Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Guiné 61/74 - P20028: Notas de leitura (1204): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (17) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2019:
Queridos amigos,
Começo pela nota curiosa de que há páginas de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota que coincidem com a história do BCAV 490, caso da descida de helicóptero de Arnaldo Schulz em território do Oio, um pouco antes do centro nevrálgico do Morés, é hasteada a bandeira portuguesa, o Comandante-Chefe manda transportar comida e algumas guloseimas para os homens que têm operação árdua pela frente e regressa a Bissau, os combates prosseguem. Tudo primorosamente descrito. Tinha chegado o momento de apresentar o talentoso escritor, alferes miliciano do BCAV 490, figura incontornável da literatura da guerra da Guiné. Agora está tudo a postos, houve um interlúdio quase sem bulha, festejou-se o Natal, o bardo tem a seguir muito que contar, vai começar a batalha do Como, sobre ela ficaram belos testemunhos, sobre ela se disseram grosseiras mentiras na propaganda que muito depois da guerra finda ainda eram propaladas como verdades inquestionáveis.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (17)
Beja Santos
“Quase todo o Batalhão
em Bissau a descansar
em Bissorã dois pelotões
ansiosos por voltar.
Do mato regressaram
as nossas companhias
e foi somente 20 dias
que estes homens descansaram.
Ano Novo e Natal passaram,
havendo grande reunião:
realizou-se um serão
para entregar alguns louvores,
e ouvindo alguns cantores
quase todo o Batalhão.
Em Bissorã se encontrava
o Hermenegildo Francisco,
comendo um bom petisco
junto a quem o rodeava.
O vague-mestre a todos dava
bom comer para almoçar,
uma galinha para jantar
e bebida à farta para quem queria.
E o amigo António Maria
em Bissau a descansar.
Grandes serviços desempenhou
o pelotão do senhor Alf. Segura:
a 7 de Dezembro com bravura
ao quartel dos bandidos chegou.
Muito dinheiro lá apanhou
e rádios roubados pelos ladrões.
Apanharam também munições
e minas anti-pessoal.
E em 63 pelo Natal
em Bissorã dois pelotões.
Em Mansabá sossegavam
os ataques desta vez,
e a 29 desse mês
para Bissau regressavam.
O ano de 64 principiavam
sem haver qualquer azar.
O amigo Baltazar
pouco tempo passeou
e para o Como tudo abalou
ansiosos por voltar.”
********************
O bardo dá-nos conta da atmosfera que preludia a partida para o Como, a distribuição dos dispositivos militares, dá-nos a atmosfera de uma aparente acalmia. O que nos proporciona introduzir aquela que considero a obra-prima da literatura da guerra da Guiné, “Estranha Noiva de Guerra”, é seu autor Armor Pires Mota, oficial do BCAV 490. Ainda hoje me surpreende como foi possível este romance publicado numa edição discreta, em 1995, ter escapado completamente seja à crítica seja aos antigos combatentes.
Em duas palavras, é um empolgante e raríssimo discurso carregado de metáforas em que a maior é a de uma via-sacra, o herói e narrador é Bravo Elias, que assim se apresenta:
“Eu, Bravo Elias, de nome completo José Joaquim Bravo Elias, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo, mas generoso das duas velhas recitando o seu hamedu-lilai, a heróica rapariga, ah a rapariga, e como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo da esquerda para a direita, todo o campo de tiro”.
Via-sacra em que o Bravo Elias arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações ou estações escolhidas por Deus: o confronto com o inimigo, os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se vai tornando delirante e dilacerante, a memória do herói, recorrente, é perpassada por vários passados, dão-lhe recordações para embates totalmente imprevistos.
Nenhum romance está tão centrado pela reconciliação, é um enredo em que a guerra atrai os opostos e daí ser-lhe implícita uma metáfora de paz, Bravo Elias arrasta o que resta do soldado Perdiz, encontra-se com inimigos e chega a Mansabá onde uma flagelação brutal nos dá a certeza que na floresta mais escondida ou no mais amplo dos destacamentos o horror chega a qualquer momento, e daí a elegia àquela fugidia noiva de guerra.
Como se escreve é primoroso, vejam-se alguns extratos:
“A marcha continuava. Mais enervante. Passámos além de Cai. Uma calabaceira enorme pontificava na aldeia deserta. Mais além as figueiras bravas e, a seguir, um labirinto naturalmente assombrado de medos e de bichos, humidade e fungos.
Seis outros elementos do IN visaram-nos. Tiros de espingarda e, mais adiante, um tiro de pistola, referiu o comandante mais tarde.
Malimorés foi atingida só o sol anunciava violenta fornalha. Silêncio que doía e enervava. Passava revista às palhotas, foi detida uma mulher cujas peles escorriam medos e suores. Estava junto do seu homem. Ela chamava-se Mala Seidi. O homem, cujo nome era de somenos, estava doente e tremia. Deixámo-lo tocado por um sorrido frouxo. Mala Seidi confirmava o que o prisioneiro havia dito. Ficámos, então, com a certeza de que as casamatas se achavam junto ao caminho que de Malimorés conduzia a Talicó. Um disparo de bazuca fez internar na mata oito negros. Armados e fardando camuflados.
Ali foi armada a defesa em círculo. Em círculo e ao largo. Enquanto isto era feito, foi pedido pelo ANR/PRC a eventual evacuação do negro ferido. O helicóptero chegou depois do meio-dia, quando o sol comia os miolos de todos. Sua excelência o Comandante-Chefe havia de chegar também noutro. Para bater o tacão naquele chão vermelho. Com uma bandeira nacional que ali foi hasteada. Tirou algumas fotos. Convenceu-se, o general, que tinha ganho aquela batalha, sem que soubesse o que havia de vir depois. Podia dizer até que já fizera a sua guerra, que não era nenhum maçarico. Tão entusiasmado ficou que mandou vir água, pão e guloseimas de Bissau para distribuir pelos soldados.
Pelas 11 horas, começou a ouvir-se o rugido de dois T6 que iam bater as zonas das casamatas. Enquanto isto, os soldados puxaram dos isqueiros. Atearam o fogo a cerca de sessenta palhotas.
Aproveitaram ainda para um rápido trago de cigarro. Corriam de um lado para o outro com fachos de capim a arder. Mas a verdadeira Malimorés, a dos aquartelamentos dos guerrilheiros, ainda não era ali.
Feita a refeição do meio-dia, engolida com uns bagos de medo à mistura, como era natural nessas situações, utilizando Mala Seidi, a velha que tinha a falha de três dentes, era intenção do comandante chegar às casamatas. O caminho era estreito e a mata era vestida de espesso arvoredo. Via-se pouco mais do que um palmo à frente do nariz. Um labirinto de estarrecer. O silêncio era compacto como terra. Só se ouviam estalidos na floresta, provocados pelo calor intenso. Suávamos como cavalos. O silêncio anavalhava os nervos. Entrar, lá se ia entrando, com todo o cuidado e vigilância. Sair é que não se sabia se tal ia acontecer”.
É em dura refrega que se vai perder aquele homem a quem Bravo Elias preiteará homenagem, um camarada jamais é deixado em terra alheia, deverá ser chorado pelos seus, enterrado no seu solo: “Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”.
Bravo Elias está cônscio do que o espera na via-sacra:
“Eu sabia que a jornada ia ser espinhosa. Avaliando as minhas forças, ergui os olhos ao céu e disse qualquer coisa como: ‘para Vós volto os meus olhos, em Vós confio, salvai-me, Senhor!’. Talvez breves versículos do Templo da Paixão, não sei”.
Iniciava-se o sagrado dever:
“A verdade é que era necessário meter-me ao caminho e com força bastante para resgatar o meu camarada aos matos, aos bichos e aos guerrilheiros. Porém, não deixava de me aperceber, em estilhas de sofrimento, que era uma coisa triste tudo aquilo, mas, ao mesmo tempo, sentia uma vaga e confusa sensação que também era, possivelmente, a coisa mais bela que me cabia em toda a guerra até àquele momento. Era restituí-lo à família, devolvê-lo à aldeia, nossa comum raiz”.
Há um parágrafo que muito me comove e a ele retorno com frequência, pelo seu fulgor de amor rendido a África:
“Os insectos, àquela hora, estendiam pela mata a sua zanguizarra solene e impetuosa como um rio de vozes frescas, rebentadas do chão. Mais longe, alguns macacos pincharolavam de festa, numa grulharia irritante e sádica, pois parecia que estavam a troçar de mim e do Perdiz. Com gestos obscenos. Pelo alto sarabandeavam muitos pássaros. Tantos, que era difícil chamá-los pelo nome. Do que eu gostava mais era do cacho-caldeirão, cores negras e amarelas, muito bonito. Mesmo assim reconheci, com a ajuda da rapariga, as rolas, claro, o barbilhão-amarelo, o pássaro-martelo, o zombeteiro, o palrador, a pomba verde, o beija-flor, o peito-lilás, tudo mais ou menos aves das galerias florestais, mas sem prestar grande atenção à ronda do colorido, às palavras que cada espécie ia debitando, eufórica de liberdade, sacudindo as asas num exemplar concerto de audácia e contentamento. Só eu jazia amarrado a um morto-vivo e à mata”.
O surreal, o sobrenatural, o realismo mágico vão tomando conta de todo o discurso da alucinante viagem. Momento alto da reconciliação dos homens é o encontro de Bravo Elias com Mamadu Keta, fumam o cachimbo da paz, ficamos a saber que aquele velho Mandinga aprendera a ler e a escrever na escola da missão sem prejuízo de ler e aprender nas tábuas de marabú os preceitos do Alcorão. Tinha dentro de uma mala o jornal “A Bola”, porque estava ali a fotografia de um negro importante, era o Eusébio. Mas a partida impõe-se, por obra e graça da ficção chega-se a Mansabá e nisto estoira uma flagelação destruidora, que vai deixar o mundo em destroços que Bravo Elias percorre, ainda a manhã vem longe, sendo o nevoeiro cada vez mais denso, leva na mão aquele cachimbo da paz que fumara com Mamadu Keta, tudo se irá recompor e ficará para todo o sempre a recordação daquela estranha noiva de guerra, dentro deste aglomerado de metáforas.
Neste preciso instante, o bardo inicia a sua toada sobre a batalha do Como, onde Armor Pires Mota escreverá belíssimas páginas, editadas no seu livro “Tarrafo”.
(continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 26 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20013: Notas de leitura (1202): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (16) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 29 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20018: Notas de leitura (1203): “Revolução na Guiné”, uma antologia de discursos, conferências, declarações do fundador do PAIGC; edição e tradução de Richard Handyside, 1969 (Mário Beja Santos)
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