1. Mensagem do nosso Camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviada em 28 de Fevereiro.
O FIM DO PRINCIPIO
No dia 26 de Dezembro de 1967, já depois de ter terminado a especialidade de operador de teleimpressor, passei à situação de licença registada, aguardando a convocação para a frequência do curso de sargentos [, CSM]..
No dia 3 do mês seguinte, cerca das duas da tarde, na repartição de assuntos militares da câmara municipal, recebi a ordem de marcha para CISMI, já quando um funcionário daqueles serviços se preparava para a ir entregar a minha casa, ou afixá-la à porta, caso não houvesse quem a recebesse.
Aguardava esta colocação a todo o momento mas tentava imaginar que a convocatória não viesse tão breve, na tentativa vã de travar a corrida do tempo.
Estava notificado de que me tinha de apresentar naquele mesmo dia (!), até às dezassete horas, em Tavira, no Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria [CISMI].
Tavira, Quartel da Atalaia > 2014 > Edifício onde esteve instalado o CISMI, até ser desactivado em 31/12/1975
© Luís Graça (2014)
Seriam cerca de três meses que eu iria permanece em Tavira, o tempo previsto para a especialidade de Transmissões de Infantaria, dividindo o tempo entre o quartel, o campo da Atalaia e o quarto alugado em conjunto com o Branco e o Bernardo em casa da D. Rosa, onde a filha, a D. Cesaltina, senhora dos seus cinquenta anos, nos presenteava com café quente nas noites em que tínhamos instrução nocturna.
Aprendi uma nova linguagem – o alfabeto fonético – que seria a linguagem, não só em campanha, mas também ainda uso, agora na vida civil, quando preciso de soletrar palavras.
Aqui, eu e os outros elementos da especialidade, aprendemos a utilizar os rádios, já nessa altura obsoletos, mas que, nos momentos de aperto quando a tropa se encontrava no mato, em operação ou em quadrícula, eram a única via que nos ligava ao mundo, isto é, nos ligava com as unidades terrestres ou aéreas, que nos podiam prestar apoio.
Aqui aprendemos a trabalhar com sistemas de cifra, que nos permitiu codificar e descodificar as mensagens, muitas delas que nos davam as noticias mais preocupantes, ou para transmitirem para os escalões superiores o resultado das operações, como a noticia, que eu próprio codifiquei, do afogamento no Rio Corubal, junto ao Cheche, na Guiné, de quarenta e sete militares, quando, em 6 Fevereiro de 1969 se processou a retirada de todas as tropas estacionadas em Madina do Boé.
Aqui, durante a semana de campo, em plena serra algarvia, tivemos de servir como IN (inimigo) às companhias de atiradores que, caso nos capturassem, nos tratariam como “prisioneiros de guerra”, obrigando-nos a transportar o material mais pesado que esses grupos estivessem a utilizar.
Foi durante esses exercícios que, lançados no monte, flagelando os pelotões de atiradores e fugindo para que não nos capturassem, que eu e o meu grupo encontramos refúgio no cimo dum monte, dentro de uma casa, fechando a porta por dentro.
Ouvimos a “tropa” a chegar e a passar em revista todas as habitações.
Como a dependência não tinha janelas, um ficou junto à porta tentando ouvir as ordens dadas pelo comandante, afim de adivinhar as movimentações no exterior.
Alguém da patrulha tentou abrir a porta do local onde estávamos escondidos e, verificando que a porta se encontrava fechada, chamou a “nossa protectora”, que se desculpou, junto do Capitão, dizendo que o marido fora à vila e levara a chave no bolso.
Acabava de entrar no jogo do “inimigo”, do qual não podia sair defraudada.
O disfarce não podia cair por terra. Havia que encontrar solução para duas situações que surgiram: cheirava a queimado e ouviu-se o choro de uma criança.
Já havia tarefas para todos. Um estava de ouvido à escuta, junto da porta, seguindo as movimentações no exterior; outro foi para a lareira evitar que a sopa que estava ao lume, numa panela de ferro de três pés, se queimasse; o outro ficou com a missão de embalar a criança, que adormeceu encostada ao peito de um de nós, com a G3 em bandoleira.
Algum tempo depois, com toques suaves na porta, fomos avisados de que a “tropa” partira. Havia que partir também, e fazer silêncio sobre o esquema utilizado. No curso seguinte poderiam haver alguém com necessidade de usar o mesmo esquema ou outro semelhante, e não podiam ser descobertos.
Mais tarde, e em campo bastante aberto para evitar qualquer surpresa, almoçámos a ração de combate que nos tinham distribuído, mas o cheiro que eu sentia não era o das salsichas aquecidas na própria lata – era o cheiro da sopa de couves e feijão, que quase se tinha queimado.
Era cantando esta melodia, transmitida de curso para curso, que os instruendos atravessavam Tavira, tentando espairecer o espírito, pois sabiam que dentro em breve, ao terminarem a especialidade e ao deixarem a vila, estariam prontos para serem mobilizados, iniciar a IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional – e partirem para qualquer uma das frentes de combate.
José Martins, extraído de “Refrega”, livro inédito, 6 de julho de 2000
[Imagens acima: Conjunto escutório (o miliciano e a jovem tavirense), junto à estação ferroviária de Tavira, da autoria do belga Francis Tondeur. Fotos: Luís Graça, 2014]
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12783: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (18): Tavira, o CISMI e o meu "santo sacrifício da missa dominical"... Fazia parte do coro [da Igreja de São Francisco] para ter direito a uns "desenfianços" (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)
Aprendi uma nova linguagem – o alfabeto fonético – que seria a linguagem, não só em campanha, mas também ainda uso, agora na vida civil, quando preciso de soletrar palavras.
Aqui, eu e os outros elementos da especialidade, aprendemos a utilizar os rádios, já nessa altura obsoletos, mas que, nos momentos de aperto quando a tropa se encontrava no mato, em operação ou em quadrícula, eram a única via que nos ligava ao mundo, isto é, nos ligava com as unidades terrestres ou aéreas, que nos podiam prestar apoio.
Aqui aprendemos a trabalhar com sistemas de cifra, que nos permitiu codificar e descodificar as mensagens, muitas delas que nos davam as noticias mais preocupantes, ou para transmitirem para os escalões superiores o resultado das operações, como a noticia, que eu próprio codifiquei, do afogamento no Rio Corubal, junto ao Cheche, na Guiné, de quarenta e sete militares, quando, em 6 Fevereiro de 1969 se processou a retirada de todas as tropas estacionadas em Madina do Boé.
Aqui, durante a semana de campo, em plena serra algarvia, tivemos de servir como IN (inimigo) às companhias de atiradores que, caso nos capturassem, nos tratariam como “prisioneiros de guerra”, obrigando-nos a transportar o material mais pesado que esses grupos estivessem a utilizar.
Foi durante esses exercícios que, lançados no monte, flagelando os pelotões de atiradores e fugindo para que não nos capturassem, que eu e o meu grupo encontramos refúgio no cimo dum monte, dentro de uma casa, fechando a porta por dentro.
Ouvimos a “tropa” a chegar e a passar em revista todas as habitações.
Como a dependência não tinha janelas, um ficou junto à porta tentando ouvir as ordens dadas pelo comandante, afim de adivinhar as movimentações no exterior.
Alguém da patrulha tentou abrir a porta do local onde estávamos escondidos e, verificando que a porta se encontrava fechada, chamou a “nossa protectora”, que se desculpou, junto do Capitão, dizendo que o marido fora à vila e levara a chave no bolso.
Acabava de entrar no jogo do “inimigo”, do qual não podia sair defraudada.
O disfarce não podia cair por terra. Havia que encontrar solução para duas situações que surgiram: cheirava a queimado e ouviu-se o choro de uma criança.
Já havia tarefas para todos. Um estava de ouvido à escuta, junto da porta, seguindo as movimentações no exterior; outro foi para a lareira evitar que a sopa que estava ao lume, numa panela de ferro de três pés, se queimasse; o outro ficou com a missão de embalar a criança, que adormeceu encostada ao peito de um de nós, com a G3 em bandoleira.
Algum tempo depois, com toques suaves na porta, fomos avisados de que a “tropa” partira. Havia que partir também, e fazer silêncio sobre o esquema utilizado. No curso seguinte poderiam haver alguém com necessidade de usar o mesmo esquema ou outro semelhante, e não podiam ser descobertos.
Mais tarde, e em campo bastante aberto para evitar qualquer surpresa, almoçámos a ração de combate que nos tinham distribuído, mas o cheiro que eu sentia não era o das salsichas aquecidas na própria lata – era o cheiro da sopa de couves e feijão, que quase se tinha queimado.
O bebé de então, hoje já homem de mais de trinta anos, possivelmente nunca ouviu falar das suas “amas” ocasionais daquele dia de fins de Março.
"Óh i óh ai, óh Meninas de Tavira,
Óh i óh ai, que vai ser de vós agora,
Óh i óh ai, os solteiros não vos querem,
Os casados têm mulher,
Os milicianos vão embora …”
José Martins, extraído de “Refrega”, livro inédito, 6 de julho de 2000
[Imagens acima: Conjunto escutório (o miliciano e a jovem tavirense), junto à estação ferroviária de Tavira, da autoria do belga Francis Tondeur. Fotos: Luís Graça, 2014]
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12783: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (18): Tavira, o CISMI e o meu "santo sacrifício da missa dominical"... Fazia parte do coro [da Igreja de São Francisco] para ter direito a uns "desenfianços" (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)