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segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25972: In Memoriam (511): Trasladação de Lisboa para Vila Pouca de Aguiar dos restos mortais do Soldado At Inf da CCAÇ 4150, Manuel Agostinho Mendonça de Oliveira (1952 - †1974), vítima de acidente com arma de fogo em Guidaje, a ter lugar no próximo dia 6 de Outubro de 2024 (Albano Costa)

IN MEMORIAM

Soldado At Inf Manuel Agostinho Mendonça de Oliveira (1952 - †1974)
Vítima de acidente com arma de fogo


1. Mensagem do nosso camarada e amigo Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150 (Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de hoje, 23 de setembro de 2024:

Caros amigos "Apaches " da CCaç 4150 e Antigos Combatentes.
Finalmente ao fim de 50 anos vamos fazer a trasladação do nosso amigo Manuel Agostinho Mendonça Oliveira, falecido na Guiné, em Guidage, no dia 2 de Abril de 1974, em acidente com uma granada de mão.

O seu corpo ficou durante 50 anos "encalhado" em Lisboa por falta na altura, e ainda hoje, das obrigações do Estado Português.
O Manuel Agostinho Mendonça Oliveira ficou todos estes anos à espera deste dia para chegar à sua terra natal na freguesia de Pensalvos, em Vila Pouca de Aguiar.
Primeiro, foi sepultado no cemitério do exército, no Lumiar, na campa n.° 14. Segundo, no dia 22 de Maio de 1984, continuou o seu calvário, e foi trasladado para o cemitério do Alto de S. João, para a Cripta n.° 6358, ficando ao cuidado da Liga dos Combatentes.

Este género de feridas nunca cicatrizam. Os políticos julgam que passam com o tempo, não, não passam, enquanto por cá andarmos carregando sempre este "fardo".
A prova é que a sua família biológica, e também a família de guerra os "Apaches" nunca se esqueceram que o Mendonça Oliveira ainda não tinha chegado à sua verdadeira casa.
Finalmente ao fim de 50 anos vamos fazer a sua trasladação para o seu verdadeiro local.
O único morto que a nossa companhia teve por terras da Guiné.

O funeral vai ser no próximo dia 6 de Outubro de 2024, domingo.
Vai sair de Lisboa para a igreja de Pensalvos, em Vila Pouca de Aguiar, ficará na igreja até à hora do funeral que vai ser durante a missa dominical das 9h30.
Depois das cerimónias religiosas vai ser sepultado em jazigo de família.


Quem puder e quiser estar presente no dia, vai ser a ocasião de se fazer a homenagem que ja havia de ter sido feita há 50 anos.

Aproveito para agradecer a todos os "Apaches" pela solidariedade que mostraram desde a primeira hora para ajudar na sua trasladação. Mostramos ser uma verdadeira família de guerra em prol desta causa.

Um abraço.
Albano Costa

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Nota do editor

Último post da série de 23 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25971: In Memoriam (510): António Rodrigues (c. 1940-2024): (i) um mordomo da elite portuguesa dos mordomos da elite de Nova Iorque, que era natural da Batalha; (ii) um grande ativista de causas sociais (cofundador do LAMETA); e sobretudo (iii) "o meu irmão mais velho que eu nunca tive"! (João Crisóstomo, Nova Iorque)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Sendo completamente inútil tecer juízes moralizantes quanto às razões pelas quais aparecem na Feira da Ladra correspondência privada, ainda por cima comportando, dada a proveniência deste expedidor e deste recetor, compreensíveis melindres, que os herdeiros deviam acautelar, esta correspondência contribui para a compreensão do estudo de mentalidades, estão em causa duas pessoas de formação superior, pode avaliar-se que o expedidor tem noções claras sobre o muitíssimo que é necessário fazer para inverter a evolução da guerra na Guiné e temos aqui uma apreciação sobre os erros praticados, por incapacidade de avaliação estratégica ao nível de Comandos, numa operação que decorreu em junho de 1970, na Península do Sambuiá. Entregarei, como é óbvio, esta correspondência no Arquivo Historico Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1)

Mário Beja Santos

Nas minhas deambulações pela Feira da Ladra, tenho entre os meus fornecedores uma senhora que tem sempre na banca coleções de aerogramas, álbuns com oficiais da Armada, imensas caixas com bilhetes postais, fotografias, correspondência avulsa. Nesses sábados em que a visito há sempre um ritual da pergunta se apareceu algo relacionado com a Guiné, aerogramas, cartas, imagens. A resposta é sistematicamente negativa, o correio de guerra é sempre polarizado por Angola e Moçambique. Mas eis que naquela manhã a senhora me acenou e disse tenho ali uma carta que diz ser de Bissau, tenho a impressão que tenho lá mais, veja se lhe interessa, se lhe interessar trago o que encontrar.

Esta primeira carta endereçada a Paulo António Osório de Castro Barbieri foi-lhe escrita pelo irmão, tenente Nuno Barbieri, SPM 0418, tem interesse histórico, por isso se reproduz na íntegra. Caso o leitor pretenda saber quem escreve e quem recebe este documento, basta ir ao Google.

Vejamos, pois, o conteúdo da mesma, a primeira a que se irá fazer referência:

Bissau, 28 de junho 1970

Meu caro Paulo:

De boas intenções está o mundo cheio, no entanto é bem mais difícil concretizá-las. Refiro-me, é claro, aos teus anos que acabam de decorrer, a 23. Partindo do princípio que compreendes o que se passou, deixo de lado este assunto, enviando-te, no entanto, um grande abraço de parabéns, um pouco tardio.

Dificilmente consigo compreender as motivações que levam o pai a ocultar-me determinados assuntos, a não ser aqueles inerentes ao próprio “segredo absoluto”, que de forma alguma podem ser conhecidos de uma pequena minoria. Trata-se, decerto, do segredo dos deuses. Porém, como todos os segredos, mais tarde ou mais cedo acaba-se por se conhecer, senão o seu âmago, pelo menos as suas características mais evidentes. Refiro-me, é claro, ao litígio que opôs, em certa altura o pai ao Spínola.

Como a reforçar tudo isto, acabo hoje de aceitar um prolongamento da minha comissão, não no DFE, será rendido à data estabelecida, mas no Grupo de Acções Especiais do Comando-Chefe. A natureza de segurança deste meio não é suficiente a permitir-me esclarecer-te melhor qual o nosso papel e quais as tarefas a desempenhar.

Suponho, no entanto, que te bastará mencionar o facto de que passarei a estar subordinado ao Comandante Calvão. Talvez o pai te possa esclarecer sobre o assunto…

Estou em Bissau desde o dia 21, pois tive a possibilidade de aproveitar um avião, uma DO que fizera o PCV da Operação Meia Nau. Esta operação, espécie de grande batida à zona do Sambuiá, teve como resultado dois mortos do Exército e três feridos, um dos quais grave. Da parte do IN desconhecem-se os resultados, mas é de prever que os efeitos tenham sido ligeiros ou mesmo nulos.

A operação desencadeada visava uma zona já tradicional, procurando-se atuar sobre o IN, nos seus acampamentos de refúgio. Na realidade, as informações obtidas, umas do Senegal, outras de origens várias, eram absolutamente falseadas, lançadas no intuito de levar as nossas forças a desencadear uma operação de desgaste. Os objetivos entregues às tropas especiais, DFE 12 e DFE 7, revelaram-se inexistentes. Por outro lado, o bigrupo do Sambuiá atuaria sobre o perímetro externo de encercamento da zona, constituído por tropa dos aquartelamentos de três pontos distintos: Bigene, Guidaje e Binta.

Por ironia do destino, coincidência, ou fuga de informações, o IN escolheu a posição mais fraca, a assegurada pela tropa de Bigene. Claro que a pobre companhia de caçadores açorianos, quase exclusivamente armada de G3 e HK, foi completamente cilindrada. Valeu-lhe o helicanhão que em 5 minutos alcançou o local e obrigou à fuga do inimigo. Mesmo assim, as munições foram esgotadas e os resultados estavam definitivamente assegurados.

Ao meio-dia de 21, apenas restava mandar levantar o dispositivo posto em ação e contentarmo-nos com a captura de uma PPSH, já velha e três granadas de morteiro 82.  Graças a todos este esquema, estava em Bissau às 17h desse dia.

Para que possas ter uma noção mais completa da ação, será necessário frisar-te o seguinte: a tropa de Bigene e Guidaje, que recebera a missão de fechar o Sambuiá, foram enviadas, respetivamente, para as bolanhas de Samoje e de Facã – prolongamentos naturais do rio de Talicó (extremo Oeste do Sambuiá) para Oeste e deste. Por pouco que conheças a tática militar, logo te apercebes do erro destas “portas naturais”, aonde o terreno é plano. Claro que quem olha para a carta e desconheça este tipo de guerra, convence-se que a mata entre Facã e Guidaje constitui um tampão à passagem. A isto ponho apenas a pergunta: - Se quiseres penetrar no Sambuiá, sabendo que está a decorrer uma ação, ou de lá retirares, com a aviação na área, não irá escolher precisamente a mata? O arvoredo constitui a melhor garantia de cobertura em relação à observação aérea e para uma passagem fácil apenas é necessário abrir um trilho à catanada. Porém, desde há longa data que se fecha o Sambuiá nas bolanhas de Samoje e Facã!

Tirando estes pequenos acontecimentos, que vão constituindo a nossa guerra e a nossa vida, pouco mais há a dizer-te. Da situação geral da guerra deves estar mais bem informado do que eu, até porque enquadras este conflito dentro do quadro completo. 

Além disso, observas diretamente o nosso meio metropolitano, fator definitivo do conflito. Aqui, apenas chegam rumores adulterados do que se vai passando. Temos, no entanto, que compreender que a guerra dura quase há 10 anos, com todo o significado deste lento arrastar.

Aqui na Guiné, se bem que se esteja a trabalhar bem próximo do problema central, a questão socioeconómica, ainda não se adotaram medidas enérgicas para a solução definitiva. A revolução agrária que deveríamos decretar, no género do que se passa em Cuba, para aceleramento de produção de cana do açúcar, e que faria oscilar profundamente os quadros tradicionais africanos, daria a possibilidade de concretização e de luta à camada jovem africana. 

Assim, dentro destas perspetivas, a criação de campos de trabalho de jovens dos liceus, escolas técnicas e industriais, faria mostrar à população estagnada dos centros, que dispõem de meios de progresso e cultura, que a nossa luta é dinâmica e visa a solução do problema fundamental: o zero económico da província.

Por outro lado, poderíamos aproveitar o estado de guerra para expropriar as companhias monopolizadoras do território guineense. Todos os terrenos que não fossem cultivados, pelo menos nas épocas de melhor rendimento, reverteriam para o Governo da província e constituiriam uma espécie de bolo a dividir pelas populações que os pretendessem e cuja segurança pudéssemos garantir. Constituiríamos, assim, um novo tipo de propriedade, em função do investimento e do empenhamento na produção.

Os meios de escoamento das riquezas deveriam ser pertença do Governo, de forma a impedir o bloqueio de produtos por parte das companhias. Se a isto somássemos a obrigatoriedade da mobilização civil, por períodos de 2 anos, veríamos, rapidamente, solucionado o problema dos meios técnicos e humanos, isto é, engenheiros agrónomos, engenheiros civis, economistas, etc., que fariam uma comissão dentro do seu ramo de atividade – considerável aumento de interesse da camada civil de metropolitana por estas condições de Ultramar, devido à especialização que este período de tempo necessariamente acarreta.

Além disto, é necessário acelerar a educação na Guiné, quer ao nível juvenil, que em campanhas de educação de adultos, procurando uma lenta conversão de valores, fácil de obter em espíritos simples. Mas, sobretudo, é necessário compreender que não poderemos responder à real e profunda revolução africana de caráter comunista a “tranquilidade das populações”, tão do estilo do defunto Salazar. Alargar-me-ia muito mais sobre este assunto. No entanto, isto é o suficiente para te passar a palavra.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25579: S(C)em Comentários (38): Gandembel, em que é que foi diferente dos 3 G (Guileje, Guidaje, Gadamael ?) (Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)


1. Comentário de Alberto Branquinho, advogado e escritor , ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (*):

Data 28/05/2024, 20:24 

Boa tarde, Luís

Já desisti de insistir com a gente da CCAÇ 2317 para que não se esqueçam que chegámos no mesmo dia (eles mais nós, CART 1689) ao espaço onde Gandembel foi construído. 

Aliás, o primeiro a chegar ao terreno foi o meu pelotão. Eles chegaram de sul com viaturas e não de norte. E que, depois, estivemos com eles durante os primeiros 40/45 dias, até que os abrigos enterrados e cobertos de cibes, chapa de bidon e terra, mais as fiadas de arame farpado ficaram prontos. 

Claro que eles sofreram aquela situação durante mais cerca de oito meses, com os paraquedistas a patrulharem as imediações.

Certo é que nunca falam na (então) velhinha CART 1689.

O Idálio, depois de um mal-entendido, reconheceu isto depois da publicação do livro.(**)

Os 3G  (Guileje, que ficava logo ali, de onde a CCAÇ 2317 veio , Guidage e Gadamael) foram um inferno. O que Gandembel teve de diferente é que se estava a construir um quartel  onde não havia nenhuma construção.(***)


Abraço, Alberto Branquinho

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Notas do editor:

terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II)

Belmiro Tavares

2023/24


Na época em que procurávamos cativar os guineenses que viviam na miséria mais execranda, no Senegal e convencê-los a instalar-se em segurança quase total, em Binta, o chefe da ex-tabanca de Ujeque informou que, quase em frente à sua tabanca e perto de Guidage, havia um acampamento de pessoal não combatente – não tinham armas em sua posse.

O 3.º pelotão da CCaç 675, o do alf. Tavares, foi enviado àquela zona para encontrar e desativar o tal acampamento. O 3.º GComb seguiu, em viaturas, até Ujeque; ali, o pessoal apeou-se os veículos rumaram a Guidage onde permaneceriam até serem chamados.

O pessoal do 3.º pelotão, logo, se embrenhou no capim e, em breve, avistou um jovem encarrapitado num morro de bagabaga; seria um sentinela afastado. O 3.º pelotão aproximou-se, cautelosamente, do sentinela; quando já não era possível acercar-se do vigia sem serem vistos, o Tavares ordenou ao guia, Malan, que o convidasse a vir até nós. Houve troca de palavras entre os dois; logo, nas calmas, o sentinela desceu do morro e… seguiu, sem correrias, em direção ao acampamento. Um soldado perguntou ao seu alferes:
- Atiro?
- Não! – respondeu o alferes
- Ele vai avisar os outros!
- Tanto melhor! Eles debandam e não há mortos! É melhor assim!

Em breve chegámos ao acampamento… já despovoado. Havia ali panelas ao lume (faltavam toalhas e talheres nas mesas… que não vimos); o pessoal havia debandado, em segurança.

Retirámos todos os seus pertences das barracas e colocámo-los onde as chamas não chegariam. O acampamento foi destruído – não queríamos intrusos no nosso território! Mais tarde, eles voltariam ao local para recolher os seus bens não danificados.

Os nossos carregadores (milícias) vieram de mãos a abanar. Não houve pilhagem! O mais importante aconteceu: não houve mortos e aquelas pessoas não perderam os seus parcos pertences. Uns tempos mais tarde, aquele pessoal rumou a Binta, onde se instalou para iniciar uma nova vida, sob a proteção da nossa tropa – encontraram, ali, a sua “terra prometida”.

Conclusão: uma guerra sem mortos será quase inconcebível mas aconteceu, naquele mísero acampamento, entre Ujeque e a fronteira do Senegal. Há dias de sorte!

Em sentido contrário, vamos contar um caso miserável, aberrante, que ocorreu já perto de Buborim numa das primeiras vezes, em que nos aproximámos do limite oeste da nossa zona. A claridade matinal já inundava, afavelmente, a floresta densa. O silêncio era quase total! Três pelotões seguiam, paulatinamente, quase sem ruídos, rumo ao limite oeste da nossa zona. Eis que os soldados da frente avistam três homens (pessoal desarmado) que, despreocupadamente, caminhavam, estrada fora, em nossa direção. Iriam procurar fruta e hortaliça que iam crescendo nas aldeias abandonadas. Os soldados da cabeça da coluna ocultam-se entre o capim. Alguém (crê-se que apenas um combatente) dispara cruelmente: um morreu logo, outro ficou gravemente ferido e o terceiro (cremos que ileso) conseguiu fugir daquele local azarento. Alguém desobedeceu, estupidamente, às ordens do nosso benigno capitão.

O fur. mil, Oliveira, começou a tratar, desveladamente, o ferido, embora o seu estado aparentasse ser muito grave.

O nosso afoito capitão estava inconsolável! Não dizemos de “cabeça perdida” porque tal nunca aconteceu! Pior ficou quando ouviu o ferido clamar, repetidamente:
- “Quero falar com o capitão!”

Pouco depois, o nativo entregou a alma a Allah!
Nós não sabemos, com certeza, quem foi o autor dos disparos… já não interessa!

No texto anterior, falámos de uma figura catita da CCaç 675; desta vez, vamos falar de outra ou outras personagens com certo carisma e que nos acompanharam na Guiné durante dois anos muito longos – ponham longo nisso! Não há regras para tal escolha mas falaremos de muitos, certamente. Não interessa a ordem. O próximo caso será aquele a quem o fur. mil. enf. Oliveira, já falecido, também, apelidou de “homem tranquilo”. Este epíteto assentava-lhe que nem uma luva! Como devem calcular, trata-se do soldado n.º 2326, Jerónimo Justo (o seu nome completo) que pertenceu ao pelotão do nosso caríssimo amigo, alf. Santos. Era um soldado extremamente calmo, educado e bem-falante. Colocava as palavras com rara precisão. Faleceu há uns anos mas os filhos (Natália e José Luis) passaram a acompanhar-nos. Em 2022, o filho, José Luis a sua esposa, Maria de Lurdes e o filho, Tiago estiveram connosco em Famalicão e em Évora.

Devido à ausência forçada da nossa cobradora habitual, Maria Luisa Figueiredo, a nora do soldado Justo acompanhou o Tavares na cobrança e cumpriu cabalmente a sua missão. Até parecia, já, um velho elemento da CCaç 675; afinal era a primeira vez que ela se via entre a nossa rapaziada. Em setembro de 2023, repetiu a dose – agora é já um elo inquebrantável da CCaç 675.

Em 2023, a filha do soldado Justo, Natália (agora Cardoso) compareceu em Santo Tirso; trouxe o filho, Ruben e a sua namorada, futura neta do nosso companheiro. O Ruben é um “velho” conhecido. Quando o vimos pela primeira vez, ele teria quatro anos; era o companheiro do avô, já acamado. Hoje, abeira-se dos trinta e trouxe a namorada, Denise – é a mais nova aquisição da CCaç 675. Foi “obrigada” a prometer que não mais faltará às nossas confraternizações. Nós não pagamos trespasses nem ordenados chorudos! Isso acontece no futebol! Nós queremos dar e receber amor, fraternidade, amizade pura e camaradagem: estas são as nossas moedas.

Voltemos ao soldado, Justo. Cerca de um ano, após a sua morte nos ter sido anunciada – obra de um companheiro que vive na zona de Gondomar, sold. at. n.º 412, Manuel Cardoso – fomos (o Oliveira, o Moreira e o Tavares) colocar a lápide na sua sepultura, no cemitério de Gondomar. Após várias tentativas falhadas para encontrar o seu sepulcro (o cemitério era grande e disforme e uma parte encontrava-se em obra de ampliação) pedimos ajuda a um coveiro, ali presente. A sepultura do Justo estava, ali, ao lado. Ficámos aturdidos! Totalmente desconcertados! Se tivéssemos ido colocar a lápide, logo que soubemos do desenlace, tê-la-íamos entregado ao próprio… ainda vivo. O Justo tinha sido sepultado, precisamente uma semana antes da nossa ida ao cemitério. Nunca soubemos como aconteceu tal engano. Agora não interessa. Já lá vão tantos anos e… o crime (?) já prescreveu.

Estávamos os três companheiros a conversar com o coveiro, quando este anunciou que a viúva do Justo se aproximava, trazendo um braçado de flores frescas para substituir as que lá colocara na véspera.

Segundo o coveiro, ela ia, lá, diariamente. Perante esta informação, o Tavares dirigiu-se à senhora, anunciando-se. Ela ficou enormemente surpreendida por ter, à sua frente, os velhos amigos do seu marido. Ela comentou, textualmente:
- Recordo, perfeitamente, o seu nome. Quando o senhor telefonava ao meu marido, eu atendia e passava-lhe o telefone. Quando isto acontecia, ele ficava tão contente! As suas cartas eram o maior tesouro dele; ele guardava-as religiosamente, em memória dele, eu guardo-as todas com muito carinho.

Anos volvidos, a viúva do Justo acompanhada por toda a família, encontrou-se connosco, num restaurante, em Santo Tirso, onde realizámos mais uma confraternização com as gentes do norte. O fur. enf., Oliveira esteve presente, também. Esta “mini” foi organizada pelo companheiro Mário Pinto que não se poupou a esforços e nada falhou. Antes do repasto, o Tavares ligou ao nosso general, anunciando que “a ala norte da CCaç 675 está reunida”. O telefone passou de mão em mão e todos falaram com o nosso magnífico comandante.

Já é tempo de falarmos mais um pouco do nosso amigo e companheiro, Jerónimo Justo – antes que seja demasiado tarde.

Ele era, sem sombra de dúvida, o militar mais calmo da companhia; era também um dos mais cumpridores, apenas… porque sim. Nunca foi visto exaltado com quem quer que seja; qualquer desaguisado que, porventura surgisse, era resolvido no diálogo e sem qualquer irritação. A sua voz muito gutural nunca subia de tom. Não era necessário impor-lhe nada, porque ele, sabendo o que deveria ser feito, dedicava-se de alma e coração a qualquer tarefa a que o serviço obrigasse e levava os companheiros na sua cola. Para ele, o serviço era sempre “coisa séria” e ele cumpria a contento. Quer no aquartelamento quer em pleno mato ele dava nas vistas pela sua calma e serenidade. Como lhe assentava bem o epíteto “homem tranquilo” que o nosso dileto amigo fur. mil. Oliveira, (era também o nosso cronista-mor) lhe atribuiu.

A sua roupa andava sempre impecável! Ou ele tinha um ferro de engomar sabia usá-lo ou Malan Turé tratava melhor da roupa do Justo do que da dos outros. Era exemplarmente cuidadoso e apresentava-se sempre devidamente fardado.

Mesmo em pleno mato, onde podíamos ser surpreendidos com tiros, a qualquer momento, se o Justo necessitava limpar o nariz ou o suor do rosto, ele não tinha pressa: desdobrava “tranquilamente” o lenço, limpava o nariz ou o rosto sem o amarrotar; logo, o dobrava, impecavelmente, antes de o introduzir no bolso. Era caso único! Enquanto procedia a tais tarefas se, algum dia, ouviu tiros, cremos que ele não deixaria de dobrar, devidamente, o seu lenço antes de o reintroduzir no bolso; depois, responderia ao fogo dos adversários, se fosse necessário. Era quase inacreditável mas era mesmo assim!

Se se encontrava no aquartelamento, meia-hora antes do almoço ou do jantar, o Justo iniciava a lavagem cuidada da sua marmita; depois da refeição, ele procedia a nova à lavagem da mesma, que era o seu prato de todos os dias. Poderíamos dizer que era a sua imagem de marca! Nunca mudou o seu comportamento, durante aqueles dois longos anos, desde maio de 1964 a fins de abril de 1966. Foram longos para caramba! Mas ele não alterou em nada a sua maneira de ser!

Para amenizar o ambiente pesadíssimo em que vivíamos, o nosso pessoal, nos intervalos da guerra, arranjava maneira de se divertir e fazer rir os companheiros. Outras vezes, inventavam artimanhas para poupar dinheiro que, naqueles tempos, era tremendamente caro e era sempre pouco.

Aproveitamos para lembrar que, na Guiné um soldado ganhava cerca de 2.500$00 mensais; como podia deixar à família, até 60% daquele montante recebia, lá, cerca de “900 pesos” (peso era o escudo da Guiné). Este montante não era fixo; variava de acordo com o número de dias de cada mês. Um soldado ganhava mais em janeiro que em abril; para ele, o pior mês do ano era fevereiro.

Um dia falei disto com uns adolescentes. Um deles, mais perspicaz, argumentou, com certa razão e alguma ironia:
- Se bem percebi, um soldado ia para a guerra, arriscava a vida, durante 24 horas por dia e recebia, mensalmente, algo como €4.50 (quatro euros e cinquenta cêntimos).
- É verdade! Respondemos: Mas tinha cama, mesa e roupa lavada (se a lavasse), uma espingarda para se defender ou atacar os adversários e não pagava as munições que gastava; o bilhete para viajar nas viaturas militares com assentos de ripas… duras para caramba… era gratuito.
- Mesmo assim, era uma barbaridade! Se, como disse, uma cerveja custava dez escudos, se o soldado bebesse uma mísera cerveja por dia, gastava quase a totalidade do salário. E o resto? Ele teria outras necessidades!
- É verdade! Mas, antes de mais, não deves falar em “mísera cerveja”, pois tratava-se de uma garrafa de 0.70 ctl (70 centilitros) era o dobro da capacidade das de cá; por outro lado, com novecentos escudos, um soldado podia comprar trezentos maços de tabaco de qualidade acima da média. Hoje, com €4.50, tu podes comprar apenas um maço, se… não abusares na qualidade.

Podemos concluir, brincando, que Salazar não pagava tão mal quanto parece mas… enviou-nos para aquela guerra miserável de má memória. Fomos enviados para a Guiné! Este era, de longe, o pior destino. - Divertindo-nos mais um pouco. A guerra serviu, acima de tudo, para “desemburrar” os nossos jovens, principalmente, os que nasceram na província profunda, lá, onde Judas poderia perder as botas se por lá passasse, algum dia. Naquele tempo – dizia-se – “o país vivia fechado, isolado da civilização”; a maioria dos mancebos ia à tropa mas, regra geral, quedava-se, num dos quarteis do distrito.

Recordo um conterrâneo (uns quinze anos mais velho que eu) que assentou praça em Abrantes. Que absurdo! Foi parar ao fim do mundo! Durante meses, todas as mães daquela aldeia reuniam-se, à tarde, em casa da mãe daquele azarado magala e rezavam para que ele voltasse, em breve, são e salvo; consideravam que Abrantes ficaria “sete cabos de machado” para além do inferno que, só por si, já ficaria incrivelmente afastado do mundo.

Normalmente, os jovens casavam na aldeia, onde nasciam ou num qualquer lugarejo vizinho. A guerra “libertou-os”! Depois do regresso, muitos emigravam – a França era o destino da maioria. No entanto, cremos que não deveria ser necessário “inventar” uma guerra ou responder a quem a criou para abrir os olhos aos jovens.

Nós, os componentes da CCaç 675, aos quais, por sorteio, coube um capitão como não havia outro, conseguimos criar uma família com 160 elementos “dantes quebrar que torcer”, amigos de todas as horas e muito mais do que isso. Se não tivéssemos ido à guerra e, se não pertencêssemos à CCaç 675, não estaríamos, hoje, aqui, a confraternizar e honrar os nossos mortos. No entanto, será aconselhável esquecer as coisas más da vida, preservando o lado bom porque… tristezas não pagam dívidas!

Depois de tanto divagar, voltemos ao nosso tema: - os ardis dos nossos rapazes para economizar uns magros cinquenta escudos por mês e a dividir por dois, não podem ser lançados à feras.

Dois dos nossos companheiros engendraram um estratagema para poupar uns “pesos” na lavagem da roupa. Marcaram a roupa de um com uma linha e apenas um enviava a roupa dos dois para a lavadeira. Tudo correu como esperado, durante algum tempo mas, eis que a lavadeira descobre a marosca, talvez porque a roupa marcada seria de tamanho diferente da outra ou porque este militar enviava para a lavadeira mais roupa que qualquer outro. A “negrinha” (lavadeira) não era tão inexperiente como eles pensavam. Os dois bons malandros começaram a pagar cinquenta escudos cada um, como os outros, e não apenas 25$00. E há quem diga que a lavadeira “não tem esperto nos cabeça!”. Tiveram sorte porque ela não sabia, ainda, o que eram retroativos. Os “engenhocas” nem sempre são bem sucedidos.

Quem foram os espertalhões? Podem acusar-se porque não será aplicada qualquer punição. O caso há muito, já prescreveu mas teve a sua graça. Esta quase anedota “viveu”, na clandestinidade, durante mais de cinquenta anos, mas… agora, encontrou a luz do dia. Iniciou uma nova vida! Avante, valentes da Gloriosa CCaç 675!

Mudando um pouco o azimute… lembram-se do soldado n.º 2169, João Nunes do Nascimento, do 3.º pelotão? Que foi o nosso último morto em combate. Pois bem! Lá, na sua aldeia, natal, Sarzedas, às barbas de Castelo Branco, a junta de freguesia decidiu prestar uma singela mas honrosa e merecida homenagem ao jovem herói da terra, morto em combate, em defesa da Pátria, na Guiné, no dia 30 de julho de 1965. Faltavam quase nove meses para o fim da nossa comissão! O que aconteceu era impensável, naquela época. Ninguém imaginaria que tal coisa, ou algo semelhante, pudesse acontecer-nos! Mas a vida é feita de surpresas!

Lá, no meio da aldeia, existe um pequeno largo e a Junta decidiu dar a essa “praça” o nome do nosso companheiro e amigo. Alguém terá alvitrado que o tal largo seria demasiado pequeno para perpetuar a memória dum jovem que, sem regatear, deu a vida pela Pátria.

À margem daquela praça, havia uma casa que pertencera aos pais do Nascimento. Os irmãos do nosso companheiro decidiram doar o imóvel à Junta para que a praça pudesse ser alargada, adquirindo, assim, uma maior dimensão e uma aparência mais significativa. Os herdeiros prestaram assim uma significativa homenagem ao irmão, João, o nosso companheiro. É louvável a atitude dos irmãos, principalmente, porque, na província, as pessoas são muito ciosas dos seus bens, particularmente, dos que herdaram dos seus maiores. Neste caso, os irmãos esqueceram a parte material, dando prioridade ao espiritual.

Cabe aqui lembrar (ou informar) que os pais do Nascimento, na companhia de uma filha, tomaram parte em duas das primeiras cinco reuniões que tiveram lugar em Lisboa – missa na Igreja da Luz e almoço, no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Pediram desculpa e deixaram de comparecer, devido à sua idade já avançada e… às dificuldades de transporte.

Anos mais tarde, a mesma irmã, o marido e outro irmão do Nascimento tomaram parte em várias reuniões – a última das quais, em Aveiro, de triste memória pela maneira como fomos, ali, tratados e… estávamos num quartel de paraquedistas! Enorme bronca! Hoje, a irmã do Nascimento vive num asilo e o irmão já faleceu. A lápide, em memória do Nascimento foi colocada na sua sepultura pela irmã (de quem falámos) na companhia do Santo Marques, o apontador de morteiro, ferido em Caurbá e do Tavares. Certamente, esta nossa atitude terá despoletado a decisão da Junta… ou talvez não…

Sabemos que as obras de alargamento e remodelação estão em andamento mas são obras públicas e, nas pequenas freguesias do interior o dinheiro não abunda; por vezes surgem obras mais ou menos prementes e tudo se complica. Convenhamos que, em nosso modesto entendimento, a homenagem a um herói da Pátria não deveria – não poderia, em acaso algum, ser relegada para segundo plano. No entanto, sabemos que, nos tempos que correm, tudo pode acontecer. Basta mudar a cor política dos membros da junta. As justificações inócuas e um tanto estapafúrdias surgem fora de tempo e… o carro não se move. Aguardemos por melhores dias!

Falemos um pouco sobre este nosso companheiro. Como sabem, era natural de Casal das Águas de Verão um nome claramente bucólico – freguesia de Sarzedas. Um outro companheiro, o soldado n.º 2179, Francisco Lopes Mendes, chamava-lhe “Sarrazedas” – eram bons amigos e, lá na santa terrinha eram quase vizinhos; pelo menos agiam como tal. Creio que já se conheciam antes da tropa.

O Nascimento era frontal mas respeitador e educado. Estava sempre disponível para qualquer serviço dentro ou fora do aquartelamento.

Um dia o alf. Tavares “teve” de ir para o mato, comandando o 1.º pelotão, o do alferes Costa, durante uma patrulha, lá para bandas de Sanjalo, quando o alf. Foitinho comandava a CCaç 675, devido ao ferimento gravíssimo do nosso mui ilustre capitão. Enquanto deglutia uns goles de café, o Tavares transmitiu ao Costa:
- Logo, à hora determinada, tu sais com o meu pelotão para nos recolher, junto à ponte sobre o rio Caur. Tal como não quero que o teu grupo saia sem um oficial, também não gosto que tal aconteça com o meu!

O alf. Costa respondeu que, à hora prevista, já estaria melhor e, de qualquer modo, sairia com o 3.º pelotão. Assim aconteceu.

O alf. Tavares recorda que o pessoal do 1.º pelotão se comportou, naquele dia, como gente adulta; parecia que já tinham andado, longos tempos sob as ordens do Tavares. Este alferes afirma que os seus subordinados, olhando para ele e pelo movimento dos lábios e dos olhos, entendiam o que ele pretendia que se fizesse. Com os soldados do 1.º pelotão, tal não poderia acontecer, pois era a 1.ª vez que atuavam sob o seu comando. No entanto, todos se comportaram como deviam e como o Tavares pretendia… não houve falhas! A boa vontade supriu a habituação. Faltava esta nota de agradecimentos aos militares do 1.º pelotão, pelo seu comportamento exemplar, naquele dia… e não só!

Mais ou menos à hora pré-determinada, os nossos três grupos de combate encontravam-se junto à ponte atrás citada, na margem esquerda do rio. Logo, o Tavares transmitiu ao Costa, como segue:
- Toma conta dos teus soldados; eu vou juntar-me ao meus.

O Tavares subiu para uma das viaturas e, logo, o Nascimento se colocou em sentido; disciplinada e educadamente, perguntou:
- Meu alferes! Dá licença?
- Sim! - Respondeu o Tavares.

Ele começou:
- Nós temos um alferes para sair connosco para o mato! Não queremos ser comandados por outro, a não ser que o senhor, por qualquer motivo válido, esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, certamente, nós não sairemos para o mato com outro oficial e… seja o que Deus quiser!

O Tavares argumentou:
- Hoje, antes da saída, aconteceram coisas muito desagradáveis! Não houve tempo para vos avisar e, mesmo assim, saímos com mais de meia hora de atraso. Isto, como sabem, é sempre perigoso, porque pode comprometer a segurança do grupo.

O Nascimento pretendeu desabafar (algo estava atravessado na sua garganta) e voltou à carga:
- O nosso alf. Costa não estava em condições de ir para o mato, a comandar os seus soldados mas teve condições para passar o resto da noite e manhã a agredir os dois subordinados que apenas fizeram o mesmo que ele. Isso é que nos fez sair do sério! Conduziu-nos a esta situação muito desagradável.

O Figueiras, um algarvio ciclista, sold. Nº 2033, entrou na conversa, alegando:
- Já cá não está quem falou! Está tudo devidamente esclarecido! Creio que devemos encerrar este assunto! Se possível, devemos esquecê-lo!

Em boa verdade, aquele tema passou à história, excepto, o que aconteceu, umas horas mais tarde.

(continua)

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Nota do editor

Vd. post anterior de 22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)

segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É um livro de memórias onde logo nas primeiras páginas se dá a entender que estalou uma rebelião espiritual entre a aprendizagem e o sentido da ordem e o tremendo enganador equívoco de uma guerra sem sentido, o militar que vai participar numa grande operação apregoada como aniquiladora da resistência da guerrilha descobre o completo sem sentido da mesma, a operação não passa de um ato de vaidade para fazer esvoaçar as asas do pavão; de Angola para Moçambique, formando uma companhia de comandos e depois de um compasso de espera de novo num batalhão de comandos africanos, desta feita na Guiné, a consciência está plenamente desperta, a guerra caminha para o abismo, e daí um militar conjugar esforços com outros e vamos ouvir a história da formação do movimento dos capitães da Guiné. As memórias continuam, o capitão aderiu ao PREC, dele tirará os seus ensinamentos, como conversaremos a seguir.

Um abraço do
Mário



Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (2)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D - Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

É na região de Tete, em maio de 1971, que aquele capitão, comandante de uma companhia das tropas especiais, fez a pergunta do que efetivamente estava a fazer naquele fim do mundo. O poder destas memórias de Carlos de Matos Gomes assenta na sinceridade com que fala das razões por que escolheu a instituição militar, como foi descobrindo que se estava a hipotecar uma juventude em nome de um puro devaneio imperial, sem qualquer sustentação temporal, confrontado com decisões operacionais de opereta, caso da Operação Nó Górdio iniciada em 1 de junho de 1970, e que lhe dará alimento fecundo para essa obra-prima que é o "Nó Cego".

 Não apóstrofa, não incensa os condimentos do horror, exprime-se naturalidade quando fala dessa fada-madrinha que dá muito jeito na guerra, a sorte. Há para ali a explosão de uma morteirada, provocou muitos feridos, mas ele tece louvores à sorte:

“A minha sorte é que rebentou no pé de uma árvore de bom diâmetro, precisamente do lado oposto à minha posição. Mesmo assim, apesar da sorte de a árvore ter ocultado parte da explosão e estilhaços, fui atingido ainda por alguns deles, felizmente pequenos, um dos quais me partiu o dedo mindinho da mão esquerda, outros quatro alojaram-se nas costelas e osso do antebraço direito. Ainda hoje aqueles estilhaços encontram-se alojados nas minhas costelas e antebraço direito. Outros estilhaços muito pequenos espalharam-se pelas costas sem graves consequências.” Bem dita árvore!

Aquelas grandes operações não serviam para nada, não solucionavam a guerra.

“A minha geração cumpriu até concluir que não lhe cabia cumprir a ordem de sacrificar a sua nação.” 

Partira para Angola em 1969, regressava a Lisboa no verão de 1971. É também para isso que servem os livros de memórias, para contarmos de onde vimos, a nossa ancestralidade, por onde andamos na juventude, como chegou à Academia Militar. E como se ofereceu para a Guiné, não escondia a curiosidade de encontrar nas atividades do General Spínola uma resposta que podia ajudar a esclarecer as suas questões e com o regime. 

Ofereceu-se para assessorar uma companhia de comandos africanos, decidira que esta seria a sua última comissão em África, enquanto militar profissional não acreditava na vitória militar e enquanto cidadão não aceitava que se continuasse numa guerra sem que os portugueses se pronunciassem sobre ela.

Spínola e um direto colaborador, o Major Almeida Bruno, congeminaram a constituição de um Batalhão de Comandos Africanos. Spínola deu uma explicação a Matos Gomes:

“As tropas europeias assegurariam o apoio de fogo e de combate, enquanto não existissem quadros locais para as guarnecer. A Força Aérea e a Marinha continuariam a cumprir as suas missões, mas integrando o maior número de quadros locais que lhe fosse possível. O Batalhão de Comandos Africanos seria a principal unidade de combate ofensivo. Spínola pretendia criar um exército guineense, tendo como objetivo final umas Forças Armadas da Guiné, em que os militares portugueses fossem quadros técnicos.”

O novo centro de instrução de comandos é localizado em Mansabá. Matos Gomes ambienta-se, comanda uma das operações típicas da manobra política e militar de Spínola, no Quínara, a missão consistia em atravessar a península que integra São João, Tite e Fulacunda. Houve fogo quanto baste.

“Aprendi na Guiné que o mais seguro é passar a noite na bolanha, porque a lama absorve as explosões das granadas, basta que não nos caiam em cima. O problema são as marés. A técnica de estacionar em círculo à noite também não era usada pelos comandos africanos – todos passávamos a noite em linha, primeiro de cócoras, depois de pé, à medida que a água subia.”

Assim decorreu a sua primeira experiência como assessor das tropas africanas em combate. Vai obtendo informações quanto às tentativas de negociação de Spínola com Léopold Senghor, Marcello Caetano rejeita tais conversações.

O autor reflete sobre os comportamentos um tanto paradoxais do carismático Spínola que na Guiné parecia um político capaz de ler o “tempo da História” e que depois do 25 de Abril cometeu erros absurdos, chegando a ligar-se aos radicais do Estado Novo, aos vigaristas reunidos no MDLP/ELP, e procura dar uma explicação:

L“Na Guiné ele agiu por desejo de glória, de ganho político, e para alcançar esses fins identificou-se, através de gestos de simpatia com a população, caso dos Congressos do Povo. Embora pelo que lhe diziam os seus assessores ele estivesse convencido do contrário, os portugueses não conheciam Spínola e depararam-se com uma figura anacrónica, que surgiu desfocada nos ecrãs a preto e brancos das televisões na noite de 25 de Abril de 1974.”

Naquele desesperante mês de maio de 1973, numa tentativa de romper o cerco em Guidage, terá lugar a Operação Ametista Real, que cumpriu o seu objetivo. E o autor dá-nos conta de como se vai dando a fermentação do movimento dos capitães na Guiné, quem é quem, onde se reúnem, e aproveita para nos dar um contexto de tudo quanto ia ocorrendo em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral, a reação do PAIGC, tomara a iniciativa de forma espetacular, pois alcançara valores que eram os mais altos de sempre desde o início da guerra: 220 ações provocando às nossas tropas 63 mortos e 269 feridos.

É no aceso desta ofensiva do PAIGC que chega a notícia da realização de um Congresso dos Combatentes, impulsionada pela extrema direita, gera-se uma movimentação contra o congresso, não só na Guiné, em Lisboa também há descontentamento, é um movimento de contestação encabeçado por Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço, digamos que é uma ironia, mas aquele congresso realizou-se enquanto se desenrolava uma tragédia em Gadamael, que foi mantida mas onde os militares portugueses sofreram 24 mortos e 147 feridos. E Matos Gomes escreve:

“Durante o mês de maio de 1973, a guerra na Guiné entrou num ponto de não retorno. Ao atacar quase simultaneamente no Norte, em Guidage, e no Sul, primeiro em Guileje e depois em Gadamael, o PAIGC revelou o esgotamento do potencial de combate das forças portuguesas na Guiné e da capacidade de reação a ataques combinados de controlo do território, resistindo e mantendo-se em duas frentes. O PAIGC, do seu lado, ficou a saber que dispunha de capacidade para desencadear dois ataques em força e vencer um. Poderia repetir a manobra e iria fazê-lo no início de 1974 com o cerco a Canquelifá, onde o Batalhão de Comandos Africanos conseguiu resistir duas vezes; porém, se fosse aberta outra frente, já não haveria reserva quando os paraquedistas fossem empenhados.”

Costa Gomes chega à Guiné em 8 de junho, decide-se remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo, aprova-se um plano de retraimento do dispositivo militar que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. 

Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e o território defensável; no entanto, ela é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal, militar e politicamente indefensável.” 

Em agosto, Spínola regressa definitivamente a Lisboa.

Matos Gomes dá a sua versão do nascimento do MFA, chega, entretanto, o sucessor de Spínola, o general Bethencout Rodrigues. Tece um apontamento dos acontecimentos de Canquelifá e assim chegamos à tomada do poder da Guiné de 26 de abril. 

PA 16 de junho de 1974, Matos Gomes está de regresso, temos agora o quadro preparatório que o vai transformar num ativista revolucionário, iremos ouvir falar no COPCON, no Batalhão de Comandos nº11, em Jaime Neves, no 28 de setembro, nas campanhas de dinamização cultural, na efervescência política do PREC, nos acontecimentos do 11 de março e a respetiva assembleia do MFA, nos gabinetes de dinamização das unidades, num bizarro oficial muito ligado ao MRPP, o major Aventino Teixeira, estamos em pleno verão quente, Matos Gomes anda esfusiante, ele e Jaime Neves demarcam posições, nisto surge o Documento dos Nove, com as suas propostas de moderação.

 Caminha-se para o precipício, Matos Gomes, com invulgar crueza e frieza, dá pormenores de como se chega ao 25 de novembro de 1975 e o depois, a caminhada que ele impôs a si próprio.

(continua)

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Nota do editor

Post anterior de 18 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)



C. CAÇ. 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I

Belmiro Tavares

A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!

Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!

Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.

Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!

Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.

Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.

Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.

A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!

O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!

Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.

Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.

A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.

Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.

A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:

- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.

A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:

- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.

O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).

O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.

Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.

O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!

Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:

- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.

Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa. 

Conclusão:
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.

Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.

No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.

Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.

Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:~

- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!

Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!

Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.

O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!

Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.

Acreditem que é verdade!

Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!

Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!

Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.

A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!

Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!

O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.

Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada. 

Desgraçadamente, o Martins foi o nosso primeiro morto, após o regresso da Guiné. Faleceu numa deslocação que fez a Tondela, a sua terra natal, para visitar a sua mãe. Faltou-lhe ali, certamente, um “enfermeiro Martins” para que não perdesse a vida em um miserável acidente com uma motorizada.

Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!

O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!

Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.

Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.

Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.

O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.

Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.

Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.

O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.

Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.

Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.

Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.

À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.

Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.

Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!

Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.

No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.

A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.

Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.

No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.

Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!

Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.

Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!

Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!

Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.

Lisboa, julho de 2023

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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Guiné 61/71 - P24305: Armamento do PAIGC (4): Morteiro pesado 120 mm M1943, de origem russa, usado nos ataques e flagelações a aquartelamentos das zonas fronteiriças, como Gandembel, Guileje, Gadamael, Guidaje, Copá ou Canquelifá


Guiné > PAIGC > 1973 > O temível morteiro 120 mm, usado na batalha dos 3 G (Guidaje, Guileje, Gadamael)... Só Guileje tinham abrigos  feitos pela Engenharia Militar, o BENG 447, à à prova de morteiro pesado...  As granadas tinham uma espoleta de atraso, perfurante, permitindo um melhor desempenho, após uma perfuração inicial das estruturas dos abrigos.

Foto (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Sector L4 >  Canquelifá >  Março de 1974 > A desolação da guerra... A tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas, em 18 de março de 1974...

Foto (e legenda): © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]


1. Continuando a série "Armamento do PAIGC" (*), apresenta-se hoje o morteiro pesado 120 mm, usado contra alguns aquartelamentos de fronteira, tais como Guidaje, Guileje e Gadamael, em maio e junho de 1973, Copá, em janeiro de 1974, ou Canquelifá, em março de 1974, mas já também em 1968 contra Gandembel, Cameconde, etc.

A estreia foi contra Gandembel em agosto de 1968. As bases de fogos eram sempre localizadas no território da Guiné-Conacri. Foi utilizada, contra as NT, como arma de artilharia. E não tinham, à exceção de Gandembel, Guileje e pouco mais, abrigos à prova do morteiro 120 mm. Os nossos "bunkers" eram "bu...rakos", escavados na terra, e com cobertura de terra, chapa de zinco e troncos de cibe...

 
 O nosso especialista em história da artilharia e armas pesadas do PAIGC, cor art ref Nuno Rubim (de quem não temos, infelizmente, notícias há muito) escreveu aqui em tempos (**):

(...)  As munições do morteiro de 120 mm tinham efectivamente uma espoleta de atraso, perfurante, para permitir o rebentamento da granada já depois de ser obtida alguma penetração.(...)

É dele também a foto do mroteiro 120 mm que publicamos acima.

2. Temos muito pouca informação técnica sobre esta arma usada pelo PAIGC, desde pelo menos desde agosto de 1968 (contra Gandembel, segundo testemunho do nosso camarada Idálio Reis, e confirmado pela  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pág. 143).

Devido ao seu peso (275 kg,  sem contar com os cunhetes das granadas), esta arma coletiva, de tiro curvo, só podia ser rebocada e usada nas zonas fronteiriças. 

Em 1968, e segundo a mesma fonte (CECA, 2015, pág.145), o PAIGC, além de já estar dotado de meios de transmissões, e de já dispor do canhão s/r  8,2 cm "Tenasrice" (facilmente transportável e pondendo disparar, apoiado no ombro do atirador!), também tinha feito progressos no que diz respeito aos meios de transporte: dispunha, em 1969, de cerca de meia centena de viaturas Zil e Gaz, para além de alguns autotanques e algumas automacas. Essas viaturas,  todavia, só circulavam nos países limítrofes (Guiné-Conacri e Senegal), não ultrapassando, em regra, a  linha fronteiriça.

Segundo a mesma fonte, "o morteiro 120mm, com um alcance de 5700 metros" era uma arma que "no exército  soiviético, estava a substituir o morteiro 8,2cm", o que não é comfirmado pro outras fontes que consultámos...

Segundo a Wikipedia (em inglês), julgamos que se trata do morteiro M1943 ou 120-PM-43 (em russo: 120-Полевой Миномёт-43) ou o morteiro de 120 mm Modelo 1943 (em russo: 120-мм миномет обр. 1943 г.), Era também conhecido como Samovar.

Com cano de alma lisa, calibre 120 milímetros, foi introduzido pela primeira vez em 1943 como uma versão modificada do M1938. Na prática, veio substituir o M1938 como arma-padrão para baterias de morteiro em todos os batalhões de infantaria soviéticos no final dos anos 1980, embora os exércitos do Pacto de Varsóvia utilizassem um e poutro modelo.

Especificações técnicas:
  • Peso total: 275 kg (tubo, bipé e prato);
  • Granada (HE-120): 16 kg; (granada altamente explosiva);
  • Equipagem:  6 elementos;
  • Calibre: 120 mm;
  • Carregamento: granada introduzida pela boca do tubo que tinha, no fundo, um percutor fixo;
  • Elevação: +45° a +80°; 
  • Cadência de tiro: 9 tiros por minuto no máximo, 70 tiros por hora no máximo;
  • Velocidade inicial da granada: 272 m/s (Frag-HE & HE);
  • Alcance efetivo de tiro: máximo de 5.700 m, mínimo de 500 m.  

A Guiné-Conacri é um dos países que ainda dispõe, atualmente, desta arma tal como a Guiné-Bissau (neste caso, uns 8 morteiros, não sabendo nós se algum é "sobrevivente"  do tempo da guerrilha)...

Esta arma, de carregar  pela boca,  pode facilmente ser dividida em três partes (tubo, bipé e prato) para movimentação em distâncias curtas ou rebocada por um camiã0  Zil ou Gaz numa atrelado de duas rodas.

É um sucedâneo do 120-PM-38 ou M1938 , Os russos eram "bonzinhos" mas não eram "parvos": não sabemos se não terão mandado para Conacri (e/ou para o PAIGC)  alguns exemplares desta "sucata da II Guerra Mundial"... 

O morteiro soviético 120-PM-38 ou M1938, de 120 mm,  foi  usado em grande escala pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Embora fosse um projeto convencional, a combinação de 4 factores (peso,  mobilidade, poder de fogo e alcance) levou ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas versões, como o 120-PM-43.

Já em 1968 e 1969, o IN utilizava o morteiro 120mm contra aquartelamentos fronteiriços no sul: Guileje, Gadamael, Cameconde, Cacine...At6é 1970, as NT náo capturaram nenhum morteiro pesado do IN.

Na Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, foi batida a zona de Campiã / Cantiré, sector L4, nas proximidades de Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a très agrupamentos. Na zona estava referenciada uma base de fogos IN.  

No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: (i) 3 morteiros 120 mm; (ii) 367 granadas de morteiro 120 mm;  (iii) 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingaradas automáticas Kalashnikov;  e (v) material diverso. 

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas  três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). 

Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN.  (Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)
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(...) No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia 1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos. (...)

Comentário do C. Martins (3 de julho de 2022 às 03:16):

(...) A descrição feita pelo sr. ex-capitão "comando" Ferreira da Silva, hoje coronel e advogado, está muito correta com a excepção da granada que provocou 3 mortos e 12 feridos, não caíu na cobertura da zona de descanso, mas sim dentro do espaldão,tendo ficado o obús inoperacional Nunca mais tantos homens ficaram dentro do espaldão.

O quartel ficava a 4 km da fronteira. As bases de fogos do IN ficavam todas dentro da Guiné-Conakry, sendo as peças, morteiros, grads, etc.. manobradas por cubanos.  (...)

Era muito difícil fazer contra-bateria. Felizmente para nós o IN tinha maus artilheiros, com excepção de um dia de fevereiro/74 em que as "enfiaram" todas na orla da mata em frente aos obuses, com granadas perfurantes e incendiárias; se tivessem corrigido o tiro em 100 metros mais à frente, hoje  eu não estaria certamente a escrever estas linhas. (...)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973