sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 – P20029: Memórias de Gabú (José Saúde) (86): Paredes impregnadas de imagens de mulheres. Um lavar de olhos em tempo de guerra (José Saúde)





 1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

Paredes impregnadas de imagens de mulheres

Um lavar de olhos em tempo de guerra



Lá longe, num outro continente onde o calor humano superabundava, as mulheres passeavam a sua beleza feminina por entre uma multidão de seres terrestre que se deixavam encantar pelas virtualidades expostas em belíssimas formosuras. Senhoras jovens que, aliás, encantavam o mais singular cidadão do mundo que usufruía o prazer em ver o seu fino físico corporal ao vivo e a cores.



Mas, nas trincheiras da guerra os “duros” combatentes confrontavam-se com as representações virtuais que levavam o efebo rapaz ao êxtase. Num devaneio absoluto de um delírio meramente carnal, nós, militares cuja idade permitia resvalar para sonhos românticos onde proliferavam autenticas fantasias, deleitávamos os nossos instintos masculinos para a propagação de simples imagens em papel onde se visualizava o corpo, ou parte dele, de uma encantadora rapariga que transmitia efémeros desejos.

Nas paredes dos nossos insignificantes quartos impregnadas de imagens que vislumbravam corpos esbeltos de gentes femininas, bastava um lavar de olhos para os nossos potenciais desejos prosaicos virem à tona de memórias que pareciam perdidas na desigualdade de um tempo consumido pelos súbditos de uma guerra substancialmente desigual.

Pronunciei atrás a temática quartos, todavia, diz-nos a realidade, e é justo que o façamos, que muitos foram os camaradas que ao longo das suas comissões viveram em autênticos buracos escavados por eles próprios para salvarem a sua própria pele. Buracos desumanos feridos de conteúdos de bons sensos para todos os camaradas que porventura conheceram esses horrores em pleno campo de batalha.

Não conheci, felizmente, essa veracidade, porém, essa foi uma inequívoca certeza que muitos dos nossos camaradas estupidamente aguentaram, mas sempre hirtos aos terríveis momentos que a guerrilha amiúde impunha. Ficou, no entanto, a certeza de histórias contados por aqueles que souberam suportar as trevas de uma guerra que não dava folgas. 

Em Nova Lamego, Gabu, as fotos eram autenticas obras de arte estateladas em tapumes que transmitiam laivos de sexualidade a combatentes vencidos pelas distâncias físicas e que se sentiam carentes de uma visualização real onde a feminidade obviamente atraía o mais vulgar rapazote.

A guerra, no entanto, permitia implícitas circunstâncias que resvalavam somente pelo etéreo mundo de imaginação. Restava, por vezes, incorporar os nossos sentimentos sexuais no cosmos da fantasia. 

Este introito que ouso trazer a público é simplesmente a fidedigna razão de um camarada, tal como muitos outros, que enveredou por desmistificar a originalidade de uma foto que no seu todo invoca a certeza de sonhos deslumbrantes.

E se é verdade que a fatiota domingueira deste velho combatente deixava antever uma “escapadela” à tabanca para um “agasalhar” de instintos somente carnais, por outro lado pretendo deixar vincado que a originalidade das ditas imagens em papel, era algo que certamente proliferava em todos, ou quase todos, os aposentos de jovens envolvidos na guerra numa Guiné onde os espinhos personificavam a dor sentida pela perda de um camarada.

Hoje, tudo é passado e poucos são aqueles que se dignam, sob a sua própria pena, subscrever nacos de uma realidade histórica lusitana acerca da indelével infalibilidade que houve uma guerra recente que parece ter caído no mundo das trevas.

Nós, que por enquanto ainda fazemos peso à terra, lá vamos recordando imagens que geralmente nos tocam, porque pertencemos a uma geração onde a guerra nos apanhou em plena flor de idade e nos enviou para as frentes de combate.

Num intrínseco cruzamento de recordações como antigo combatente, é bom que nunca esqueçamos quem fomos, quem somos e que redundantemente seremos seres prontos a encarar o futuro com uma fugaz expetativa de ver o nosso passado simplesmente compensado. Pessoalmente duvido, como é óbvio, mas o amanhã é literalmente um mistério. Vamos apenas sonhando. 

É neste subtil e atento observar de imagens de outrora, que lanço um lavar de olhos em tempo de guerra para desferir um ataque de amizade a todos os camaradas que pisaram o solo guineense.

Somos eternamente o resultado final de uma peleja que jamais fora nossa e de uma sociedade cujo reconhecimento esbarra simplesmente no limbo do esquecimento. Ergam sempre as vossas vozes, não no muro das lamentações mas para quem de direito.



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

12 DE JULHO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19973: Memórias de Gabú (José Saúde) (85): "Exército" de abelhas (José Saúde)

1 comentário:

Anónimo disse...

Gaijas boas c'mó milho!... era o que ye faltava, camarada, no teu tempo, lá na parvónia da Guiné... Sou do Lourenºo Marques, aí sim... era outro marfim!

Zé Ferroviário do glorioso Clube Ferroviário de Lourenºo Marques, hoje do Maputo. Retornado.