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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Guné 61/74 - P26069 O Spínola que eu conheci (37): "Nunca foram ao Senegal ?!... Deixe-se de rir, nosso alferes, pois comecem a pensar em ir lá"... (A. Marques Lopes, 1944-2023)


Guiné > Região do Caheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > À direita.  ex-alf mil at inf, A. Marques Lopes, que comandava o grupo Os Jagudis.   Ao centro, o seu guarda-costas, e à sua esquerda, presumimos nós, o cap art Carlos Alberto Marques de Abreu (promovido a coronel, em 2/5/1989), e aqui numa foto rara.

 Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O gen Spínola em Infandre (1970).
Foto: Arquivo do blogue Luís Graça &
 Camarafdas da Guiné

1. Recorde-se que o nosso querido e saudoso A. Marques Lopes (1944-2024), ex-alf mil, CART 1690 (Geba, 1967/69) foi  evacuado para a metrópole, na sequência de uma mina A/C que matou o cap inf Manuel Guimarães e que o feriu também a ele,  na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967 (*). 

Ao fim de nove meses de tratamento e recuperação no HMP, em  Lisboa, voltou para o CTIG, em maio de 1968, para cumprir mais 10 meses de comissão de serviço, neste caso na CCAÇ 3, que estava aquartelada em Barro, na região de Cacheu, mesmo junto à fronteir com o Senegal. Passou  a comandar um  grupo de combate que mais tarde se irá chamar... 
"Jagudis" (abutres).

Na altura o comandante era o cap art Carlos Alberto Marques de Abreu (capitão Alves, no livro "Cabra Cega"). ("Depois do 25 de Abril será adjunto do general Spínola; conheci os pais dele, que tinham um restaurante na Calçada do Combro, em Lisboa.") (**).

Passado pouco tempo de chegar à CCAÇ 3, "creio que em junho de 1968, o general Spínola foi a Barro", numa visita relâmpago, que o autor de "Cabra Cega" recontitui, com muita piada.  (    (Lapso do autor: em junho de 1968, Spínola ainda era brigadeiro, e com um mês de Guiné ainda não deveria ser conhecido por "Caco  Baldé"-)

Vamos selecionar alguns excertos das pp. 491/495, e fazer um resumo deste episódio.


2. O A. Marques Lopes [Aiveca, no livro ] estava a descansar, depois de uma noite passada no "tarrafe do Cacheu à  espera que os guerrilheiros passassem" (pág. 491). Chegado às seis da manhã, morto de sono, tirou o camuflado, nem tomou banho, atirou-se para cima da cama... 

"O ruidoso girar característico das pás dos helicópteros" (pág. 492), fê-lo saltar da cama, a ele e ao outro alferes, o Rudolfo (nome fictício). 

(...) Vestiram os calções e enfiaram as chinelas nos pés (...)  Foram para a porta da secretaria. Já lá estavam o cabo escriturário e o primeiro sargento, este todo aprumado:

 Vem aí o nosso general!  – anunciou, embevecido. (...)

Os dois alferes "viram com espanto o Caco Baldé a aproximar-se em passo decidido, olhar penetrante e pingalim da ordem". Vinha acompanhado pelo comandante da CCAÇ 3... e "todo emproado no camuflado limpo e brilhante pelo uso em cerimónias, de luvas impecáveis e boina vermelha berrante", o ajudante de campo "com a G3 em prontidão, coronha poisada no quadril" (pág. 492).

(...) O Rudolfo mostrou-se preocupado...

 – É, pá, não podemos receber o general em tronco nu, de calções e chinelos.

  Oh, agora, chapéu. Ele  está perto e já olhou para nós. Quando aparece assim de repente, o que é que pode esperar ?
 
O general chegou ao pé deles e o capitão apresentou-os:

   Meu general, estes são comandantes de dois pelotões da minha companhia. Há um que está a montar emboscada num corredor de infiltração e outro está num destacamento. (...)

O Lopes instintivamente ia levantar a mão para bater a pala, mas deu conta que estava "desfardado"... 

(...) Mas o Rudolfo não pensou e fez mesmo a continência. Ninguém ligou, nem o general (pág. 493). (...)

O Lopes [ Aiveca, no livro] achou que devia dizer qualquer coisa, pediu desculpa ao general, dizendo-lhe que não estava à espera e tinha passado toda a noite no mato (...).

   Deixa-te disso, pá. Vamos lá que estou com pressa, quero ir falar com o major do COP  [que era na altura o Correia de Campos ]. (...)

Depois, entraram na secretaria e falaram da atividade operacional, dass infiltrações do PAIGC a partir do Senegal, da missão do COP,  mas também da situação do pessoal e dos problemas de alimentação em Barro.  

(...) Toma nota    ia dizendo o general para o [ajudante de campo, o cap cav  'cmd Almeida Bruno, maio 68 / julho 70].

Este, que pusara a G3, tinha agora um pequeno bloco na mão.

O Aiveca esteve tentado a dizer  que a carne que tinham, era das vacas que, às vezes , iam roubar às aldeias fronteiriças do Senegal, ou daquelas que caíam nas armadilhas que montavam nos carreiros e que os elementos do PAIGC traziam para atravessar o Cacheu. Os gajos das tabancas não querium vender vacas. Mas preferou ficar caladinho, o capitão que desbroncasse. 

 O Caco Baldé ajeitou o monóculo e mudou de conversa.

   Quais são as etnias dos grupos de combate ?

   Meu general, a maior parte são fulas e balantas, mas há de outras etnias, e estão misturados.

  Então vai separá-los, nosso capitão. Fulas num grupo de combate e balantas noutro. Dá mais unidade a cada um e pode criar emulação entre eles. " (pág. 494).

Ninguém disse nada. Não havia nada a dizer porque aquilo foi dito em tom de uma ordem.

  Já alguma vez foram ao  Senegal ?   perguntou po general.

O Aiveca riu-se,  mas depressa ficou sério. O general e o adjunto olharam para ele como que a pergunhtar qual era a piada. O capitão e o Rudolfo ficaram apreensivos, a interrogar com o olhar se ia falar das vacas roubadas no Senegal. Viu que tinha de dizer alguma coisa.

   Peço desculpa, meu general, mas é que nós  nunca fomos ao Senegal.

   Então deixe de se rir, nosso alferes. Comecem a pensar em ir lá (pág. 495)...

E lá abalou a caminho do heli...

3. Conclusão tirada pelo A. Marques Lopes, no poste P47 (**), um dos primeiros que publicámos no blogue, em 6 de junho de 2005:

(..) "   Vocês já foram ao Senegal? 

"Eu, e os outros, que não sabíamos o que ele queria, dissemos que não (já tínhamos ido várias vezes a Sano, Sonako e Samine para roubar vacas e queimar casas). E ele disse:

"–  Então, têm de pensar em ir lá.

" E lá fomos mais à vontade. O roubar vacas era uma preocupação, pois era a nossa subsistência. Muito raramente, havia um abastecimento feito pelos fuzileiros através do rio Cacheu. Às vezes, vinha uma Dornier trazer o correio e os chamados frescos. A maior parte das vezes comíamos arroz e rações de combate, ou, então, uma dobrada hidratada que saltava da panela assim que aquecia. Só tínhamos carne quando havia vacas. (...) (**)

E foi assim que ele conheceu, ao vivo e a cores, o novo com-chefe e governador da Guiné, que tinha acabado de chegar ao CTIG, e que será promovido à categoria de general apenas um ano depois, em julho de 1969... (Há aqui uma notória dissincronia por parte do A. Marques  Lopes ao tratar o Spínola por general em junho de 1968.) (***)

 ______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25978: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (9): a última foto do cap art Manuel Guimarães, cmdt da CART 1690, tirada instantes antes de morrer, na estrada Geba-Banjara, vítima de uma mina A/C, em 21 de agosto de 1967

(**) Vd. poste de


(***) Último poste da série > 26 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26053: Timor Leste: Passado e presente (25): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo IV: a situação sanitária em 1944: "um presente desolador e um futuro sombrio"...


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 6 > Ação Civilizadora e Colonizadora > Vila Salazar (Baucau)


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 > Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Chefes tradicionais e suas esposas (e um labáric, criança em tétum):  Dom Aleixo, régulo de Ainaro, António Magno, chefes e suas mulheres. D. António Magno, de Ainaro, é o terceiro a contar da esquerda, na primeira fila dos homens.


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 >  Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Talvez o liurai Carlos Borromeu Duarte, de Alas



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Estimativa da população: 472,2 mil

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)


1. José dos Santos Carvalho (de quem não conhecemos nem temos uma única foto) foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro, da parte dos australianos e holandeses, e, depois,  dos japoneses).  

Exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane,nas imediações de Díli,  desde meados de 1943. Deva ter uma dupla formação em medicina tropical e saúde pública (ou medicina preventiva, como se dizia nesse tempo).

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território (seguindo pela rota do Cabo). Desembarcou em Díli nas vésperas do ano novo de 1943.

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas vivências,  recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio. 

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), que têm algum interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor.  

Um produto da Bayer,
antes da "bala mágica". Fonte: cortesia de 
Museu da Farmácia de Brixen (ou Bressanone),
Itália

Igualmente são interessantes para a história  da medicina tropical e para se conhecer o limitado e obsoleto  arsenal terapêutico da época bem como as causas da morbimortalidade nas colónias  

Havia produtos, por exemplo, como o calomelano (ou cloreto mercuroso) que era  
usado como purgante e fungicida, hoje descartado devido à sua toxicidade; ou o neosalvarsan (que veio substituir nos anos 10/20 do século passado o altamente tóxico salvarsan),  usado no tratamento da sífilis, antes do aparecimento da penicilina (a "bala-mágica", já disponível na farmacopeia ocidental desde 1941, mas completamente desconhecida em Timor nessa época; de resto, o farmacêutico, o   capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira, foi o primeiro a desaparecer, tendo-se refugiado na Austrália). 

Antes da guerra, a farmácia era reabastecida semestralmente, com produtos oriundos da Metrópole...

O dr. José  dos Santos Carvalho nunca deixou de elaborar esses relatórios,  apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico e  chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. 

Não sabemos se chegaram, na altura, ao conhecimento de quem de direito, para além  do governador da colónia (que, na prática, esteve, durante os três  anos de ocupação, na situação de refém dos japoneses e sem possibilidades de comunicação com Lisboa).

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, terá sido  escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 

O livro e o autor merecem, contudo,  não ser esquecidos. 

Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico de Investigação Tropical.

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, continuamos a 
reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. 

A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde das populações e os serviços de saúde são tão  vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores e privações.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo IV:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1944) (pp. 156-169)


(i) "Não houve epidemias nem se registaram casos 
de doenças eminentemente contagiosas."...  
A afirmação consta do relatório dos serviços de saúde de Timor, 
respeitante ao ano de 1944, e é subscrita pelo dr. José dos Santos Carvalho, chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene... 

Como se a guerra, a ocupação japonesa, a guerrilha e a contraguerrilha, o terror das "colunas negras", o isolamento total dos portugueses e dos timorenses, a fome, as deslocações, etc.,  não tivessem sido em si uma verdadeira calamidade...


(ii) de tempos a tempos, o cônsul do Japão serve de intermediário 
com as tropas ocupantes e, inclusive, consegue dispensar algum material médico-hospitalar ao dr. José dos Santos Carvalho.

(iii) recorre-se também aos médicos militares japoneses 
em casos em que um doente necessita de  uma grande cirurgia;

(iv) estranhamente há poucas referências à saúde da população local 
(que no princípio dos anos 40 seria superior a 400 mil): 
espalhada pelas montanhas,  não parece afluir aos serviços de saúde 
em Lahane e Liquiçá,  sobretudo por razões de segurança 
(medo dos bombardeamentos dos Aliados,  
e das represálias dos nipónicos); 
por essa razão, e devido também 
ao confinamento do próprio médico,
há um evidente enviesamento nestes relatórios, 
onde se fala sobretudo da saúde 
da pequena comunidade portuguesa e dos assimilados 
(cerca de 160 pessoas);

(v) os profissionais de saúde (com apenas 2 médicos) 
estão reduzidos ao mínimo (18, de um quadro original de 52, 
dos quais restavam 34 em 1943).

(...) Estado sanitário da população 

(...) Não houve epidemias nem se registaram casos de doenças eminentemente contagiosas. O sezonismo [paludismo ou malária], endemia que reina em Timor, mostrou-se em inúmeros casos, a que, felizmente, pudemos atalhar por termos recebido quinino. Não nos foi possível, porém, distribuí-lo com fins profiláticos, como seria conveniente. 

Muitos portugueses não têm rede mosquiteira nas camas, as aberturas das casas não são protegidas com redes metálicas e é impossível fazer-se uma campanha antimosquito. Por isso a estatística mostra muitíssimos casos de sezonismo, felizmente benigno, com exceção de dois casos de sezonismo pernicioso cerebral, um em Lahane, numa menina de quatro anos, que felizmente se salvou, e outro em Liquiçá, numa rapariga de quinze anos, filha de pai europeu, que faleceu com um acesso pernicioso epileptiforme.

 A febre biliosa hemoglobinúrica atacou dois europeus: um de dezasseis anos, que faleceu, em Maubara; outro de oito anos de idade, que foi salvo, em Liquiçá. 

A caquexia palustre matou uma criança, em Liquiçá. 

Registou-se somente um caso de disenteria, em Liquiçá. 

A gripe foi rara. 

Registaram-se dois casos de tuberculose: pulmonar, um num europeu e outro num timorense. 

Uma senhora teve várias hemoptises.

 As úlceras e feridas, como de costume, foram muito frequentes. 

Apareceram doenças resultantes da carência ou defeito da alimentação. 

As doenças restantes foram: 
  • cáries dentárias
  • diarreias 
  • colites
  • enterites
  • helmintíases
  • dispepsias 
  • dermatoses (sobretudo a sarna, furunculose e a micose designada por "Hong-Kong foot") [ou pé de atleta]
  • abcessos
  • boubas
  • reumatismo
  • nefrite
  • blenorragia
  • ascite 
  • otite
  • conjuntivite 
  • infeção puerperal.
Registaram-se seis óbitos, em Liquiçá e Maubara (em Díli não os houve) de europeus ou seus descendentes, por:
  • diarreia infantil 
  • caquexia palustre 
  • sezonismo agudo 
  • acesso pernicioso epileptiforme 
  • febre biliosa hemoglobinúrica 
  • gripe (insuficiência cardíaca) 
  • tuberculose pulmonar  (...)
 
Entre os portugueses, não europeus, tratados nas enfermarias, houve vários óbitos: 

(a) Em Liquiçá e Mambara: 

  • diarreia crónica (2)
  • tuberculose pulmonar (2) 
  • anasarca (hipoalimentação) (1)
  • traumatismo (queda) (1) 
  • cirrose alcoólica (1)
  • debilidade congénita (recém-nascido) (1)
  • parto (1)
  • infeção puerperal (2) 
(b) Em Lahane :

  • caquexia palustre (1)
  • gangrena (1)
  • astenia (1)
  • sezonismo pernicioso (1)
  • beribéri (1)

TOTAL 16 
 
(...) O óbito por gangrena deu-se numa timorense que veio pedir tratamento ao nosso hospital, passados dias de ter sido ferida num pé por estilhaço. Era impossível salvá-la por a gangrena estar já generalizada. 

A média de doentes internados no Hospital Dr. Carvalho foi de quatro, por dia. 

Pelo acima dito conclui-se que o estado sanitário da população não foi mau, atendendo às lamentáveis circunstâncias em que vivemos que, sem exagero, podem ser classificadas de péssimas. 

Os meses de junho e julho foram os piores, devido ao elevado número de casos de sezonismo, pelo que foram classificados de maus pelo senhor Delegado de Saúde de Liquiçá [ dr. Francisco Rodrigues]; fevereiro e agosto foram bons e os meses restantes regulares. 

Em Lahane o estado sanitário, abstraindo do sezonismo, com que sempre contámos, pôde, sempre, considerar-se regular. Não nos atacaram a valer os gérmenes infecciosos. As nossas forças e resistências orgânicas é que estão muito desfalcadas, devido a vários factores que descreverei na parte deste relatório respeitante à Higiene Pública. 

Medicamentos e material de penso 

Foi-nos fornecido durante o ano, por intermédio do sr. Cônsul do Japão, o seguinte : 

  • bicarbonato de sódio 
  • dermatol 
  • calomelanos 
  • lactose 
  • neosalvarsan 
  • sufaminum 
  • salicilato de bismuto 
  • sulfato de magnésio 
  • óxido amarelo de mercúrio 
  • tablóides de quinino (...)
  • ataduras de gaze (diversos tamanhos) 
  • gaze (...) 
  • algodão hidrófilo (...)
  • material diverso 
  • seringas de vidro (...) 
  • irrigadores
  • frascos conta-gotas
  • tubo de borracha para irrigador (...)

Sempre que há transporte, tenho mandado [de Lahane] para Liquiçá o máximo possível dos medicamentos que nos restam. 

Não se podem enviar grandes quantidades de medicamentos em frascos pois é necessário que estes vão bem acondicionados em caixotes para que não partam com os solavancos da camioneta. Os medicamentos expedidos em maior quantidade, durante o ano, foram: 

  • vaselina (32 kg)
  • enxofre (5 kg) 
  • sulfato de sódio (20 kg)
  • mel (6 litros)
  • borato de sódio (15 litros)
  • glicerina (2 litros)
  • ácido bórico (5 litros)
  • permanganato  de potássio (1,400 kg)
  • sulfato de cobre (6 kg)
  • calomelanos (0,450 kg)

Faltam-nos muitos medicamentos. Aqueles cuja necessidade mais se tem feito sentir, são os:

  • tónicos e antianémicos (arsenicais, iodados, sais de cálcio, fitina, etc) ; 
  • produtos opoterápicos (extratos de fígado e baço, ovarina, etc) ; 
  • derivados de ópio (codeína, dionina, etc) ; 
  • anestésicos locais (cocaína, salicilato de metilo, etc.) ; 
  • antisséticos intestinais (benzonaftol, fermentos láticos, etc); 
  • purgantes oleosos; 
  • ácido salicílico (para tratamento das micoses) ; 
  • tópicos antidermatósicos (óxido de zinco, ictiol, etc); 
  • iodofórmio (para tratamento das úlceras tropicais); 
  • e pode dizer-se que todos os medicamentos de uso corrente, em injeção (quinina, arrenal, cacodilato de sódio, cânfora, vitaminas, mercuriais, hemostáticos, etc., etc.). 

O permanganato de potássio, precioso para múltiplos fins, acabou, praticamente, e grande falta fará por ser de uso corrente nas moléstias que aparecem todos os dias. 

Tem-me preocupado imenso o facto de não poder vacinar contra a varíola, pelo menos as crianças. Neste capítulo de vacinas, nada poderemos improvisar. 

Movimento cirúrgico 

Os dois médicos portugueses têm feito tudo que lhes permitem os limitadíssimos recursos em material para operações. 

Além das suturas de feridas traumáticas, extrações de dentes e abertura de abcessos e fleimões, foram por eles praticadas operações de pequena cirurgia. 

O Delegado de Saúde de Liquiçá tratou os portugueses feridos por bala de metralhadora (ou estilhaço?) em Liquiçá e Maubara e extraiu um quisto cebáceo a um europeu; a mim coube fazer a extracção duma placenta aderente (post-abortum) à mulher de um europeu e o tratamento de feridas de guerra por estilhaços de bombas de avião numa mulher e numa criança timorense, tendo empregado o método de Friederich, que tão bons resultados deu na guerra de Espanha os quais, agora, eu pude verificar também. 

A pedido do Consulado do Japão foi por mim tratado um timorense com a maior parte da mão esquerda esfacelada, tendo o Hospital Nipónico fornecido o material preciso e dois enfermeiros que me ajudaram. 

Houve dois casos em que os nossos recursos não bastavam, um por falta de material e medicamentos e outro por necessitar operação de grande eirrurgia. No primeiro caso tratava-se de uma menina europeia que apresentava um enorme lipoma na região escapular esquerda; impossível operá-la por faltar o material de penso e cirúrgico esterilisados e todo o material de anestesia, além de que seria necessário reunir os dois médicos em serviço, o que agora não convinha, por que a saída de qualquer deles da sua zona de acção durante vários dias, significaria ausência de assistência médica aos portugueses da zona respectiva. 

No segundo caso tratava-se de uma senhora grávida de quatro meses, com hemorragias profusas e frequentes, devidas a uma inserção baixa da placenta. Somente uma operação com laparotomia a poderia salvar. 

Pelos motivos apontados foi necessário pedir auxílio ao hospital nipónico, onde as duas portuguesas foram operadas sendo os resultados inteiramente satisfatórios. Em seguida às operações, as doentes voltaram para o hospital português, tendo vindo os médicos nipónicos que as operaram, muito dedicadamente, fazer os curativos subsequentes tendo-me eu encarregado da sua assistência médica. (...)

Higiene pública Alimentação 


Tem deixado muito a desejar. Se no ano de 1943 já se não passou bem, no ano presente a situação agravou-se de tal modo que só Deus sabe para onde vamos. O total efectivo de calorias diárias, provenientes dos alimentos fornecidos, e é somente com esses que praticamente podemos contar, está longe do mínimo suficiente. 

Passa-se grande necessidade. O pouquíssimo que se obtém, quase se reduz ao arroz, hortaliças e cocos, e qualquer destes produtos vegetais nem sempre existem. Têm-se comido como hortaliças: 

  • folhas da batateira doce
  • baião (Amarantus sp.)
  • cancoom (Ipomoea aquática, Forsk.)
  • beldroegas
  • folhas de papaeira 
  • e mesmo as folhas e até medula de árvores (que os timorenses só aproveitam quando nada mais têm para o seu sustento). 

Mesmo assim, é frequente não termos verduras nas refeições. Por muito felizes nos damos quando recebemos folhas de nabos e das mostardas timorenses. Conforme as épocas do ano, aparece um ou outro complemento alimentício como: jacas verdes, bananas verdes, etc, etc, que depois de cozidos podem ser consumidos. 

Tomates e agriões são mimos raríssimos, que poucas vezes aparecem no mercado ou que alguns portugueses conseguiram pela cultura de escassos palmos de terra, pois nem sequer há terrenos próprios para horta, à sua disposição. 

Qualquer espécie de fruta é iguaria que raramente podemos provar. Os alimentos ricos em vitaminas, albuminóides e sais minerais, são precisamente os de mais difícil aquisição. A carne é fornecida em quantidades muito reduzidas. Recebem-se, em Liquiçá, algumas garrafas de leite que são distribuídas pelas crianças de tenra idade e pelos doentes. A carne de galinha e os ovos são manjares que não alcançamos. As batatas da Europa, que tão bem se davam e já tão largamente se cultivavam em Timor, desapareceram. Os feijões só raramente se vêem em Liquiçá. Em Díli há muito que não os há. A batata doce também já é rara. 

Os alimentos intoxicantes, que se podem tornar comestíveis por meio de preparação, em regra trabalhosa, já entraram na alimentação (mandioca amarga, feijão bravio e outros). Não é pois de admirar que se registassem casos de intoxicação alimentar (Liquiçá, em novembro, e dezembro) e de dispepsias, gastralgias, enterites e diarreias, devidas à má qualidade dos alimentos ingeridos. 

Além disso, a hipoalimentação já se revela por sintomas de doenças por carência. Os edemas maleolares são frequentes, a maior parte da população está asténica, a fadiga é rápida, há repetidas indisposições intestinais, a cárie dentária, a queda dos dentes e as hemorragias gengivais são quase gerais. A desnutrição de todos é evidente. 

Se não fora o nele (nome que se dá em Timor ao arroz ainda não descascado) que temos recebido (que por não ser polido contém vitamina BJ) e as verduras, já teríamos tido que lamentar a perda de vidas por avitaminoses, sobretudo por beribéri. Para cúmulo a preparação da comida torna-se difícil por haver pouca lenha.

O quadro presente é pois inteiramente desolador. Não há ninguém que não se tenha preocupado com a falta de alimentos. Pela minha parte, sempre que as ocasiões o proporcionaram indiquei a todos os perigos que adviriam da deficiência das refeições, ao mesmo tempo que dava conselhos úteis.

 Sentindo-me na obrigação de empregar o máximo do meu esforço para aumentar os recursos alimentares, preparei e conclui um trabalho em que registei tudo quanto pude apurar sobre a existência em Timor de produtos vegetais comestíveis, aproveitando-me quer do que encontrei nos livros, quer das informações dos timorenses, cuja experiência de séculos fornece muitos conhecimentos aproveitáveis. 

Este trabalho não só como documentário bromatológico (que nunca foi feito na Colónia) mas também pela aplicação às circunstâncias atuais, tem, por certo, bastante utilidade embora ela seja limitada pela forte razão de que nós não podemos procurar os alimentos mas somente receber os que nos trazem. 

Aos senhores Administradores do Concelho prontamente dei todas as indicações que particularmente me solicitaram, tendo-lhes fornecido tabelas da composição e valor calórico dos géneros alimentícios, dados sobre a quantidade e qualidade dos alimentos necessários para os europeus nos países tropicais, etc, habilitando-os assim a conhecer as bases do problema da nutrição dos portugueses. (...)


Bebidas alcoólicas 

Se, por um lado, é bom não as termos por motivos óbvios, por outro fazem falta como fontes de energia, e mesmo como tónico contra a acção deprimente do clima, o que é recomendado pelos higienistas tropicais, sobretudo ingleses, desde que as quantidades ingeridas sejam moderadas. 

Os vinhos de palmeira, sobretudo, possuem vitaminas B e C em quantidade apreciável, sendo bebida agradável e refrescante e fracamente alcoólica. É pena pois que em terra tão rica em palmeiras, não a possamos obter. 

Tabaco 

É de todos conhecida a imperiosa necessidade que o viciado tem de fumar. Praticamente todos os portugueses fumam. Poder-se-á pois calcular o quanto os indispõe e irrita o não poderem satisfazer esse hábito. Recorrem às folhas secas de arbustos e árvores que embrulham em qualquer papel por não haver mortalhas nem ao menos papel de seda. Assim iludem um pouco o seu vício, mas a saúde é que terá forçosamente de se ressentir. 

Asseio 

A água é pouca, em Liquiçá, e não há sabão. É de notar o esforço de uma senhora, cuja idade já não é para trabalhos, a qual consegue preparar sabão utilizando óleo de coco e os álcalis obtidos da cinza. Porém o óleo de coco é pouco para a alimentação... 

Vestuário

 Já velho e gasto e em reduzidas quantidades, a não ser para um ou outro mais protegido da sorte, em breve faltará. É de calcular que em época muito próxima, a maioria dos portugueses não tenha senão andrajos para vestir. 

Também, não existe calçado à venda nem material para o fabricar. Há muito que se calçam camparas — sandálias de madeira que se seguram aos pés por uma tira de pano. 

Utensílios domésticos 

Tem sido precioso o trabalho dos artífices portugueses que fabricam,  com folha de zinco, panelas, tachos, chaleiras, pratos, candeeiros ,etc. 

Outros portugueses têm fabricado, com muita habilidade, objetos muito úteis: escovas de dentes e pincéis para a barba (com crina de cavalo) , pentes (de tartaruga) , etc. 

Habitações 

Com a vinda dos portugueses de Maubara para Liquiçá, acentuou-se a plétora de habitantes em cada casa. O encombrement [sic, em francês, sobrelotação]« é manifesto. 

Ambulâncias 

Devido à concentração dos portugueses em Liquiçá, a ambulância de Maubara foi extinta. Nela prestou bons serviços o enfermeiro Vítor Madeira. Foi criada, na Granja Eduardo Marques, uma ambulância para tratamento dos portugueses que aí trabalham. Todos os enfermeiros auxiliares em serviço na Delegação de Liquiçá habitam, agora, na Granja. 

Cursos de enfermagem 

A 27 e 28 de abril fizeram-se em Liquiçá e Lahane os exames de frequência dos alunos do curso do primeiro ano Em junho começaram as aulas do segundo ano. 

Todas as lições que eu dei, foram escritas, constituindo um volume de cerca de 220 páginas dactilografadas. Deste modo ficou concluído um guia de enfermagem aplicado às condições de Timor, assim como um formulário constituído pelas fórmulas mais práticas para o tratamento dos doentes pelos enfermeiros, contando-se somente com os medicamentos essenciais que deverão existir em todas as ambulâncias, que agora se podem indicar com rigor. 

Este assunto é uma das partes do estudo da futura organização dos Serviços de Saúde, em que continuo a trabalhar. 

Bombardeamentos 

Este ano mostrou-se particularmente violento para nós. Liquiçá e Maubara foram metralhadas. Em Lahane caiu grande quantidade de bombas junto ao hospital e ao palácio do governo. As chapas de zinco que cobrem o hospital foram furadas pelos estilhaços e deslocadas pelo movimento do ar; os vidros que restavam partiram-se. 

É de notar a boa vontade com que o mestre Pinto (sargento artífice), por si próprio, se encarregou de reparar os estragos; o seu auxílio profissional tem sido dos mais úteis para o hospital. 

O ruído das explosões das bombas foi aterrador. Os enormes buracos que elas fizeram no terreno impressionaram imenso, até os menos timoratos. Os aviões vieram em certos meses quase todos os dias. Compreender-se-ia, pois, que o moral dos habitantes do Hospital e do Palácio estivesse profundamente deprimido. Felizmente tal não se verificou, sendo de notar que as senhoras demonstraram coragem surpreendente. 

Apesar de, após um bombardeamento se contar sempre com outro (pelo menos no dia seguinte), ninguém pediu para sair de Lahane. Todos se mantiveram no seu posto. 

Funcionários 

Têm estado sempre ao serviço, na sua totalidade, e por eles não foi requerida qualquer licença. Pode afirmar-se que, considerando o estado de intensa depressão moral em que vivemos, têm cumprido bem o seu dever. Os serviços de secretaria continuam a ser feitos com toda a boa vontade e proficiência pelo aspirante Domingos Afonso Ribeiro. 

Também ajudaram muito desinteressadamente, todos os serviços, o chefe de posto Francisco Torrezão e o chefe de posto João Gamboa (enquanto habitou em Díli) . 

Conclusões 

O estado sanitário da população só por milagre foi regular. A higiene pública deixa cada vez mais que desejar. O futuro é carregadamente sombrio. 

Contemos no próximo ano com elevada percentagem de óbitos, pois que, não possuindo os géneros alimentares convenientes nem os meios de fortalecer os organismos depauperados, também não teremos os medicamentos essenciais e as dietas próprias para tratamento dos numerosos doentes que forçosamente aparecerão. 

Repartição Técnica dos Serviços de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 9 de fevereiro de 1945. O Chefe da Repartição interino, José dos Santos Carvalho
________
 
 (...) Pessoal em serviço e sua situação em 31 de Dezembro de 1944 

Médicos:
  • José dos Santos Carvalho,  Chefe da Repartição, interino, Director do Hospital, Delegado de Saúde de Díli;
  • Francisco Rodrigues,  Delegado de Saúde de Liquiçá.

Enfermeiros:

  • Victor José Gregório Madeira,  Sede da Delegação de Liquiçá; 
  • Luiz Correia de Lemos, idem;
  • Daniel Madeira, idem; 
  • Emílio Francisco de Oliveira, idem; 
  • António de Oliveira,  Hospital Dr. Carvalho;

Praticantes estagiários:

  • Orlando Correia de Lemos,  Sede da Delegação de Saúde de Liquiçá,
  •  Óscar Correia de Lemos, idem.

Enfermeiros auxiliares: 

  • Paulo de Jesus Granja Eduardo Marques Sebastião da Costa
  • João da Costa Pereira 
  • João Guterres
  • Francisco da Silva Vila Taveiro (Oekussi) 
  • Mateus Pereira
  • Pedro da Cruz,  Hospital Dr. Carvalho António Lopes 
  • Mateus Ribeiro,  Granja Eduardo Marques João Soriano
  • Aleixo da Costa, idem 
  • Manuel da Costa, Hospital Dr. Carvalho 

Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 31 de Dezembro de 1944. O Chefe da Repartição, int.°, José dos Santos Carvalho. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas, bold a vermelho, título: LG)

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Nota do editor:

domingo, 11 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25830: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VI: dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, e carne e ovos de tartaruga



Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). 

Segundo o Mário Dias, que foi um dos comandos do grupo do alferes 'cmd' Saraiva, as baixas de um lado e doutro teriam sido  as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 feridos; do PAIGC: 76,  mortos (confirmados), 29 feridos, 9 prisioneiros... 

Segundo outras fontes (CECA, 2014), as NT terão sofrido  9 mortos, 47 feridos, e 193 evacuados por doença....Por sua vez, o lN teve 76 mortos,  15 feridos  e 9 evacuados por doença  ("Obs: O número de mortos e feridos do ln poderão ter sido em maior número devido ao bombardeamento da Artilharia e da Força Aérea."

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, 2014), pág. 216/217.
 
Na batalha do Como, constou que tinha morrido  o comandante do PAIGC Pansau Na Isna (que daria nome a umas artérias de Bissau em 1975)... mas não é verdade. Morrerá mais tarde, dizem em Nhacra, em 1970. Teria nascido em 1938.


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto à esquerda: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita


1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964); 

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).


Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho, estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC). 

Este Pel At participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos agora na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964).


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)

Parte VI:  dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: 
farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, 
e carne e ovos de tartaruga



O comandante do destacamento de fuzileiros informou pela rádio que o seu pelotão de reconhecimento tinha tido uma emboscada 500m à direita da referência n.º 1.

Disse para o sargento :

− Carregar! 

E para os apontadores.

− Alça 5500 jardas. Direcção 110º!

A direção inicial foi de 100º para a referência nº 1, após leitura no mapa, e feita com uma bússola apontada pelo para o centro da culatra de cada um dos obuses. Cada apontador movia o respectivo obus com uma manivela da direcção após receber a ordem. A direção final foi introduzida pelo mesmo processo, como correção da primeira, sem haver agora a necessidade de recorrer ao mapa.

Por cada obus uma granada, já sem a proteção da espoleta, foi retirada do depósito e entregue ao municiador que rapidamente a introduziu no tubo através da culatra e até que a cinta de cobre que nela sobressaía no terço inferior do seu comprimento, impedisse o seu encaixe no tubo. 

Em seguida o operador do soquete (redondo com um tubo com uma aplicação de madeira na extremidade de diâmetro pouco menor ao da granada ) introduziu este na culatra com força deu uma pancada na base da granada para que a cinta de cobre se encaixasse nas estrias do tubo, imprimindo-lhe após o disparo, um movimento de rotação que lhe ia estabilizar o percurso e retirar pela força centrifuga, a proteção do mecanismo de rebentamento accionado pela espoleta ao embater no alvo. 

Depois o 2.º municiador ao qual tinha sido entregue um cartuxo de latão com dois sacos de explosivo introduziu-o na culatra e o operador fechou-a rapidamente e disse:

 
− Pronto!

Os apontadores disseram :

− Pontaria corrigida.

O sargento conferiu as pontarias e disse :

− Obuses prontos.

Dava então a ordem de fogo tendo o cuidado de deixar a boca bem aberta para que a deslocação do ar originada pelo rebentamento que se seguia ao disparo, efectuado pelos apontadores acionando as correspondentes alavancas, não lhe viesse a rebentar os ouvidos, como por descuido lhe veio a acontecer mais tarde numa outra operação. Todo o pessoal foi bem instruído para tal e procedia da mesma forma.

Toda esta operação era rápida de forma a que as tropas apoiadas pudessem contar com granadas de treze quilos de grande poder explosivo e destrutivo, próximo dos locais indicados pelo rádio, em cerca de 2 ou 3 minutos.

A 6 kms ouviram-se os rebentamentos dos projecteis e depois rajadas de tiros em várias direcções. O inimigo julgava que estava a ser atacado pela aviação, por ser a velocidade das granadas superior à do som e só se ouvirem os respectivos disparos após o seu rebentamento.

Durante os cerca de 2 meses em que o alf mil art José Álvaro Carvalho participou nesta operação, acabou por não prescindir das barracas em rama de palmeira entrelaçada, bem melhores do que as tendas de lona do exército, por deixarem passar a pouca brisa que havia lá fora e deste modo atenuarem o calor elevado que sempre se fazia sentir, mais ou menos sufocante.

Quando acordava de manhã e o mar não estava longe, dava dois ou três mergulhos e como deixara de fazer a barba e lavar os dentes era esta a sua higiene diária. Mas por vezes se a maré estava vazia, a pouca elevação do terreno e a elevada amplitude desta, afastavam o mar para um longínquo horizonte que se podia medir por 2 ou 3 quilómetros e a higiene diária ficava adiada por algumas horas. 

Nestes dias, o seu pessoal da cozinha percorria a areia molhada à procura de moluscos, geralmente grandes búzios, para variar a dieta das conservas com arroz de que já todos estavam fartos, e, nesses dias, havia rancho melhorado. Reparou que o cozinheiro cortava uma parte de cada búzio e a deitava fora, alegando que fazia mal.

Como já disse, de vez em quando, para conversar ou por ser diferente, ia almoçar à messe do batalhão, uma tenda grande onde almoçavam os oficiais.

Certo dia o almoço também foi búzios. Perguntou ao sargento da messe do batalhão se lhe tinham tirado a parte que fazia mal. Disse que não lhe parecia que os búzios tivessem alguma parte que fizesse mal. Nesse dia não almoçou. Nos dias seguintes assistiu a um corrupio constante de oficiais a caminho das latrinas.

Num outro dia, tendo chegado tarde no seguimento duma operação, o sargento disse-lhe:

− Sabe o que é hoje o almoço,  meu alferes ?

− Não faço ideia.

− Bife, omeleta e batatas fritas.

Pensou que tinham apanhado alguma vaca das que com os bombardeamentos vagueavam perdidas pela zona. No dia seguinte ao da chegada àquela praia, o seu pessoal ficou deslumbrado perante a quantidade de vacas e cabras que vagueavam perdidas no mato próximo, por força dos bombardeamentos constantes da marinha, as quais se deixavam apanhar com facilidade. Não resistiram á tentação de apanhar algumas e as encerrar num cercado feito com paus junto do acampamento. Avisou-os de que assim que o primeiro obus disparasse um tiro fugiriam todas aterrorizadas, sendo impossível ter mão nelas o que na realidade aconteceu.

Almoçou efectivamente bife, omeleta e batatas fritas. No fim do almoço o sargento disse-lhe:

− Sabe o que esteve a comer?

− Não.

− Carne de tartaruga e ovos de tartaruga.

Como lhe soube bem,  não o incomodou a noticia.

Quando as tartarugas vinham desovar â praia na maré cheia e se descuidavam com o correr da maré ficando longe da linha de água, iam deixando um rasto na areia molhada que se seguia com facilidade. Para o lado do mar apanhava-se a tartaruga, para o lado de terra o seus ovos. Isto aconteceu com frequência na época do desovar das tartarugas e era um bom petisco.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25363: Blogues da nossa blogosfera (192): Recuperando parte dos conteúdos do antigo sítio da AD Bissau - Parte IV, foto da semana, 11 de maio de 2009: lutando contra a fome, em Bolol, chão felupe


Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 11 de maio de 2008 >  Título da foto: Lutando contra a fome | Data de Publicação: | 11 de Maio de 2008 | Palavras-chave:Alimentação 
 
Legenda:

O mau ano agrícola de 2007 começa a fazer os seus efeitos na segurança alimentar das famílias guineenses mais pobres, as quais registam o início da ruptura dos seus stocks, quando num ano normal isso só acontece em julho ou agosto.

A agravar esta situação junta-se o aumento exponencial e repentino dos produtos alimentares, fruto de fatores externos, dos quais se salienta a sua utilização para biocombustível, um verdadeiro crime contra a humanidade.

Consciente do problema, Adama Djata, horticultora de Bolol, no norte da Guiné-Bissau, região do Cacheu, improvisa um campo de cultivo de tomate, em condições pré-desérticas, onde falta a água e os solos arenosos são muito pobres.

Fonte: Arquivo.pt > ADBissau.org (com a devida vénia...)

(Revisão / fixação de texto, edição da foto: LG)

2.  Comentário do editor LG:

É reconfortante saber que a memória e o exemplo do "Pipito" (como lhe chamavam os seus amigos e vizinhos do bairro do Quelelé, em Bissau, e no nosso... blogue!) continuam vivos  (**) e a inspirar os seus colegas da AD - Ação para o Desenvolvimento, de que foi cofundador e diretor executivo até à data da sua morte, ocorrida em Lisboa (18 de fevereiro de 2014).

O Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), além de ser um engenheiro agrónomo competente, entusiástico  e inovador, era um grande líder e animador, e um homem dotado de elevada sensibilidade cultural e capacidade de leitura da realidade sociopolítica do seu tempo.

Seria uma pena que as suas "fotos da semana", publicadas no sítio da sua organização, desde 2005, se perdessem... As fotos e as legendas.  Estamos a recuperar algumas, que foram publicadas no antigo sítio da AD Bissau (http://www.adbissau.org/ ), descontimuado com a pandemia.  Muitas já se perderam, irremediavelmente.

O atual endereço eletrónico (URL) do sítio da "nova" AD - Ação para o Desenvolvimento (https://ad-bissau.org é ligeiramente diferente do anterior.  Esta ONGD, guineense, foi criada em 1991.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25360: Blogues da nossa blogosfera (191): Recuperando parte dos conteúdos do antigo sítio da AD Bissau - Parte IV: a ilha-refúgio de Alfa Iaia, rio Corubal

(**) Vd. poste de 19 de fevereirio de 2024 > Guiné 61/74 - P25186: Efemérides (426): "Pipito Ka Muri": foi há dez anos, a 18/2/2014, que deixou a Terra da Alegria, mas com ele, o seu exemplo, a sua memória, renasce agora a nova AD - Acção para o Desenvolvimento