domingo, 23 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12765: Debate sobre o livro "Segredos da Descolonização de Angola", de autoria de Alexandra Marques, no passado dia 18 de Fevereiro, em Oeiras (José Manuel Matos Dinis)

1. Em mensagem do dia 19 de Janeiro de 2014, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos o seu testemunho de mais uma tertúlia integrada no ciclo Fim do Império*, em Oeiras, esta realizada no passado dia 18 de Fevereiro cujo tema era o livro de Alexandra Marques, "Segredos da Descolonização de Angola".

Olá Carlos!
Envio-te uma espécie de reportagem sobre um encontro realizado em Oeiras, cuja matéria respeita à descolonização de Angola.
Fi-la de maneira a reportar só o propósito da sessão, e espero ter evitado opinar sobre o que ali foi dito. No entanto, não podia deixar de constatar e transmitir a opinião ali generalizada, ou, pelo menos, incontestada.
Não cito nomes, que constam do livro, para não ferir susceptibilidades, e para que os "árbitros de bancada" não se fiquem pelo comentário sobre causa desconhecida. Ah! Também não me foi pedida a divulgação, faço-o no âmbito das recensões no Blogue e para conhecimento de eventuais interessados.

Um grande abraço
JD


No passado dia 18, na sede da delegação da Liga dos Combatentes Cascais/Oeiras, realizou-se uma reapresentação, com debate, do livro com o título "Segredos da Descolonização de Angola", da autoria de Alexandra Marques, no âmbito do seu doutoramento em história. À guisa de preâmbulo cautelar sobre eventuais reacções emotivas, o senhor coronel Barão da Cunha advertiu para o "picante" da obra, e apelou à urbanidade das intervenções sob os diferentes pontos de vista.

E do que consta esse picante?
Pois o picante radica nos actos de alguns elementos das FA, que durante o período da descolonização de Angola, ali protagonizaram atitudes que causam "vergonha" a alguns dos seus camaradas presentes no encontro. E ficou a sensação, por falta de manifestações divergentes, que na assistência todos repudiam situações de desleixo, de indisciplina e abuso de poder na instituição militar, de desonra à história de Portugal e à ética da condição militar, principalmente consubstanciadas pelo desprezo votado aos cidadãos, e pela entrega indigna de militares portugueses a um movimento, que sobre eles praticou sevícias, como corolário da exagerada desfaçatez de não se terem deixado desarmar pelos anteriores inimigos. Terão ido parar à praça de touros de Luanda.

O senhor coronel-comando Manuel Bernardo, que cumpriu comissões em Angola e Moçambique fez uma síntese sobre a situação militar que precedeu o golpe de 25 de Abril, e adiantou alguma notícia sobre os desenvolvimentos negociais em que participaram as FA, os movimentos ditos de libertação, e o novo poder político de Lisboa, anotando algumas contradições e sucessivas cedências da parte portuguesa.

A Autora referiu os pressupostos da obra, que leu grande quantidade de documentos, vasculhou arquivos oficiais e particulares, que enfrentou relutâncias de diversa ordem, recebeu conselhos para não mexer em certas matérias, mas decidiu prosseguir, e garante que o livro só espelha o que conseguiu provar, quer em documentação, quer por testemunhos. Acrescentou que, pelo menos um militar que entrevistou, já tentou vexá-la numa apresentação anterior, negando a entrevista e a projecção plasmada no livro.
Como se infere com facilidade, há responsáveis que tentam branquear as acções que determinaram e mantê-las escondidas da opinião pública. Igualmente os órgãos de informação sonegam sobre a obra tão importante para o conhecimento público, que já se considera da maior importância e coragem. Ao Expresso, conforme citou, enviou seis exemplares, e até hoje nem uma linha sobre a matéria.
A autora, que exerceu o jornalismo durante 20 anos até enveredar por esta investigação, acrescentou que tem sido essa a atitude dos diferentes órgãos da imprensa, onde, aliás, conta com muitos companheiros de trabalho, que por via do livro chegaram a abrandar o relacionamento.

Por fim, seguiu-se um período de intervenção do público (quase cinquenta pessoas, na maioria militares de profissão). E nesse tempo houve revelações complementares sobre a época em epígrafe. Assim, foi revelado sobre o caso Vila Alice, como consta do texto, que os movimentos entraram em Luanda com 600 efectivos cada, e instalaram-se quase em frente na mesma rua. Esse testemunho, de um oficial nascido em Angola, referiu que estava na Vila Alice a fazer um exame de Karate, participado com um mestre cubano, quando começaram os disparos de um lado para o outro, uns de uma vivenda, os outros de um edifício onde instalaram uma Browning, sob a quase complacência da autoridade portuguesa e a estupefação dos residentes.

Esse famoso episódio dá-nos conta da alteração da normalidade urbana, e foi um anúncio das dificuldades que passariam a afectar a população civil, já que os portugueses não puseram cobro àquela e a outras situações seguintes.
Também foi revelado que antes do apoio oficial cubano, já ali confluíam cidadãos daquele país que faziam a avaliação material para incremento de uma estratégia. E também foi apontada a coordenadora do MFA como parte bastante activa em benefício de um dos movimentos, com capacidade para repatriar quem se lhe opunha, como no caso em que o Alto-Comissário terá incumbido dois oficiais superiores para uma acção revanchista que aqueles recusaram.

A propósito desse Alto-Comissário, um dos presentes exibiu a célebre carta de aconselhamento a mal-tratar os colonos, cuja autoria a autora considerou não estar provada. Mas também ali foi dito, que um empresário, em seu nome e no de outros cidadãos que residiam e exerciam actividades em Angola, escreveu ao almirante no sentido de que lhes fossem dispensados meios de protecção, e obteve como resposta - assegurou que o empresário ainda conserva a resposta - que eram os movimentos que avaliavam sobre a questão da segurança, e acrescentava, que sendo o destinatário branco e português, seria aconselhável deixar Angola para os autóctones, mas com outra expressão, ou seja, desanda enquanto é tempo.

Também se falou do "batalhão em cuecas". A estória resume-se assim: as autoridades portuguesas tinham decidido providenciar por um equilíbrio bélico entre os movimentos, e um batalhão que retirava para Luanda, recebeu instruções para entregar o armamento à Unita, mas que por intervenção de alguém do MFA entregou a outro movimento. Em represália, a Unita aprontou uma emboscada e deixou parte do batalhão em cuecas, o que dá uma boa imagem da decência, e da proficiência da tropa naquele momento, que devia ser de grande responsabilidade, em que mais se exigia ordem e serenidade.
Do que se infere que a tropa, no geral obedecendo a ordens controversas e ofensivas da mais elementar racionalidade, abdicava.

Finalmente, foi divulgado que aquela delegação da Liga dos Combatentes, com o patrocínio da Câmara Municipal de Oeiras, está recolher testemunhos como os que aqui são revelados, para um eventual projecto editorial, na senda das publicações que já promoveu, pelo receberá com interesse todas as colaborações que lhe sejam endereçadas.

JD
____________

Nota do editor

(*) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12721: Agenda cultural (302): Tertúlia Fim do Império, dias 18 de Fevereiro, 18 de Março, 1 de Abril e 20 de Maio de 2014, às 15h00, na Livraria-Galeria Municipal Verney/Colecção Neves e Sousa, em Oeiras (Manuel Barão da Cunha)

8 comentários:

Anónimo disse...

Como complemento ás referências sobre o "Batalhäo em cuecas", mais algumas quanto ao "Batalhäo do pé descalco" (e algumas outras),será interessante reler a intervencäo do Delegado do M.F.A de Angola (Capitäo Azevedo Martins) à Assembleia dos Delegados do Exército que ficou conhecida como a Assembleia de Tancos de 2 de Setembro de 1975).
Estäo publicadas neste Blogue com a data de 3 Janeiro 2010 (P-5667).

Antº Rosinha disse...

Pois é JD, é bom que se vão fazendo estudos sobre o nosso recente passado.

Mas é chato que ainda se chame segredos em Angola, quando alí não se falava "crioulo".

Ali era português e do mais puro e vernáculo.

Entre as várias explicações sobre a guerra colonial e o seu final a mais acertada que ouvi foi a estrangeiros.

Uma foi um Dinamarquês embarcadiço que perguntava como era possível manter aquela guerra e colonizar territórios tão grandes como Angola.

De facto só nós portugueses é que somos capazes de coisas inexplicáveis e esse esforço de guerra é dificilimo de compreender em plena guerra fria e durante 13 anos, que não são 13 dias.

Outra foi de um italiano no Brasil, que naquela fuga e abandono de Angola quer de militares quer de civís, (retornados), que alguns foram auxiliados à deriva em traineiras no atlântico, pela marinha e aviação brasileira.

Dizia-me esse italiano que trabalhava comigo:"os portugueses ficaram com merda na cabeça"?

De facto a imagem no Brasil do português não era nada daquilo que se estava a passar
Mas como as pessoas só nos conheciam sob a batuta do Salazar, não sabiam que as coisas em Portugal "bareiam".

Mas JD, porque temos vergonha de dizer aos militares que aquilo que se passou não foi fazer "descolonização"?

Mas JD, é bom que vamos tendo paciência e aceitar que somos capazes do pior e do melhor, se não, nem seriamos quem somos.

Antº Rosinha disse...

José Belo,
"Peço aqui licença ao meu General para usar linguagem "vicentina"... mas estamos a averiguar casos de soldados que trocaram a sua ração de combate pela... "co.." de algumas desalojadas!"

José Belo, como desalojado (Retornado) já tinha re-lido este teu post e agora repesquei este pequeno trecho que deixei entre aspas.

José Belo, Quantos e quantas desalojados (Retornados, repito) precisariam de uma ração de combate para matar a fome a um ou mais filhos?

José Belo, tu lá para as terras geladas deves ver de vez em quando na TV, a Avenida da Liberdade soalheirenta a ser percorrida por avozinhos e avózinhas de cabelos brancos a manifestarem-se que já não sobra nada para dar aos netinhos?

Tás-a-ver José Belo...esta crise actual na avenida da Liberdade vista aos olhos de um Retornado.

Já viste também o Tordo na TV de viola no saco ir para o Brasil?

Agora imagina aqueles que em vez da viola levavam a mala de cartão, como olham para cenas destas.

José Belo, somos capazes do melhor e do pior.

De facto ao acabarmos com o feriado do 1º de Dezembro, talvez se sinta mais feliz o Rey Juan Carlos de Espanha a comemorá-lo do que nós.

João Carlos Abreu dos Santos disse...

José Manuel Matos Dinis,
Não detendo qualquer procuração para o efeito, mas sendo, desde há muito, meu conhecido e meu amigo, queira notar que o citado oficial do QP do Exército Português na situação de reforma, Manuel Amaro Bernardo, autor de literatura vária relacionada com a recente História de Portugal, cumpriu sucessivas comissões de serviço ultramarino (desde 1961 alferes em Moçambique, passando por Angola, e voltando a Moçambique como capitão de onde regressou em 1973), tem o Curso de Infantaria da Escola do Exército, fez em 1960-61 um curso de Operações Especiais para integrar uma das primeiras Companhias de Caçadores Especiais, mas não é «coronel-comando» pois nunca integrou qualquer Curso de Comandos.
Melhores cumprimentos,
JC Abreu dos Santos

Abreu dos Santos (senior) disse...

... a propósito de pormenores "picantes" relatados, em Tancos, pelo (agora reformado) coronel Azevedo Martins [pai de uma das minhas cunhadas], quanto a execráveis atitudes da tropa fandanga para com população de Sá da Bandeira nos idos de 1975: o comandante de uma das companhias, instalada no extinto RI22, é o actual vice-presidente da direcção-central da Liga dos Combatentes. Que se saiba, nunca ninguém o questionou sobre tais sem-vergonhices... !

JD disse...

Camaradas,
Não foram só militares a pressionar a dita "descolonização", que tem regras próprias estabelecidas na Carta das Nações Unidas - deve ter-se em conta a época dos factos, e a questão de predominância dos blocos de leste e ocidental, que predestinaram a ONU a não ser o orgão imparcial para resolução e acomodação de interesses internacionais dissonantes - regras essas, sobre a autodeterminação a impor aos estados que detinham territórios sem governo próprio. Essas regras impunham o envio de relatórios anuais ao Secretqariado da ONU, informando sobre "os eventos administrativos desses territórios e sobre os esforços por eles empregados para o progresso das suas populações no sentido de as prepararem, na ulterior fase da autodeterminação, para uma selecção consciente do seu destino" - independência, federação, ou preservar a integração.
"Nos termos do mesmo artigo (74º.) os países colonialistas assumem na ordem internacional as obrigações que,textualmente passo a transcrever:
a) assegurar, com respeito pela cultura dos povos em questão, o seu progresso, político, económico e social, bem como o desenvolvimento da sua instrução, tratando-os com equidade e protegendo-os contra os abusos;
b) desenvolverem a sua capacidade de se administrarem por si próprios, levar em linha de conta as aspirações políticas das populações e ajudá-las no adiantamento progressivo das suas livres instituições políticas, na medida apropriada às condições particulares de cada território e das suas populaçõese outrossim aos seus graus variáveis de desenvolvimento" Citações de Cunha Leal, em "A Pátria Em Perigo", 1962, pg.224.
Porém, à pressa manifestada pelo MFA (no todo ou em parte, mas ao correr do tempo), também a nova "politik" expressava-se assim por Mário Soares, "ao refutar a acusação de «não ter deixado participar amplamente o povo na questão da transição do poder em Moçambique, entregando-o directamente à Frelimo», «Como é que se exerce o direito de autodeterminação nas colónias? Esse é o problema. Através de uma votação democrática em que cada homem terá um voto? Em quase todos os regimes africanos actuais, existe um partido único. Esse partido único existe em Moçambique. Nós tínhamos assim duas possibilidades a seguir: ou impunhamos um referendo, e então íamos dar a possiblidade a certos grupos fantoches, que não existiam antes do 25 de Abril, de poderem aparecer a público; ou íamos reconhecer aquele movimento nacionalista que conduziu uma guerra durante treze anos em Moçambique. Nós seguimos o segundo caminho por razões programáticas» - citado no Livro Negro da Descolonização, pg.65, apesar de o Secretário-Geral do PS ter reconhecido sobre a Frelimo ("Capital", 23/4/76, citado na mesma pg, mesma obra) "falta de quadros", "falta de preparação", não estar "suficientemente amadurecido para garantir um governo".
Os livros, de facto, podem garantir boa memória. Para muita gente a autodeterminação estava a verificar-se desde 1961, quando, a par da guerra, aumentou o fluxo de brancos, que em comunhão com os pretos, ali trabalhavam e investiam os rendimentos.
JD

Antº Rosinha disse...

Amigo JD, trazer as boas intenções da ONU para África, creio que hoje já só se usa para levar leite em pó com água do poço para crianças, ou levar drones para abater turras.

Mas ao lembrares naquele tempo dos anos 60/70, até arrepia só de pensar o cinismo com que os agentes da ONU assistiam e fotografavam e abraçavam oficiais descalços, bêbados, que matavam, mandavam fazer fogo sobre cidades a cada fim de semana, sem a mais pequena noção de responsabilidade.

A ONU via e vê, e ainda goza com África.

Isto que digo, vi em MATADI em 1960 no Congo Belga em 1960, no meu tempo de cabo milº em Noqui.

E vi na Guiné com Luís Cabral e Nino Vieira, a ONU apoiar e abraçar dirigentes frente a crianças e povo que estava uma semana sem ter acesso a um grão de arroz.

Só nunca entrei aqui em certos pormenores por respeito aos princípios do Blog, e porque nós com os nossos governantes do 26 de Abril também fizemos coisas que envergonham e até fazem corar.

Estive hoje mesmo a assistir a um programa na TVI sobre Angola, onde se diz que houve uma das maiores guerras clássicas pós II grande guerra.

E essa guerra foi onde trabalhei vários anos na maior paz do mundo, que nem no Rossio ou na Foz do Douro hoje tem tanta paz.

E a ONU assistiu, testemunhou e apoiou e apoia e continua.

Cumprimentos

JD disse...

Caro Rosinha,
Naquele tempo a ONU integrou dezenas de novos países afro-asiáticos, e todos liam pela mesma cartilha descolonizadora, através da qual pontificavam os novos títeres. O atraso acentuou-se no 3º. mundo.
Mas onde eu admitia que fosses pegar, era no último parágrafo, onde refiro que a autodeterminação já estava a acontecer em Angola. Se em Angola a "coisa" estava quase resolvida, e a situação económico-social em crescimento invejável, o MFA acordou os donos do mundo para aquela nova possibilidade de acentuar importância, e foi o que se viu.
Ouso dizer, que hoje em dia todos os países africanos descolonizados, apesar das riquezas de recursos, vivem pior do que antes das rápidas descolonizações, e o Zimbabwe que era o mais rico de África (os sul-africanos invejavam o nível de vida dos vizinhos), é o triste exemplo da desgraça, e Mugabe era um líder prestigiado da Internacional Socialista.
Um abraço
JD