


António Lúcio Vieira, ex-fur mil,
CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67)
DE NOVO O TEMPO SE QUEDOU - Nenhum acto é mais irracional que a morte de um ser humano às mãos de outro (**)

por António Lúcio Vieira (***)

Os contornos alaranjados, de um sol que prometia calcinar, surgiram por entre as copas do mangal. A um sinal do guia, a coluna parou. Embora soprasse uma brisa fresca, naqueles derradeiros dias da época das chuvas, quando as temperaturas se tornam impiedosas, os corpos transpiravam abundantemente, como resultado da longa  caminhada nocturna, de muitas horas. Por isso parámos.

Daí a pouco – diziam-nos a experiência e os sentidos – as aves acordariam com o som infernal das rajadas e rebentamentos e nenhum homem podia estar fisicamente cansado, quando entrasse no mortífero jogo. olhámos uns para os outros, em busca de reacções, mas os rostos denotavam a mesma frieza e impassibilidade de tantas outras ocasiões anteriores.

Estávamos, “apenas”, mergulhados em mais uma operação de assalto a um reduto inimigo, desta feita na região de Zinguichor, na linha de fronteira com o Senegal. Só isso. E isso era o que de mais vulgar nos podia acontecer, naqueles estranhos dias, no mato húmido e ardiloso da Guiné. Havia já tanto tempo que vestíamos a pele de guerrilheiros experimentados, que as recordações dos dias banais quase se haviam desvanecido. Porquê preocuparmo-nos agora com um acontecimento, tão aparentemente banal, como pode ser um desafio à morte?

A guerrilha transformara-se, com a rotina permitida pelo tempo, num indelével estigma da nossa existência: um poderoso e inebriante elixir, que nos provocava os sentidos, com desusado vício, e uma quase constante sensação de embriaguez. Tratava-se, afinal, de mais um banal desafio às nossas capacidades e nenhum de nós sabia porquê, nem de que modo, se recusam assim os levianos desafios de vida e morte. A voz do capitão soou no AVF, num aviso sussurrado e lacónico: “Entrámos na zona do objectivo. Máximo silêncio, progressão fantasma”.

Lentamente, com mil cautelas, de olhos e sentidos despertos, recomeçámos a caminhada, agora medindo os passos e as sombras, já de armas em riste e prontas a  iniciar acção de fogo. À frente a atrás da coluna, sentiam--se os olhares de muitas dezenas de homens perscrutando a barreira verde-densa, que ornava as margens da picada, sinuosa e atapetada de ramos e folhas secas. Da progressão de mais de centena e meia de militares, apenas pairava no ar um breve quebrar abafado, provocado pelas folhas secas esmagadas pelas botas de lona.

O pesado silêncio que se abatera sobre a mata – dizia-nos o saber adquirido – não augurava nada de bom. Cherno, o experimentado guia fula, sábio na leitura de pistas e sinais, agitava-se, inquieto e olhava-nos, a espaços, com uma estranha expressão que nunca antes lhe vira. Um pouco adiante, ao dobrar um pequeno renque de cajueiros, a testa da coluna entrou em zona menos arborizada, pejada de mato rasteiro e bordejada por um pequeno mangal. Bruscamente, uma estreita barreira de capim anunciava o fim da savana. À nossa frente, em semicírculo, perfilava-se de novo a mata densa, de árvores enormes, de musculados troncos. Entre a parede de capim e a fronteira da mata, abria-se uma extensa clareira, demasiado extensa e aberta, como as suspeitas e o temor que nos assaltaram.

Quando as primeiras rajadas de pistola-metralhadora acordaram o silêncio, lançadas raso ao solo por duas sentinelas entrincheiradas em abrigos individuais, os homens da  frente, na testa da coluna, atingiam a orla da mata. Era uma ratoeira. Apercebemo-nos da situação no primeiro instante, quando o fogo inimigo começou a esventrar o solo à  nossa volta, abrindo, com incessantes rajadas, caprichosos sulcos mortíferos, como bichas-de-rabear, que nos zurziam aos ouvidos, se infiltravam enfileiradas no chão, quais formações de formigas e nos contornavam os corpos deitados, como se batucassem uma ritual dança de morte.

A mata à nossa frente abria-se em apertado circulo e o inimigo acoitava-se aí, em todo o redor da “ferradura”, a coberto dos trocos espessos e, lá no cimo, dissimulado na ramagem frondosa das imponentes árvores centenárias. No meio, desprotegidos na calva clareira que a mata envolvia, estávamos nós. Expostos e vulneráveis.

O matraquear medonho das armas esboçava uma visão de apocalipse, abalando-nos o âmago e acordando-nos de novo para a eminência do perigo que, em tantas ocasiões semelhantes, de imediato nos tornava animais acossados. E era desse medo, estranhamente inconsciente, porém controlado, que germinava um quase sobre-humano, levianamente inevitável e incorrigível, desprezo pelo silvar das balas, com que, persistente e com demasiada eficácia, tentavam silenciar-nos.

Era imperiosa uma leitura serena da situação e uma tomada urgente de decisões, antes que os morteiros 82, dos artilheiros do PAIGC, corrigissem o ângulo e a Companhia de Infantaria, recém-desembarcada em Bissau – que nos reforçava a retaguarda, naquele que foi o seu baptismo de fogo – se visse envolvida pelos experimentados guerrilheiros guineenses.

O capitão mandou assim avançar o grupo de assalto “Os Dragões”, para envolvimento pela direita, enquanto me ordenava que deslocasse, pelo flanco esquerdo da ferradura, os homens dos “Craques”, numa tentativa de espartilhar os elementos mais avançados do inimigo.

À minha frente, o Jaime, um dos mais hábeis artilheiros do meu grupo, praguejava com a Dreyse, que se encravara, enquanto, muito perto da minha posição e à ilharga dos homens sob o meu comando, o recém-transferido Furriel Miranda, surpreendentemente calmo, acendia um cigarro e percorria com o olhar as copas das árvores, em busca de alvos. Impressionava a frieza e domínio daquele moço cabo-verdiano, serenamente sorridente e despreocupado.

Do interior da mata, ceifando capim e descarnando arbustos, soavam novas rajadas, por entre as quais se distinguia, com enervante nitidez, o cantar irritante de duas metralhadoras ligeiras, estrategicamente instaladas nos flancos da mata. A escassos metros dos homens do meu grupo, o “Aranha”, artilheiro-mor dos “Dragões”, procurava raivosamente silenciar uma delas, à morteirada – com o morteiro 60 abraçado junto ao sovaco, em posição de tiro tenso – e com a destreza e o sangue frio que toda a Companhia lhe reconhecia.

Ao segundo disparo, a metralhadora suspendeu o matraquear e, como que obedecendo a um sinal, todas as armas, de ambos os lados do campo, se calaram. Um manto impressionante de silêncio desceu na mata e envolveu tudo e todos. Olhei em redor os homens do meu grupo, em busca de feridos. Ilesos, dispersos pelo chão, acoitando-se à protecção de troncos caídos, ou nos pouco numerosos morros de baga-baga – altas formações de rijo barro, construídas pelas vorazes colónias de formiga salalé – rompiam com o olhar a densidade da mata, tentando adivinhar as sombras e os segredos, que se aprestavam para um confronto que, do outro lado do bosque, se suspeitava persistente e se tornaria, se necessário, desprendida e pacientemente longo.

Sentia-se, em muitos daqueles jovens militares, uma inabalável decisão, uma quase  teimosa valentia, denunciadas pela estranha tranquilidade nos rostos e nos gestos. Homens, tão arreigadamente decididos, quase sempre aldeões, tão cedo e tão abruptamente arrancados ao conforto materno, viam-se movidos, quantas vezes sem sequer entenderem princípios e razão, para as malhas de obstinados interesses, tão distantes e desligados dos sonhos de futuro, com que, no dia-a-dia, alimentavam a pacatez da arrastada existência, que ao povo humilde coubera em sorte.

Quase sempre, também, sem um gesto de revolta, sem uma palavra de raiva, sem um arredar da barricada, sem comida e sem água, tanta vez, sem uma lágrima de desespero. Sem pernas, sem braços, quantos deles; sem futuro nem esperança: outros ainda sem vida.

Alguns metros atrás, no flanco direito da orla da mata, o furriel enfermeiro, irrequieto madeirense, gracejava, enquanto acudia ao braço do Cabo “Mané”, riscado por uma bala, felizmente sem sorte. Mesmo ali, enquanto dispersas salvas de rajada, mantinham vigilantes as forças em confronto, o funchalense Ilídio – meu particular companheiro de ócios e perigos – mantinha o apurado e incorrigível sentido de humor, que o distinguia no conjunto da Companhia, enquanto se entregava à nobre tarefa de sarar os corpos dos homens no terreno.

Escolhi esse momento para me levantar e correr para um abrigo melhor, que vislumbrara pouco antes, formado por um tronco caído, junto a um trilho, trinta metros  adiante. Mal me havia erguido do chão quando, de uma árvore próxima, saiu uma curta rajada e depois outra mais longa. A primeira cravou-se no extremo do tronco onde antes me abrigava: a segunda, alguns metros adiante, levantou um sopro de poalha acastanhada, quando se cravou num morro de salalé, onde um dos homens do meu grupo pouco antes se havia recolhido.

Corri a trintena de metros, em busca de melhor local para me acoitar, enquanto disparava pequenas rajadas para as copas de duas das árvores, de onde me visavam. Mas os meus disparos já não se ouviam, confundidos na macabra sinfonia do estouro das muitas armas dos rapazes da frente. Recomposto, o “Mané” aprontara já o morteiro 60 quase na vertical, soltando-lhe, logo depois, uma granada. Segundos volvidos, o projéctil mergulhava na copa do bissilão, fazendo saltar ramos e folhas, pedaços de tronco, carne humana e metal.

Depois, o silêncio abateu-se de novo. Pelo ANGRC9 a troante voz de tenor do capitão perguntava se os T6 estavam demorados. Respondeu-lhe o comandante da pequena esquadrilha, avisando da chegada do apoio aéreo ao objectivo em cerca de três minutos. E pedia coordenadas para o lançamento das bombas. No alto, sobrevoando  a zona, a bordo da pequena Dornier, o comandante de batalhão informava: “Abutres na zona”. O Poiares afastou, por momentos, o ouvido do AVF, olhou-me e gritou: “Estão a chegar os aviões. Ouvi agora no rádio”.

Não tardou o som tonificante dos motores dos dois T6 da Força Aérea. Localizado o alvo, picavam, em sucessivas passagens sobre o denso bosque, com manobras de voo rasante, libertando das asas cargas mortíferas, que afundavam crateras e mutilavam árvores e homens, enquanto as armas ligeiras, dos efectivos do PAICG, disparavam descoordenadamente sobre eles, tentando abatê-los. Tudo em redor pareceu eclodir, num apocalíptico derrocar da própria natureza e das vidas que ali se acoitavam.

Respirámos fundo, por escassos momentos. Aliviados de munições, os Harvard T6 rumaram à base em Bissalanca, deixando no seu rasto, para além de sementes da morte, um estranho e cavado silêncio. Pelo rádio chegou o aviso de que as munições  dos “Dragões”, que ocupavam a frente da flecha, ameaçavam esgotar-se. A uma ordem do capitão, o meu grupo e o do Furriel Miranda avançaram. Possuíamos um resto de munições e era-nos ordenado que reforçássemos a vanguarda, na zona mais próxima da primeira linha da guerrilha africana, dissimulada na mata. Cerca de trinta homens apenas, naquela ponta da flecha e uma, preocupantemente reduzida, reserva de munições. Ninguém, no seio dos dois pequenos grupos de assalto, queria pensar no que aconteceria quando, balas e granadas, do nosso escasso grupo de homens, se acabassem.

Éramos, nas circunstâncias, a derradeira esperança de romper a passagem e fazer recuar a força sitiante, após horas de confronto, sem avanços, nem vislumbre de saída daquela armadilha em que, mesmo após a eternidade de uma já longa experiência de guerrilha, havíamos ingenuamente caído.

Algures, já em “chão francês” – como ainda, muitos anos após a independência, era apelidado o território senegalês – na orla da densa floresta, por entre pragas e gritos, sentíamos a movimentação dos homens acoitados na mata, deslocando apressadamente para a retaguarda, nos subterrâneos da base de Zinguichor, situada a escassas dezenas de metros, os mortos e os feridos, que a acção conjunta das forças no terreno e os aviões bombardeiros haviam causado.

Era aí, na referenciada base, agora estrategicamente instalada centenas de metros para o interior, em recém-construído conjunto de instalações e estreitos corredores, dissimulados no subsolo, onde não faltava um improvisado hospital de campanha, que se havia apontado o objectivo da missão. E era a segunda vez que as nossas forças demandavam o local, meses antes arrasado, aquando de uma primeira incursão à estratégica base inimiga.

Algures, alguém pedia desesperadamente um helicóptero, para evacuação de feridos. Na “DO” de comando, que sobrevoava a zona, estava-se por certo a pedir à torre de controlo de Bissau o apoio aéreo, porque, durante breves minutos, nenhum som se ouvia no auscultador do meu rádio. Quando o silêncio pouco depois foi quebrado, a voz serena do comandante Calado restabelecia o contacto, informando que o heli se dirigia a norte, rumo ao objectivo, na zona de fronteira onde nos encontrávamos.

Logo depois vi o Morais, em terreno aberto, deitado sobre um ensanguentado braço esquerdo, que a outra mão amparava. Quando ao longe se destacou a silhueta do helicóptero, chamei o cabo enfermeiro, indiquei-lhe a posição do ferido e ordenei aos homens que avançassem para a língua de bolanha à nossa esquerda, onde se montaria a segurança para a aterragem. Era um local ornado de palmeiras esguias e de frondosa ramagem, alto capim e arbustos flexíveis, que dificilmente se deixam quebrar. Não era a posição ideal para o pouso, mas a urgência da evacuação de, pelo  menos um dos feridos e a proximidade das forças adversárias, não permitiam escolha melhor e mais segura.

Metros atrás, no interior da “ferradura” da clareira, dispersas pelo chão, o grosso das nossas forças vigiava. Estava-se, claramente, numa fase de mútuo estudo de estratégia, durante a qual apenas pequenas rajadas, ou tiros isolados, quebravam o silêncio e mantinham atentos os atiradores de ambos os lados. O mato estendia-se a todo o espaço que a vista abrangia, da orla do pântano à densa floresta ao longe, que uma névoa difusa só agora, várias horas após a nossa chegada, aparentava dissipar-se. Aproximávamo-nos de meio do dia e o chão queimava. Reflexos castanho-avermelhados rodopiavam ao sol, espelhavam nos caules de capim e nas águas lodosas do braço pantanoso da bolanha.

Quando o heli, numa súbita elipse, se aproximou do solo, o vento levantado pelas pás do hélice envolveu-nos numa onda de frescura. Do interior do aparelho saíram o mecânico e uma, estranhamente calma, enfermeira paraquedista. Escassos minutos após o pouso, enquanto da mata os homens do PAIGC metralhavam a zona onde nos encontrávamos, numa tentativa de abatê-lo, o aparelho elevou-se no ar, num quase acrobático salto, brusco e veloz, levando a bordo um primeiro grupo de feridos. Antes, porém, deixara-nos o mais desejado dos presentes: garrafões de fresca água e cunhetes de munições de G3, de Dreyse, de morteiro e bazooka.

Decorreu uma silenciosa eternidade. As munições recém-chegadas distribuíam-se pelos homens, em breves lances de corrida, quase sempre acompanhados por curtas  rajadas de cobertura. Entretanto, quase sem nos apercebermos, o Alouette III regressava, terminando a evacuação dos feridos. Concluída a missão de segurança, atravessámos, em sentido inverso, a estreita língua de pântano, agora sob uma mais cerrada barreira de fogo da guerrilha. As granadas de morteiro caíam à frente e atrás de nós, erguendo cogumelos de lodo e água pestilenta e poupando, milagrosamente, o punhado de homens, que me seguiam de volta à zona da clareira que nos fora destinada.

A bolanha ali era pouco profunda, porém o facto de estarmos enterrados nela até quase aos joelhos e com as botas encalhadas no fundo lodoso e movediço, criava-nos  uma incómoda sensação de aprisionamento. De pé, quase sem capacidade de movimentos e à mercê das balas que, do interior da mata encetavam nova flagelação, tentávamos desesperadamente encetar uma resposta. “Tá um gajo de camisa verde naquela árvore, meu furriel!”- gritava o China, enquanto disparava na direcção do atirador furtivo, que se dissimulara com a ramagem, na forca formada pelo tronco. Na frente, bem no interior da ferradura, já se respondia de novo às armas do PAIGC, que pouco depois voltaram ao silêncio.

Era, porém, um silêncio pesado e angustiante, que nem as aves ousavam quebrar. um silêncio que se elevava no espaço, que parecia subir velozmente rumo ao céu, como se fosse uma maldição, ou uma prece. Mas foi efémero. Daí a pouco, por entre gritos e pragas, as forças inimigas voltaram a disparar.

Abateu-se o céu naquela antecâmara do inferno, dividida pelo espaço aberto da clareira e a fiada de árvores que escondiam a floresta. o estrondo enorme de todas as nossa armas e a consciência de que não estávamos dispostos a ceder, deve ter abalado a moral dos homens na mata porque, pouco depois, os sentimos recuar. Sabíamo-lo porque os tiros nos chegavam agora mais dispersos e distantes.

Entretanto, reabastecidos, os aviões voltaram a rasar o terreno, lançando, uma e outra vez, pesados projecteis, que abalavam a mata até às vísceras. Era uma estranha e assustadora melopeia, que se esbatia, lá longe, em ondas sucessivas. o Micas olhava os enormes pássaros de fogo, com uma expressão quase patética, enquanto gritava, eufórico, naquele seu jeito de dizer as coisas que, mesmo ali, às portas do inferno, arrancava sorrisos aos companheiros.

Era o espectáculo da morte, no seu apogeu, traduzido em nós como algo de imponente e cruelmente tonificante. O nosso primeiro objectivo era a própria sobrevivência e os T6 estavam, decididamente, a contribuir profundamente para a conseguirmos. Era isso, afinal, a premissa de todas as guerras, dos grandes conflitos às curtas escaramuças; das legítimas, onde se defende o berço, o sangue e os haveres, às movidas por obscuros interesses de hegemonia e de conquista.

Enquanto os T6 cumpriam o ritual do extermínio, em bombardeamentos retaliatórios, sentado junto a um morro de baga-baga, um cigarro tremulando entre os dedos, todo esse incómodo desfiar de ideias me atormentava a mente e repercutia no cérebro, quase tanto como o estrondo das bombas lançadas pelos Harvard, a escassos cem metros do meu improvisado abrigo. Quando nos levantámos para o assalto, cumprindo a clássica acção de busca e recolha na mata, após o som dos aviões se ter perdido para os lados do Cacheu, o equipamento pesava-nos como chumbo. A lama e o lodo,  colados ao camuflado e ao corpo e a quase incapacidade de raciocínio, inspiravam-nos laivos de inquietante irracionalidade e desvario.

E isso notava-se bastante mais quando riscávamos os olhares uns pelos outros, sem nos atrevermos a fitar demoradamente os companheiros de missão, de infortúnio, porém de sobrevivência. Autómatos, como muitos de nós pareciam ter por condição, naqueles decisivos momentos da existência. Filhos retirados às mães, perdidos num turbilhão fervente de decisões e tratados e manobras, de uma política que nenhum aprendera a ler e da qual muito menos sabia os reais motivos.

Entrámos, cautelosos, afoitando a densidade da floresta. A frescura provocada pelas sombras da mata colidiu connosco, fazendo-nos sentir, por breves instantes, seres humanos. Mas foi curto o fragor da sensação. A visão apocalíptica dos corpos mutilados, ou totalmente desfeitos, por onde o sangue ainda abundantemente se derramava, regando a terra e ceifando o que de vida lhes restava, ribombou aos nossos olhos.

Ali nos confrontávamos com o cru dilema e nenhum de nós era capaz de discernir o que os nossos olhos viam: se peças de uma máquina desfeita pelo homem, se o próprio homem esmagado pela máquina. No fundo, para as estatísticas oficiais, tratava-se apenas de, fria e levianamente, inimigos abatidos, números para constar nos relatórios, com que os feitores da guerra – habitualmente alheios às dores e traumas dos conflitos – geriam a sorte dos que matam e dos que morrem.

Autómatos, como então pensei, sorriamos, incredulamente renascidos, esquecidos já de perigos e canseiras, mesmo na presença daquela tão cruel e irreparável visão da morte. No chão, cadáveres ou moribundos, deixados para trás, jaziam homens cujo crime se resumia à ignomínia de terem nascido na sua própria terra, a uma teimosa vontade de liberdade, de viverem e morrerem naquele chão que os parira e alimentava, livres de opressões e de destinos alheios.

A acção da guerrilha, sabíamo-lo pela propaganda do movimento, não visava o povo dominador e menos ainda o dominado, que aceitava o jugo, o alvo eram os teimosamente cegos e insensíveis poderes instalados em Lisboa, que rodeavam de grilhetas todos os pulsos e todos os destinos do povo. Pior; dos povos. Sofria-se, “do Minho a Timor”, um longo e desgastante cativeiro, disfarçado, além fronteiras, pelo folclore e pela psicossocial. “Não voltaremos a ser um campo de trabalhos forçados”,  ecoava nas palavras serenas, determinadas e contidas de Amílcar Cabral.

Açoitavam-nos a mente as avisadas palavras dos líderes da guerrilha. os panfletos de propaganda, recolhidos nas tabancas, ou de mistura com o espólio capturado em bases inimigas, açoitavam-nos os olhos e as palavras transmitidas via rádio, a partir de Conacri, invadiam-nos as horas de sono e latejavam-nos na mente, tanto quanto as granadas, que se abatiam sobre a débil moral dos homens, nos esventravam abrigos e casernas e nos minavam a resistência. Que luta aquela e o que fazia, naquela distante terra de outras gentes, a juventude de um país que apenas ambicionava viver solidária e, se possível, feliz. E em paz.

De casa, bem longe, chegavam aerogramas; palavras pungentes, escritas com tinta de lágrimas, linhas de trémula caligrafia, por entre as banais consultas sobre a saúde e o bem-estar, no habitual tropel de interrogações, se queria saber se “já cá vens passar o Natal?”.

Nos homens quase em fim de comissão, prenhes de incertezas, vazios de destino e de futuro; homens de brandos costumes, cansados de guerra e de medos e raivas, os silêncios, mais do que gritados nas entrelinhas das cartas, sentiam-se nos rostos e nos olhares vazios, nos desalentos, de quantos sabíamos não poder responder a muito do que, na longínqua e descuidada “Metrópole”, nos perguntavam os do nosso sangue e os do nosso afecto: os da nossa raça.

E era maior o sentimento de frustração quando, junto às perguntas para as quais, de todo, desconhecíamos resposta, se juntavam as respostas que a prudência aconselhava a evitar. Tal como o amor, imortalizado por Camões, também as palavras, escritas ou faladas, chegadas aos ouvidos atentos dos que, na sombra, “zelavam pela defesa do Estado”, mesmo ali na antecâmara da morte, eram algo que soava como um perigoso “fogo que ardia sem se ver”, uma geração inteira, o sangue novo, generoso e  fértil da juventude de um país, levado em porões de navio para terras que não sabia, sofria amordaçado a sina de ser povo e os caprichos de quantos, muito antes ainda de ter nascido, lhe traçaram o destino e lhe ameaçaram a existência e o futuro.

Pensava-se em tudo isso, numa amálgama confusa de sensações e sentimentos, de razões e motivos, que nenhum de nós, em verdade, conseguia conscientemente entender. Embarcaram os melhores filhos de uma nação em porões de barcos e eles foram. Decretaram-se neles ordens de matar ou, heroicamente morrer. E os filhos do povo, que já tanto sofria na carne a agrura de ser cativo na sua própria terra, partiram, tão espiritualmente vulneráveis, como galhardamente afoitos. Matando, muitos deles; morrendo, ingloriamente, outros tantos. Crianças, há tão pouco, tantos de nós por ali errantes, por entre os nevoeiros da vida, procurando nortes e caminhos, sem saber, quantas vezes, que passos encetar em busca de futuro e sorte.

Pensamentos que, tantos de nós, nos rincões da branda terra portuguesa, ou nos densos e ardilosos matos africanos, sentíamos ecoarem nas mentes, martelando com desusado estrondo as horas de vigília das longas noites de atalaia. ou furtando os pés aos segredos, em longas progressões nocturnas no terreno, semeado de mistério e incertezas. As nossas noites eram, havia muito, noites sem sono, noites sem estradas nem destinos. Sem luar, ou um farol: noites, sequer, sem certezas de haver amanhecer.

Naquele discreto espaço, anichado ao Golfo da Guiné, que a imprensa estrangeira tenebrosamente apelidava de “Vietname de África”, parcela de território pouco mais vasta do que a continental superfície alentejana – escassos 36 mil quilómetros quadrados de chão pantanoso, onde as febres mortais abundam; nesga de África espartilhada pelos limites do moderado Senegal e da hostil República da Guiné-Conacri – ali mesmo, perdido no abafado e castigador clima tropical, adiava-se o futuro de dois povos, distintos e distantes.

De um lado o sangue novo e válido de Portugal que, na mente e no corpo, sofria traumas, que as gerações seguintes não iriam poder sarar. Do outro lado do conflito, a juventude africana que, em recurso, de armas na mão, dizia ao secular colonizador que era tempo de assumir nas suas mãos os destinos do seu próprio povo e que apenas a ele cabia escrever o futuro da sua própria terra.

Já por todo o mundo civilizado as potências colonizadoras tinha escutado e entendido as legítimas aspirações do martirizado continente africano. Menos em Lisboa, onde repousava o autismo e a alma de todo um povo se vestia de luto, em cada barco que chegava, em cada medalha póstuma.

Vinha-nos à mente tudo isso enquanto, perscrutando a ardilosa floresta, invadimos a proibida barreira da fronteira senegalesa. Para além dela, em zona tabu, a base inimiga desalojava, apressadamente, para o interior, os mortos e feridos que, ao longo daquela longa manhã, os guerrilheiros conseguiram evacuar. Numa rápida acção de busca e recolha, capturámos armas e documentos e encetámos o regresso. Não era aconselhável prolongar o avanço, já que o território que pisávamos era soberano e o Senegal não se apresentava como opositor declarado de Portugal. Nada mais havia ali a fazer. As duas centenas de homens, autómatos macerados das duas companhias no terreno, estavam exaustos após seis terríveis horas de fogo.

Sobreviver a um dia assim, dilacera na alma cicatrizes, tão dolorosamente insanáveis e tão eternamente demoníacas, que nenhum homem, nascido e moldado no barro dos afectos e da razão, espiritualmente lhe resiste. Algures, o poema recorda: “nunca se regressa apenas vivo / ainda que a guerra finja não matar”.

Ouvem-se os tambores da guerra, por uma vez, “e nunca mais se retoma a inocência / nem a vida”. E nenhum bálsamo era, ainda assim, mais prodigioso do que a certeza que, para além do germinar dos sinistros e infindáveis pesadelos, arautos do ruir do humano, que nos enfeitiçara a existência, a epopeia da morte não lograva dissipar o pensamento de que podíamos, apesar de tudo, lidar com o inferno e a sombra da mortalha. o sol do meio-dia, que só então parecia ter despertado, espelhava-se a oeste num ténue cirro de nuvens, que se alongava em línguas poeirentas, como tempestades de areia e queimava, mais do que o sibilar das balas e o explodir das granadas, que nos haviam tentado o corpo.

Mas a ligeira brisa que se levantou de sul surgia como uma revigorante terapia de esperança, rasgando as fronteiras de um dia que se anunciava mais promissor e radioso, porque a vida nos devolvia aos recantos da alma, onde o espectro da morte, uma vez mais, se tentara dissimuladamente insidiar.

Depois, na penosa caminhada para sul, a coluna regressou, pelos meandros sinuosos da picada.

António Lúcio Vieira

In “O Mouro da Praia da Foz”  (Lisboa, Chiado Editora, 2014) (cortesia do autor) (****)
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Notas do editor: